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Autoinfecção de coronavírus na pesquisa

O tema traz interessantes incursões para os bioeticistas, mas gera ainda boa margem de polêmica na comunidade científica mundial.

domingo, 7 de junho de 2020

Atualizado em 8 de junho de 2020 07:01

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Cada vez aumenta mais a ansiedade mundial quando vem à tona o assunto relacionado à descoberta de alguma vacina com potencial efetivo para combater a Covid-19. Como é sabido, muitos laboratórios vêm desenvolvendo estudos, alguns já na fase de ensaios clínicos com testes em humanos. Mas tal processo é moroso e demanda um tempo razoável para encontrar a imunização ideal.

Alguns países, para abreviar todo o iter obrigatório das pesquisas, compreendendo testes iniciais em laboratório, posteriormente a utilização da droga em animais e, finalmente, a aplicação em voluntários humanos, optaram por provocar a infecção do vírus no colaborador da pesquisa, no processo conhecido como Human Challenge Trial consistente em aplicar a imunização que será testada e, na sequência, provocar a infecção no colaborador da pesquisa. Em vez de vacinar as pessoas para saber sua eficácia, os cientistas irão infectar um número mais reduzido de voluntários, que serão monitorados em ambiente que possibilite o acompanhamento com segurança.

Para o pesquisador é um ganho considerável de tempo porque irá trabalhar diretamente com a pessoa que se voluntariou para ser infectada. Não há, desta forma, como no estudo convencional, que fazer o monitoramento daquele que recebeu o medicamento ou o placebo.

Nos países em que o estudo é admitido, o voluntário deve assinar o termo de consentimento no qual se declare consciente que expõe sua vida em risco e que não pertence a nenhum grupo de vulnerabilidade. Sem a autorização a conduta passa a ser recriminada eticamente e o colaborador considerado uma cobaia humana, como nos tempos das horrendas experiências nazistas. Para tanto é remunerado e, em caso de não vingar a imunização testada, terá direito ao tratamento médico adequado e preferência na utilização de equipamentos de emergência, em busca da restitutio ad integrum.

O questionamento que se faz é se é ética e condizente com a dignidade humana a decisão do colaborador em aceitar ser contaminado pelo vírus, se a regra e o consenso mundial pregam todos os protocolos de segurança para evitar a contaminação.

Pelo princípio biótico da autonomia da vontade, que guarda também restrições, a pessoa é detentora exclusiva de tomar as decisões e fazer as escolhas existenciais que julgar convenientes, como se fosse um poder absoluto que lhe confere a soberania plena para tomar as providências relacionadas com o grande latifúndio que carrega, representado pelo corpo humano.

Na realidade, tamanha autonomia cai por terra. Basta ver que na lei de doação de órgãos,  tecidos e partes do corpo humano (lei 9.434/97), o Estado, como gestor dos direitos fundamentais, arvora-se em administrador de patrimônios vitais indisponíveis e, para tanto, estabelece normas e regras restritivas para a fruição de relevante direito.

No caso proposto de contaminação voluntária, não se trata de um desprezo à vida humana e muito menos de obter um benefício de saúde, uma vez que o participante é saudável e pode vir a óbito em razão do elevado altruísmo. A razão é mais relevante e aqui o Estado tem a obrigação de se manifestar e jamais manter-se neutro diante da autonomia individual que, em tese, apresenta uma escolha incorreta feita pelo cidadão na esfera de sua independência ética. Neste caso, cabe ao Estado não exercer a figura paternalista tradicional, mas sim figurar como órgão interveniente obrigatório e responsável pelo acompanhamento do estudo que tem por finalidade a promoção do bem maior, comum e universal.

Tanto é que a proposta de pesquisa, ao selecionar o participante, contará com a presença estatal que irá analisar todos termos apresentados e fará a ponderação de interesses orientada principalmente pelo zelo, pela segurança e as garantias que serão conferidas ao colaborador que, por sua vez, deve demonstrar de forma inequívoca o seu consentimento em todas as fases da pesquisa, tudo acompanhado por um comitê de ética idôneo.

O tema traz interessantes incursões para os bioeticistas, mas gera ainda boa margem de polêmica na comunidade científica mundial. Como se trata de um vírus que ainda é desconhecido e vem provocando alta mortalidade, sem ainda um tratamento confiável, fica até difícil explicar os riscos para o participante da pesquisa quando da feitura do termo de consentimento. Pode ser um caminho sem volta.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

 

 

 

 

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