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Competências municipais: Polícia sanitária (combate à coronavírus-19)

Deve-se, evitar, na medida do possível, situações deletérias aos interesses sociais.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Atualizado às 14:07

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No Direito Sanitário, têm havido acaloradas discussões jurídicas a respeito das competências legislativas e administrativas da União, Estados e Municípios, motivo pelo qual há decisões do Judiciário, aqui e acolá, em sentidos diametralmente opostos; a maioria delas, secundada pelo Supremo Tribunal Federal, atribui proeminência às competências estaduais e municipais, enquanto outras conferem à União estabelecer as normas fundamentais de proteção à saúde, conferindo-lhes prioridade, em face das normas regionais e locais.

A elaboração de normas sanitárias é de competência das entidades políticas, nos seguintes termos: a União elabora normas gerais; os Estados, as regionais, e os Municípios, as locais; estes e aqueles mediante leis de natureza suplementar às da União.

Autores de escol já referiram a essa competência legislativa concorrente, entre as entidades políticas, por força do artigo 24 e parágrafos, da Constituição Federal. Consideram, ainda, nas atividades legislativas e administrativas, os interesse públicos: geral, regionais e locais, respectivamente, na atuação da União, Estados  e Municípios.

Esse condomínio legislativo é muito importante no regime federativo brasileiro, na medida em que União, Estados e Municípios - além do Distrito Federal - cumulam funções legislativas e administrativas, num emaranhado de normas jurídicas, as quais devem ser bem demarcadas pela Constituição, para a segurança jurídica e para o regime democrático de Direito.

Apesar disso, no caso da coronavírus, o Supremo Tribunal Federal tem decidido, a nosso ver de maneira inconstitucional, no sentido de permitir aos Estados e Municípios atuarem em oposição às normas editadas pela União. Na prática, atribuiu-se competência alargada aos Estados e Municípios, em detrimento das normas elaboradas pela União. Isso pelo menos foi o que se viu a partir da decisão da ADI 6341-STF.

No entanto, seguindo a legislação federal, alguns Municípios têm editado decretos, permitindo abertura de setores da atividade econômica; outros pretendem, ainda, a abertura do comércio em geral, à medida de suas necessidades locais. Essa situação tem trazido conflitos entre os atos administrativos dos Estados, que restringem sobremaneira a abertura do comércio, e atos administrativos dos governos Municipais, os quais, a rigor, são mais liberais, e admitem a abertura rápida do comércio e demais atividades de interesse local.

Ora, já que a Suprema Corte permite aos Estados e Municípios atuarem na defesa da saúde, independentemente das normas do Governo Federal [como tem ocorrido], do mesmo modo, Municípios podem atuar de forma diferente dos respectivos Estados, até porque, inúmeras vezes, estar-se-á no campo de interesses locais, a justificar a preponderância das normas municipais (art.30, I, CF).

Alguém poderia alegar; Municípios não fazem parte da Federação e, assim, devem prevalecer as normas dos Estados; contudo, esse argumento não satisfaz: primeiro, o próprio STF permite aos Municípios legislar sobre polícia sanitária; segundo, no conflito entre as competências regionais e locais, na linha de raciocínio do que fora decidido por aquela Corte, devem prevalecer estas; terceiro, a competência para legislar em interesses locais é plena aos Municípios - nenhum entidade política pode imiscuir-se nessa atribuição constitucional(art.30,I, CF).

Municípios, mesmo não integrando o conceito político-jurídico de Federação [à moda americana], têm importância destacada no regime brasileiro: com a União e os Estados e o Distrito Federal, compõem a República Federativa do Brasil (art.1º, "caput",CF);  estrutura garantida e repetida no artigo 18, "caput", da CF, ao referir à organização político-administrativa brasileira. Também, o artigo 19 veda as entidades políticas (incluindo os Municípios) recusar fé aos documentos públicos; e criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (dessa forma, Estados e Municípios estão proibidos de impedir a entrada de pessoas nos respectivos territórios; só podem estabelecer regras sanitárias,  sem prejudicar a entrada delas no espaço territorial).

Finalmente, dentre outros, o artigo 30, da Constituição, estabelece amplo rol de competências municipais, numa determinação político-jurídica marcante e profundamente valiosa para a distribuição de competências legislativas e administrativas das entidades políticas. Destaque-se a autonomia político-administrativa dos Municípios, para a elaboração de leis e atos de interesse local [preponderância do interesse local]

Por isso, merecem aplausos decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao reconhecerem a necessidade local como critério para a liberação de atividade econômica no Município. Como exemplário, podemos citar o AI 2105194-57.2020.8.26, de relatoria do desembargador Leonel Costa, em Ação Civil Pública, na qual o Ministério Público pretendia suspender atividade privada, por força do decreto Estadual 64.881/2020. De acordo com o relator, "a decisão da municipalidade em autorizar o funcionamento de academias de ginástica reflete interesse local." (28.5.2020; Migalhas, 4.863, 01º.06.2020)

Portanto, na área sanitária, especificamente na pandemia coronavírus-19, não há impedimento constitucional aos Municípios de adotarem regime jurídico diferente do respectivo Estado, sobretudo quando as normas municipais forem elaboradas para proteção da liberdade física e da liberdade profissional e empresarial, garantidas constitucionalmente.

Por isso, os Municípios podem, dentre outras medidas, sempre visando ao bem-estar de seus cidadãos e dos interesses locais, observadas as normas de segurança sanitária: evitar o persistente  isolamento indiscriminado de pessoas, regulando-o de forma razoável a proporcional; estabelecer o horário de funcionamento do comércio [o fechamento só poderia ocorrer no caso de descumprimento acirrado de normas sanitárias], bem como o regime de seus bens e das vias públicas.

É a conciliação que temos propagado entre a proteção à saúde [ou à vida, para alguns, em que pesem as estatísticas parciais e sem critérios mínimos de seriedade] e à liberdade, inclusive profissional e empresarial. Pois, a paralisação da atividade econômica, meses a fio, numa prorrogação infinita de cautelas restritivas e impedientes de atuação do comércio e da indústria, põe em relevo outra pandemia: a do contumaz e avassalador desemprego! Deixar, indefinidamente, o povo confinado em seus lares é violação ao mais comezinho princípio jurídico do Direito: a liberdade!!!

Deve-se, evitar, na medida do possível, situações deletérias aos interesses sociais, a fim de proporcionar à população o mínimo de restrição à sua liberdade, com o retorno das atividades empresariais, de pequenas, médias e grandes empresas, sem prejuízo das normas sanitárias de proteção das pessoas. Parece o melhor caminho!

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*Heraldo Garcia Vitta é advogado, juiz Federal aposentado, ex-promotor de Justiça, mestre e doutor em Direito do Estado (PUC-SP). 

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