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Covid-19 e seus reflexos nos contratos de locação

Dados de 2018 demonstram que dos 71 milhões de domicílios existentes no Brasil, 12,9 milhões eram alugados. Por outro lado, temos que 70% dos locadores são proprietários de um único imóvel para locação e que da mesma forma, foram impactados pelos efeitos da pandemia.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Atualizado às 12:39

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Fato público e notório é o impacto gerado pela pandemia do coronavírus na economia mundial, gerando uma avalanche de demissões e redução de salários, o que, no Brasil, refletiu diretamente no mercado imobiliário, notadamente nas relações locatícias.

Dados de 20181 demonstram que dos 71 milhões de domicílios existentes no Brasil, 12,9 milhões eram alugados. Por outro lado, temos que 70% dos locadores são proprietários de um único imóvel para locação e que da mesma forma, foram impactados pelos efeitos da pandemia.

E não são apenas os locatários residenciais e pequenos empresários que sentiram o impacto econômico da crise, mas também grandes corporações, como McDonald's2 e Casas Bahia3, que já buscam adequar seus aluguéis. A rede de fast food vem renegociando os contratos individualmente com os proprietários propondo o pagamento do aluguel proporcional ao seu faturamento durante o período de crise. Já a varejista de eletroeletrônicos está pedindo a suspensão de aluguéis de mais de 1.020 lojas físicas fechadas por conta de medidas de quarentena em todo país.

Diante desse cenário, imprescindível a discussão acerca da medida mais justa a ser aplicada aos contratos de locação enquanto perdurarem os efeitos da pandemia, o que tem sido palco de opiniões divergentes por especialistas e decisões também não uniformes pelos Tribunais de todo país.

Diversos projetos de lei se pautaram no problema, não havendo até o momento uma definição legislativa, sendo que pululam ações pleiteando a redução liminar dos aluguéis ou sua isenção sob o manto da pandemia.

Nesse sentido, o PL 1.179/20 oriundo do Senado Federal, prevê a vedação de concessão de liminar em ações de despejo até 31.10.20, fixando a vedação para ações distribuídas após 20.03.20, ou seja, presumindo-se a inadimplência anterior a decretação do estado de calamidade. Esse mesmo projeto de lei permitia aos locatários residenciais suspender o pagamento dos aluguéis vencíveis a partir de 20 de março até 31 de outubro de 2020, cujo pagamento poderia ser parcelado posteriormente.

Há também o PL 1.028/20, que trata da suspensão das ações de despejo por falta de pagamento, pelo prazo de 90 (noventa) dias, o PL 872/20 que visa suspender "processos judiciais com pedido de ordem de despejo, cobrança e execução" de alugueis, e ainda, o PL 936/20 que concede um desconto de 50% sobre o valor da dívida de aluguel no período de quatro meses e/ou enquanto durar a anormalidade, cujo saldo não pago deve ser parcelado pelo prazo de até 12 meses.

Nesse contexto não se deve ignorar o disposto no art. 23, IX e X, CF, pelo qual cabe à União, Estados e municípios promoverem programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais, bem como, combater as causas da pobreza, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos, demonstrando que não cabe ao particular prover o que seria de obrigação da União, Estados e municípios.

A questão, de fato, é controversa, principalmente se analisada sob a ótica de ambas as partes envolvidas, locador e locatário.

De um lado, temos a figura do locatário/inquilino, que pode ser tanto uma pessoa natural que, por corte de salário ou demissão se vê impossibilitada de adimplir, total ou parcialmente, o aluguel fixado contratualmente, como uma pessoa jurídica que passa por problemas de caixa por estar com suas atividades paralisadas ou com restrições de funcionamento.

Do outro lado, surge o locador, que pactuou livremente o aluguel e agora, sem dar causa a qualquer pleito de revisão, se vê submetido à inadimplência do aluguel que, na grande maioria das vezes, é sua única ou principal fonte de sustento.

De fato, o Código Civil prevê possibilidade de revisão contratual (arts. 317 e 478 a 480) que permite a modificação das condições pactuadas a fim de se evitar a resolução do contrato que, por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, o tornem excessivamente oneroso.

Ao dispor sobre a revisão de contratos, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam:

Onerosidade excessiva. Resolução ou revisão do contrato. A onerosidade excessiva, que pode tornar a prestação desproporcional relativamente ao momento de sua execução, pode dar ensejo tanto à resolução do contrato (CC 478) quanto ao pedido de revisão de cláusula contratual (CC 317), mantendo-se o contrato. Esta solução é autorizada pela aplicação, pelo juiz, de cláusula geral da função social do contrato (CC 421) e também da cláusula geral da boa-fé objetiva (CC 422). O contrato é sempre, e em qualquer circunstância, operação jurídico-econômica que visa a garantir a ambas as partes o sucesso de suas lídimas pretensões. Não se identifica, em nenhuma hipótese, como mecanismo estratégico de que se poderia valer uma das partes para oprimir ou tirar proveito excessivo de outra. Essa ideia de socialidade do contrato está impregnada na consciência da população, que afirma constantemente que o contrato só é bom quando é bom para ambos os contratantes.4

Flávio Tartuce, ao dispor sobre a revisão judicial dos contratos, defende que "a extinção do contrato deve ser a ultima ratio", frisando o "princípio da conservação contratual que é anexo à função social dos contratos"5

Denota-se, portanto, pela redação do art. 478, CC, que só haverá onerosidade excessiva se advir prestação excessivamente onerosa para uma parte com extrema vantagem para a outra, matéria aferível caso a caso.

