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Prisões em tempos de coronavírus: um mea culpa do Judiciário?

Dentre as medidas recomendadas pela portaria em comento, estão algumas que, efetivamente, se atrelam diretamente ao momento presente, as quais objetivam diminuir a permanência e o fluxo de pessoas nas prisões.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Atualizado às 11:47

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"A conjuntura que viu nascer a reforma não é portanto a de uma nova sensibilidade; mas a de outra política em relação às ilegalidades" (Michael Foucalt, em "Vigiar e Punir")1

Na data de 16.3.2020, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em consonância com a recomendação 62/2020 emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou a portaria conjunta 19/PRTJMG/2020, voltada a aplicar "ao sistema prisional as medidas necessárias para o contingenciamento da pandemia do coronavírus no Estado de Minas Gerais", com vigência prevista enquanto se perpetuar "a situação de emergência no Estado de Minas Gerais conforme decreto de emergência 113 de 12.3.2020".

Dentre as medidas recomendadas pela portaria em comento, estão algumas que, efetivamente, se atrelam diretamente ao momento presente, as quais objetivam diminuir a permanência e o fluxo de pessoas nas prisões.

Para tanto, foram suspensas visitas íntimas nos ambientes prisionais, reduziu-se a visitação regular a apenas uma pessoa por acautelado, foi sobrestada a visita por pessoas maiores de 60 anos (art. 2º).

Na mesma esteira, também foram vedadas as "visitas de Organizações da Sociedade Civil, salvo as devidamente autorizadas previamente pela Sejusp, e de entidades religiosas" (art. 2º). 

A fim, ainda, de evitar que os presos, que cumpriam suas penas também tendo momentos em que autorizadas as suas saídas do sistema prisional, pudessem retornar, da sociedade civil, aos presídios, portando o vírus, a portaria conjunta 19/PR-TJMG/2020 recomendou que fosse avaliada pelo Juiz da Execução a possibilidade de que presos em regime aberto ou semiaberto seguissem para o regime de prisão domiciliar (art. 3º).

Nessa toada, recomendada, ainda, a prisão domiciliar aos devedores de alimentos (art. 4º).

Vale ressaltar, neste momento, que, embora inúmeras tenham sido as manifestações dos cidadãos comuns em contrariedade às supraindicadas medidas, sob a argumentação de que o Estado estaria "colocando bandidos nas ruas", a teleologia por detrás dessas é aquela de proteger, não apenas a população do sistema prisional como um todo, mas também todas as pessoas do mundo externo com as quais aquela detém contato.

Nos presídios não temos somente presos! Circulam por uma unidade prisional servidores públicos, prestadores de serviços terceirizados, advogados particulares, profissionais da saúde, os quais retornam aos seus lares, podendo também se transformar em vetores de contágio.

Quanto aos presos, não se olvidando que muitos compõem a vasta massa dos detentos provisórios, não se tendo qualquer segurança quanto à sua efetiva responsabilidade penal, constituem todos a categoria de acautelados do Estado, de modo que compete ao Poder Público garantir a sua integridade física, em condições minimamente condignas com a dignidade humana constitucionalmente prevista, na mesma medida em que assegura a integridade aos cidadãos livres. Todos nós devemos estar abarcados pelas políticas de saúde pública. 

Neste ponto, passo ao que me foi digno de reflexão, enquanto militante da advocacia criminal, em um Estado Democrático de Direito, regido por princípios constitucionais penais e processuais penais.

Ocasionou-me espanto a redação do art. 5º portaria Ccnjunta 19/PR-TJMG/2020: "Recomenda-se a revisão de todas as prisões cautelares no âmbito do Estado de Minas Gerais, a fim de verificar a possibilidade excepcional de aplicação de medida alternativa à prisão" (Grifos nossos).

Teríamos, aqui, um mea culpa do Judiciário? Ou uma disposição normativa dispensável?

O art. 5º, LVII, da Constituição da República (CR/88) prevê como direito fundamental a presunção da inocência, a qual rege todo o devido processo legal, em âmbito criminal.

Não por acaso, a pena de prisão, quando aplicada antes da condenação com trânsito em julgado, é medida de ultima ratio, de acordo com disposição expressa do Código de Processo Penal (CPP - Grifos nossos): 

 "Art. 282, § 4º. No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código". 

Tem-se, portanto, que, antes de definitivamente condenado, apenas se admite a aplicação antecipada da pena privativa de liberdade, quando as demais medidas cautelares (art. 319 do CPP), voltadas ao acautelamento da investigação ou do trâmite processual penal, não se afigurarem suficientes. 

Assim sendo, é evidente que, ao decretar qualquer prisão preventiva, espera-se que o magistrado tenha minuciosamente analisado os fatos, os indícios e/ou as provas, eventuais manifestações da defesa e da acusação, e concluído, em definitivo, que a situação em análise requer, imperiosamente, a segregação do investigado ou acusado.

Dessa forma, não nos parece lógico, no sistema constitucional e processual penal pátrio, que, desprovidos de qualquer fato novo, afeto ao caso em julgamento, possam os magistrados, em virtude da pandemia do covid-19, reavaliar as prisões preventivas decretadas.

Uma vez decretadas, deduz-se que o foram porque eram, de acordo com o julgador, essenciais, e, em assim sendo, não se tornam, transitoriamente, prescindíveis.

Em contrário, poder-se-ia, então, inferir que a análise primeira, venia permissa, não fora levada adiante com a parcimônia e a minúcia devida? Ou o fora e estamos diante de uma disposição dispensável e que apenas conferiria ensejo para que se sobrecarregasse mais o Judiciário? Ou, mais, tratar-se-ia de mera disposição retórica, que objetiva somente conferir falsas esperanças à massa carcerária provisória? 

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1 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 70. 

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*Marcella Apocalypse é advogada criminalista, especialista em Ciências Penais pelo IEC-PUC Minas. 

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