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A celebração de Acordo de Não Persecução Penal nos crimes tributários e a pandemia de covid-19

Gabriela Crespilho da Gama e Daniel Diez Castilho

De um modo geral, o legislador não teve o intuito de criminalizar o simples ato de deixar de pagar, mas sim o inadimplemento fiscal qualificado pelo agir fraudulento do agente, pela falsidade documental, fornecimento de informações inexatas ou inverídicas, dentre outras formas de ardil.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Atualizado às 12:41

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A arrecadação tributária constitui importante fonte de receita a viabilizar que o Estado desempenhe suas atividades e garanta direitos básicos à população, como educação e saúde. Não por outro motivo, muitos países optam pela criminalização da sonegação fiscal, restando evidente, portanto, a finalidade arrecadatória que permeia essa opção legislativa.

No Brasil, os crimes contra a ordem tributária são previstos pelos artigos 1° e 2° da lei 8.137/90, 168-A e 337-A do Código Penal. Importa destacar, no entanto, que, de um modo geral, o legislador não teve o intuito de criminalizar o simples ato de deixar de pagar, mas sim o inadimplemento fiscal qualificado pelo agir fraudulento do agente, pela falsidade documental, fornecimento de informações inexatas ou inverídicas, dentre outras formas de ardil.

Por esse motivo, além da representação fiscal para fins penais, a ser formalizada pelo Auditor da Receita Federal do Brasil sempre que, no exercício de suas atribuições, identificar fatos que, em tese, configuram crime (cf. art. 2° da resolução RFB 1.750/18), a imputação dos tipos penais em questão dependerá de outros fatores, tais como a efetiva existência do elemento objetivo fraudulento (para imputação dos crimes elencados nos artigos 1° e 2° da lei 8.137/90), a existência do elemento subjetivo doloso, etc. Em um momento posterior, possivelmente já no contexto de uma ação penal, far-se-á necessário ainda verificar a (in)existência de causa extintiva de culpabilidade (consubstanciada na inexigibilidade de conduta diversa).

O contribuinte poderá ainda valer-se do pagamento integral do tributo para ter sua pena extinta a qualquer tempo (cf. artigo 83, §4º, da lei 9.430/96) ou da suspensão da pretensão punitiva estatal, caso venha a aderir ao parcelamento do débito antes do recebimento de denúncia em seu desfavor (cf. artigo 83, §4º, da lei 9.430/96).

Temos, portanto, um contexto legislativo que (I) criminaliza o agir fraudulento do contribuinte, mas, em contrapartida, (II) incentiva o adimplemento fiscal em detrimento da persecução penal, o que corrobora o objetivo político-criminal de cunho arrecadatório dos tipos em análise.

No entanto, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal sinalizaram uma postura de recrudescimento do tratamento dispensado aos crimes dessa natureza. Por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 399.109, o STJ firmou o entendimento de que incorre em crime de apropriação indébita tributária, previsto no inciso II do artigo 2º da lei 8.137/90, o contribuinte que, de forma contumaz, e com dolo de apropriação, deixar de recolher o ICMS. Por meio do RHC 163.334, a matéria foi levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal, que confirmou tal posição.

O precedente traz consigo muitos pontos questionáveis, dentro os quais destaca-se a punição penal da simples inadimplência tributária1, na ausência de uma conduta efetivamente fraudulenta, tal qual determina a norma insculpida no inciso II do artigo 2º da lei 8.137/90.

Ocorre que, paralelamente a adoção desse posicionamento pelos Tribunais Superiores, sobreveio o Pacote Anticrime (lei 13.964/19), que introduziu ao Código de Processo Penal o artigo 28-A. Esse dispositivo trata da possibilidade de formalização de acordo de não persecução penal ("ANPP")2, cuja aplicabilidade aos crimes de natureza tributária vem sendo fortemente debatida. Isso porque, embora os dispositivos penais aqui tratados atendam aos requisitos estabelecidos pelo artigo 28-A3, questiona-se se (I) a extinção da punibilidade pelo pagamento não representaria desfecho mais vantajoso ao contribuinte e (II) como dar-se-ia a aplicação do disposto no inciso I do caput, segundo o qual o acordo estaria sujeito à "reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo".

Em primeiro lugar, destaca-se que o montante para pagamento integral do débito, a ser realizado junto ao fisco, comporta multa e acréscimos legais, os quais não deverão ser considerados na esfera penal4. Diante disso, temos que o valor de eventual reparação do dano em sede de ANPP seria inferior àquele cobrado pela autoridade fiscal, tornando-se mais vantajoso (e talvez mais tangível) para o contribuinte no sentido de evitar a estigmatização decorrente da persecução penal.

Além disso, o dispositivo prevê a possibilidade de formalização do acordo mesmo sem a efetiva reparação do dano, quando impossível fazê-lo. É claro que essa hipótese representa exceção à regra e, ao nosso ver, dependerá da efetiva comprovação por parte do contribuinte. De toda sorte, mostra-se perfeitamente aplicável aos crimes de natureza tributária.

