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As audiências de instrução por videoconferência na Justiça do Trabalho

Nasser Ahmad Allan e Nilo da Cunha Jamardo Beiro

Com a retomada da contagem dos prazos processuais nos processos digitais, em 4 de maio, o curso extraordinário da prestação jurisdicional se fez seguir com a manutenção do impedimento à realização de audiências e a suspensão do atendimento presencial nos fóruns.

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Atualizado às 14:11

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A pandemia do coronavírus chegou ao país impondo isolamento social e, com ele, vieram importantes alterações - por mais que periódicas - no modo de viver da população. Impactou a sociedade e o Estado. Desde meados de março vem ocorrendo transformação significativa nas rotinas de trabalho relacionadas ao Poder Judiciário, exigindo de quem compõe a estrutura orgânica do sistema de justiça e da advocacia adaptar-se à realidade temporária.

Transformações tão intensas na vida social certamente não passarão sem deixar marcas. A realidade, para o melhor e para o pior, será alterada e jamais retornaremos ao estado anterior à pandemia. Não há razões para crer que o mundo dos escritórios de advocacia e do Judiciário não se altere também.

Com a retomada da contagem dos prazos processuais nos processos digitais, em 4 de maio, o curso extraordinário da prestação jurisdicional se fez seguir com a manutenção do impedimento à realização de audiências e a suspensão do atendimento presencial nos fóruns.

As estatísticas são dispensadas para sustentar o fato de a maioria das ações trabalhistas demandarem a produção de prova testemunhal. Sendo assim, apesar de um número expressivo das ações trabalhistas tramitar por processo digital, em especial as ações mais recentes, haverá o entrave quando se atingir o momento da audiência de instrução processual.

Com a finalidade de conferir andamento aos processos em curso, o Conselho Nacional de Justiça, na resolução 314, permitiu a realização de audiências de instrução processual por videoconferência, desde que a participação no ato seja viável às partes e às testemunhas. Não cuidou, no entanto, de regrar quais os procedimentos a serem observados nas audiências, o que vem gerando inquietação e debate no nosso meio jurídico ante o vácuo normativo sobre a matéria.

A Consolidação das Leis do Trabalho nada dispõe a respeito de audiências por videoconferência. Mesmo com a recente reforma trabalhista, que contou com mais de uma centena de modificações no texto consolidado, a possibilidade de realizar audiências por meios telemáticos não foi aventada pelo legislador reformador.

Já o Código de Processo Civil, cuja aplicação subsidiária ao processo do trabalho resta estabelecida no artigo 769 da CLT, regra de forma excepcional a matéria ao abordar a faculdade de a parte (artigo 385, § 3º) e as testemunhas (artigo 453, § 1º) serem ouvidas por videoconferência quando residirem em comarca, seção ou subseção distintas daquela onde tramita o processo.

A primeira situação trata-se de comodidade concedida à parte, evitando o deslocamento exclusivamente para comparecer em Juízo para prestar depoimento. Já a segunda é medida que visa prestigiar a celeridade processual, poupando-se economia de tempo e de recursos econômicos ao dispensar a expedição de uma carta precatória para oitiva da testemunha em outro Juízo.

Não há previsão legal, portanto, a permitir a realização de audiências de instrução, com depoimentos de partes e testemunhas que residam na própria comarca onde tramite a ação trabalhista.

Apesar de o Conselho Nacional de Justiça mencionar expressamente como condição à realização de audiências por videoconferência a possibilidade de as partes e testemunhas participarem, tratando-se, evidentemente, de preocupação externada com o acesso a uma internet de qualidade suficiente a viabilizar a tomada dos depoimentos, parece razoável concluir-se pelo direito de a parte rechaçar a audiência por meio telemático, se assim desejar, mesmo não existindo dificuldades materiais a sua realização.

Tal conclusão resulta de não haver norma jurídica a disciplinar as audiências por videoconferência, ressalvadas as duas hipóteses excepcionais mencionadas acima. Sendo assim, para a prática de audiências por este meio, tanto durante a pandemia quanto para o futuro, quando partes e testemunhas residam na comarca de tramitação da ação trabalhista, necessita-se da sua prévia anuência, além, é claro, da viabilidade de litigantes e testemunhas terem acesso à internet de qualidade.

Nesses casos, as audiências inaugurais ou de instrução podem ocorrer somente por convenção das partes, cuja realização resulta da adoção do princípio de direito processual da cooperação, positivado no artigo 6º do Código de Processo Civil. Parece correto afirmar que o(a) magistrado(a) do Trabalho responsável por presidir a instrução processual, não pode, em hipótese alguma, impor às partes e advogados(as) a participação em qualquer espécie de audiência por videoconferência, cuja existência nem sequer possui previsão legal.

Havendo, no entanto, interesse das partes e meios hábeis para realização da audiência de instrução processual, surgem outros detalhes a suscitar preocupação com a regularidade e isenção do ato processual por videoconferência, sendo impossível abordar a todos neste espaço. De toda forma, pretende-se aqui problematizar alguns destes desdobramentos.

O comparecimento de testemunhas aos locais destinados pelo Poder Judiciário para coleta de depoimentos, além de deixá-las integralmente à disposição do Juízo para inquirição, tem por finalidade retirá-las de possíveis ambientes parciais, onde poderiam estar suscetíveis à pressão de alguma das partes, conduzindo-as a prestar o testemunho em local formal e isento.

Com a suspensão de atendimento presencial nos fóruns, tribunais e outras repartições do Poder Judiciário, a realização de audiência de instrução por videoconferência adquire outros contornos, passando a ser importante estabelecer regras procedimentais sobre o local de onde as testemunhas prestarão depoimento.