De fato a pandemia pode ser enquadrada como uma força maior a justificar eventual excludente de responsabilidade e revisão contratual, mas qualquer análise isolada da questão, protegendo apenas uma das partes da relação contratual, ensejará em inevitável injustiça, ainda que se pretenda a defesa da parte presumidamente hipossuficiente, como é a figura do inquilino.

A própria lei de locação (8.245/91) prevê, no art. 18, a possibilidade das partes, de comum acordo, fixar novo aluguel, bem como, inserir ou modificar a cláusula de reajuste. Se as partes não chegarem a um consenso, o art. 19 prevê a possibilidade de revisão judicial do aluguel, contudo, com requisitos para cabimento da pretensão.

O que se deve observar, é que o Código Civil estabeleceu, em seu art. 421, o princípio da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual, o que tem motivado grande parte das decisões judiciais que negam a pretensão de concessão de liminar para diminuição ou isenção de aluguéis.

Portanto, não obstante o esforço legislativo para tratar da questão, estabelecer uma regra geral aplicável a todos os contratos de locação não nos parece ser a medida mais adequada, pois estariam tentando aplicar uma única solução aos mais diversos problemas e particularidades que o tema envolve.

Conforme escólio de Léon Duguit, a solidariedade social é o fundamento do direito, sendo que "se a regra de direito é a mesma para todos os homens, porque impõe a todos a cooperação na solidariedade social, impõe contudo a cada um obrigações diferentes, e porque devem, consequentemente, cooperar de maneira diferente na solidariedade social"6.

Falamos sempre que a resposta mais adequada para muitas questões jurídicas é "depende". Em se tratando de revisão de aluguel por uma situação absolutamente imprevisível, como é a pandemia, e que prejudica tanto o inquilino como o proprietário, a melhor e mais justa solução sempre advirá do famigerado "depende", e não de previsão normativa, devendo haver, sempre que possível, a análise individual dos casos em livre negociação das partes.

Até o momento não há consenso nos Tribunais sobre a questão, havendo decisões no sentido de permitir a alteração do valor do aluguel, e outras vedando a intervenção do Poder Judiciário em contratos particulares sem que haja uma condição abusiva em discussão.

Os julgados abaixo colacionados, proferidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, entenderam pela impossibilidade de intervenção do Poder Judiciário na relação contratual mantida entre particulares:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. LOCAÇÃO DE IMÓVEL. TUTELA ANTECIPADA ANTECEDENTE. TUTELA DE URGÊNCIA. Ausente a probabilidade do direito alegado, fica afastada a antecipação da tutela. Decisão mantida. Recurso desprovido. Decisão mantida. Recurso desprovido.

Verifica-se que a requerente alega que se faz necessária a concessão da tutela de urgência, considerando os prejuízos que tem sofrido em razão da pandemia causada pelo vírus Covid-19, pugnando pela suspensão do pagamento dos aluguéis a serem pagos nos meses de abril, maio e junho, com o parcelamento de tais valores até o mês de outubro de 2020.

De fato, apesar da situação de pandemia vivenciada por toda a sociedade, inviável, ao menos neste momento, que o Poder Judiciário sujeite os locadores a promover um acordo que, a princípio, não deseja realizar.

Como ressaltado pelo Juízo a quo, os locadores são pessoas físicas, razão pela qual, por prudência, deve-se aguardar o contraditório, vez que os valores aqui discutidos podem incorrer em verba alimentar.

Ademais, não há qualquer notícia que os locadores tenham ajuizado ação de despejo ou adotado outras medidas em desfavor da locatária, ocasião que poderia ser apurado prejuízo à parte.

Desta forma, ausente a comprovação da probabilidade do direito alegado, fica afastada a possibilidade da antecipação da tutela. (TJ-SP, AI 2070568-12.2020.8.26.0000. relator des. Felipe Ferreira, 04.05.20)

LOCAÇÃO - Imóvel comercial - Tutela provisória de urgência em caráter antecedente voltada a suspender a exigibilidade do aluguel ou a reduzir seu valor pelo prazo mínimo de três meses em razão da situação de pandemia gerada pelo novo Coronavírus (Covid-19) - Decisão de primeiro grau que indefere o pedido - Agravo interposto pela autora - Ausência dos requisitos legais a autorizar a concessão da medida de urgência - Necessidade de se garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa - Decisão mantida - Recurso desprovido.