Mostra-se razoável garantir às testemunhas poderem testemunhar em Juízo sem sofrer qualquer espécie de constrangimento, por alguma das partes ou de seus prepostos. Mais do que isso. Compreende-se como relevante que as testemunhas possam prestar seus depoimentos do local onde lhes seja mais conveniente, desde que neutro, o que exclui, por óbvio, os escritórios de advocacia dos procuradores das partes no processo. Para tanto, seria bastante eficiente a dispensa das testemunhas do comparecimento ao trabalho, ao menos durante o período do dia que for realizada a audiência, na forma do preconizado no artigo 822 da Consolidação das Leis do Trabalho.

Evidentemente que tal restrição não se aplica ao reclamante ou ao reclamado a quem não haveria óbice jurídico para participar da audiência diretamente dos endereços profissionais dos(as) advogados da ação.

Outro ponto, menos polêmico, mas também, demanda cuidado em audiência. Partes e testemunhas não podem ter acesso a roteiros, peças do processo ou qualquer coisa apontando-lhes os fatos a depor. Como a audiência é realizada em videoconferência e os depoentes podem estar falando diretamente das próprias residências, exigir-lhes a demonstração mais aberta do ambiente poderá representar uma indevida invasão da privacidade, sendo que os critérios para averiguação de eventual interferência externa sobre o depoimento devem ser mais sutis.

A garantia da preservação da incomunicabilidade entre os depoentes, na forma da regra do artigo 824 da CLT, impedindo que o conteúdo de algum depoimento seja compartilhado com as demais testemunhas, requer alguns cuidados, em especial, por se tratar de audiência por videoconferência realizada a partir de locais, sem possuírem maior controle do(a) magistrado(a) que a preside.

À toda evidência que se tratando de ato processual possível somente em razão do interesse e desejo das partes, a boa-fé, como não haveria deixar de ser, presume-se e deve nortear a todos os envolvidos. Mesmo assim, é inconcebível delegar a cada magistrado e magistrada do Trabalho a possibilidade de estipular os procedimentos adotados nas audiências que vierem a presidir. Haveria, assim, inúmeras regras procedimentais diferentes gerando insegurança jurídica e tumultos processuais.

Como disposto acima, realizar audiências de instrução por videoconferência, fora das hipóteses legalmente previstas, somente é possível se elas forem compreendidas como convenção das partes. Para tanto, parece fundamental a antecedente uniformização dos procedimentos a serem adotados pelas partes, testemunhas e pela magistratura, tanto pelo Conselho Nacional de Justiça quanto pelo Tribunal Superior do Trabalho. Desse modo, com conhecimento prévio das regras procedimentais para a realização da audiência, as partes terão melhor condição para decidirem sobre sua participação.

A necessidade de distanciamento social, a demora prevista para a criação de vacina adequada, a possibilidade de novas pandemias, no entanto, tornam clara a incapacidade do aparelhamento atual do Estado para prover a necessária entrega jurisdicional desejada pela sociedade. Os(as) trabalhadores(as) não poderão aguardar mais tempo do que já aguardam para a obtenção do resultado de suas ações judiciais, normalmente discutindo verbas de caráter alimentar.

Parece evidente, apesar de todos os problemas que citamos acima, que a nova realidade impõe que em grande parte dos casos futuros as audiências terão de ser realizadas mesmo à distância.

Para tal, há a necessidade acima exposta, de regras claras, diferentes daquelas das audiências presenciais atuais - como exemplo, o eventual controle das partes e testemunhas através de geolocalização no momento das audiências. Há a necessidade de todo um treinamento da própria Magistratura para adequar-se à nova linguagem, bem como dos(as) advogados(as), cuja forma de atuar será diferente.

Cumpre ainda mencionar que a aplicação de tais regras nesse momento se restringe a um pequeníssimo contingente das ações em tramitação na Justiça do Trabalho, cujas partes e testemunhas detêm acesso privilegiado a uma internet de qualidade. Tal fato é mais um reflexo da brutal desigualdade econômica e social do país, onde se constata existirem cerca de 70 milhões de pessoas sem acesso ou acesso precário a internet, das quais aproximadamente 42 milhões relatam jamais nela terem navegado, conforme pesquisa divulgada recentemente pelos meios de comunicação.

É necessário que nossa sociedade compreenda que a pandemia também desvela essa outra situação de desigualdade: dos(as) que têm acesso à internet, e podem passar os dias com a cabeça voltada para suas telinhas brilhantes, e daqueles(as) que a ela não tem acesso e não podem participar de todos os benefícios (e dissabores) que a revolução tecnológica traz.

Essa desigualdade não se resolve facilmente, mas pode ser minorada se entendermos o acesso à internet como um direito de todos(as), assim como água, luz, saneamento, sendo um dever do Estado providenciar a infraestrutura necessária.

Essa incômoda e constrangedora realidade não permite planejar a adequada realização, em um horizonte próximo, de audiências por videoconferência como regra na Justiça do Trabalho. Elas, apesar disso, virão. Compete a nós lutarmos pelo conjunto de regras garantidoras do justo processo e do acesso de todos(as) à justiça.

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*Nasser Ahmad Allan é doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Sócio advogado do Gonçalves, Auache, Salvador, Allan & Mendonça Advocacia. Diretor do Instituto DECLATRA. Integrante da Rede Lado.

*Nilo da Cunha Jamardo Beiro é advogado, especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Sócio do escritório LBS Advogados, diretor do Instituto Lavoro e coordenador da Rede Lado de Escritórios de Advocacia.

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