Conquanto não se desconheça que as atividades comerciais não essenciais estejam suspensas no Estado de São Paulo em razão da pandemia gerada pelo novo Coronavírus (Covid-19), os elementos de convicção não se mostram suficientes, ao menos por enquanto, a permitir a redução do aluguel, assegurando o valor real da obrigação, nos termos do artigo 317 do Código Civil sem que antes seja respeitado o contraditório e a ampla defesa, mormente porque a mensagem eletrônica de fl. 72 não traz qualquer indício de que o agravado não aceitou a proposta de redução, conforme alegado pela recorrente.

[...]

A análise mais aprofundada acerca da possibilidade de concessão da tutela requerida está, portanto, reservada ao juízo de primeiro grau, que, após o contraditório e à luz das provas que eventualmente venham a ser produzidas, disporá de todos os elementos de convicção necessários.

Conclui-se, portanto, que no momento a controvérsia a ser dirimida está restrita ao cabimento da medida de urgência indeferida, à luz dos requisitos previstos no artigo 300 do Código de Processo Civil, os quais não se fazem presentes. (TJ-SP, AI 2071938-26.2020.8.26.0000. relator des. CARLOS HENRIQUE MIGUEL TREVISAN, 06.05.20)

Igual entendimento foi aplicado pelo Tribunal de Justiça do Paraná ao analisar pedido liminar formulado em Agravo de Instrumento (AI 0020324-92.2020.8.16.0000, relatora desª Denise Krüger Pereira. 05.05.20).

De outra banda, entendendo pela possibilidade de concessão de liminar e redução/isenção dos aluguéis, o TJ/SP assim decidiu:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - Procedimento da tutela antecipada requerida em caráter antecedente. Reconhecido estado de calamidade pública em decorrência da pandemia do coronavírus - Autorizadas medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública, dentre as quais a quarentena - Suspensão de consumo em restaurantes - Impacto no faturamento - Vencimento de aluguéis - Em tese, possível o reequilíbrio da obrigação pelo julgador - Presentes elementos que evidenciam a probabilidade do direito - [...]. Agravo parcialmente provido.

[...]

Evidente o impacto econômico em decorrência da pandemia e de seus meios de enfrentamento da emergência de saúde pública, visando evitar possível contaminação ou propagação do vírus.

Em tese, é possível a intervenção judicial para o reequilíbrio da obrigação, em aplicação à teoria da imprevisão prevista no artigo 317 do Código Civil.

[...]

Pelo exposto, dou parcial provimento ao recurso, para deferir a tutela provisória de urgência de natureza antecipada e de caráter antecedente, para suspender o pagamento de metade do aluguel por quatro meses, com pagamento da diferença de forma parcelada, sem juros, a partir de novembro de 2020, autorizada a revisão em caso de disciplina diversa pelo Legislativo (Projeto de Lei nº 936/2020 e Projeto de Lei nº 1179/2020).

(TJ-SP, AI 2073789-03.2020.8.26.0000. rel. des. Sá Moreira de Oliveira, 04.05.20)

Como se percebe, não há entendimento uniforme sobre o tema. Ainda assim, a solução legislativa, não obstante tenha a louvável pretensão de evitar a judicialização em massa da questão, não nos parece a mais adequada justamente por enquadrar todos os inquilinos e proprietários em uma regra geral, sem análise de suas reais dificuldades e necessidades, ainda que momentâneas.

Não é demais lembrar ainda, que, em contratos de administração imobiliária, além da anuência do proprietário quanto a redução do aluguel, deve ser feito o ajuste também com a imobiliária ou administradora do imóvel.

Nesse cenário, atual se mostra a disposição de Eduardo Juan Couture: "Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça."

Pelo exposto, concluímos que, em tempos de incerteza, enquanto ausente um instrumento normativo que ampare a relação locatícia em tempos de covid-19, a melhor solução é a livre disposição entre as partes, cabendo à análise da situação vivenciada por ambos, inquilino e locador, em busca da solução mais justa, sendo que, ausente a possibilidade de ajuste entre as partes, caberá ao Judiciário, se provocado, aplicar o entendimento que julgar mais correto para o caso concreto.

Que o bom senso prevaleça.

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1 Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua).

2 Disponível clicando aqui

3 Disponível clicando aqui

4 Nery Junior, Neson. Código civil comentado / Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery. - 8. ed. rev., ampl. e atual. até 12.07.2011. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2011.

5 Tartuce, Flávio. Direito civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie / Flávio Tartuce; 13. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro : Forense, 2018.

6 Duguit, Léon. Fundamentos do direito / Léon Duguit; tradução: Servanda Editora. - Campinas, SP : Servanda Editora, 2008.

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*Tiago Augusto de Macedo Binati é sócio advogado do escritório Jane Junqueira & Advogados Associados. Pós-graduado em Direito Tributário e em Direito Aplicado. Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/Paraná. Professor de Direito Imobiliário e Direito Tributário.

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