Vale lembrar que, muitas vezes, o contribuinte titular do débito é uma pessoa jurídica que, não se confunde com a pessoa física sobre a qual recaí eventual responsabilidade penal. É possível, portanto, que essa pessoa jurídica venha a ser adquirida por outrem junto com seu passivo tributário. Assim, o pagamento integral do débito dependeria do novo proprietário e não do autor do fato, sujeito a responder criminalmente caso o adquirente não cumpra a obrigação. Nessa situação hipotética, resta evidente a verificação da excepcionalidade prevista pelo legislador.

É preciso destacar também que a celebração de acordo dessa natureza ganha especial relevância no atual cenário de instabilidade gerado pela pandemia de covid-19. Isso porque, não obstante o assustador número de óbitos, a crise sanitária tem impactado de forma considerável a economia mundial. Para conter os danos causados por essa crise sem precedentes as autoridades públicas vêm implementando medidas de auxílio aos mais diversos segmentos da economia, tal qual o oferecimento de linhas de crédito para as empresas, isenção tributária para importação de medicamentos e itens hospitalares, diferimento do pagamentos de alguns impostos e contribuições, etc.

No entanto, a despeito desses esforços, o impacto a ser suportado por esses setores é certo e a limitação do poder econômico tem especial desdobramento no que diz respeito ao adimplemento de obrigações tributárias pelas empresas (aquelas cujo pagamento não tenha sido postergado pela Administração Pública), o que, em última análise, poderá importar na configuração da prática de crimes contra a ordem tributária.

Conforme tratado anteriormente, no ordenamento jurídico brasileiro, a princípio, nem toda inadimplência importa prática criminosa. Ademais, nesse momento caótico, o contribuinte dispõe de uma série de mecanismos a possibilitar a dilação dos prazos para cumprimento dessas obrigações5.

É o caso da portaria ME 139 de 03 de abril de 2020, do Ministério da Economia, que prorrogou o vencimento das contribuições previdenciárias patronais (INSS) devidas, relativas aos meses de março e abril, que passam a ter vencimento equivalente às contribuições dos meses de julho e setembro, respectivamente.

Ressalte-se, no entanto, que a medida não alterou o prazo para cumprimento de algumas obrigações acessórias, tal como a apresentação de informações junto ao Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial), Guia de Recolhimento do FGTS e de Informações à Previdência Social (GFIP) e Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais Previdenciários e de Outras Entidades e Fundos (DCTFWeb)6. A atenção do contribuinte no que diz respeito a esses detalhes é fundamental para o fim de mitigar qualquer risco de natureza penal.

De toda sorte, caso o contribuinte venha a incorrer na prática dos tipos penais insculpidos artigos 1° e 2° da lei 8.137/90, 168-A e 337-A do CP, poderá valer-se da adoção dos institutos expostos anteriormente. É justamente nesse contexto que a recente alteração legislativa que trata do acordo de não persecução penal ganha fundamental relevância. Isso porque, a situação caótica que se coloca, representa de forma clara situação de excepcionalidade prevista pelo legislador como condição para a formalização do acordo mesmo sem a reparação do dano.

Ou seja, atendidos os demais requisitos elencados pelo artigo 28-A do Código de Processo Penal, em especial a confissão da prática do crime tributário em todas as suas nuances, far-se-á possível a celebração do ANPP, sem prejuízo da adoção de medidas extrapenais para posterior adimplemento dessa obrigação. É importante destacar que essa possibilidade existiria em diversos outros cenários, a crise econômica desencadeada pela pandemia de covid-19 apenas coloca essa discussão em evidência, porquanto representa notória causa de excepcionalidade a ser alegada no contexto de um possível acordo.

Portanto, nesse momento de grave crise (sanitária, econômica, social, etc), o contribuinte dispõe de diversas possibilidades de prevenção do risco penal e, em última análise, poderá contar com a benesse recentemente introduzida ao ordenamento jurídico nacional com o advento da Lei Anticrime ou mesmo com os demais institutos aqui tratados, podendo restar reconhecida a atipicidade da conduta, a existência de causa excludente de culpabilidade ou mesmo a extinção da punibilidade pelo pagamento integral do débito.

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1 ESTELLITA, Heloisa. PAULA JUNIOR, Algo de Paula. O STF e o RHC 163.334: uma proposta de punição da mera inadimplência tributária?. Ultimo acesso em 21.05.20.

2 Importante destacar que o acordo de não persecução penal já constava da pauta de discussão no cenário jurídico nacional a regulamentação do tema por meio das resoluções 181/17 e 183/18, tendo em vista que o Conselho Nacional do Ministério Público.

3 Dentre os pressupostos trazidos pelo caput do artigo estão: I - confissão formal e circunstanciada do agente; II - infração praticada sem violência ou grave ameaça; III - pena mínima inferior a quatro anos. Além disso, o §2º elenca as seguintes vedações: I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

Os incisos I a V do caput, por sua vez, tratam dos requisitos para formalização do acordo: I - reparação do dano ou restituição a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renúncia voluntária a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução; IV - pagamento de prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; V - cumprimento, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

4 "RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. INSIGNIFICÂNCIA. PARÂMETRO. DEZ MIL REAIS. INCLUSÃO DE JUROS E MULTA. DESCABIMENTO.

(...) 2. A consideração, na esfera criminal, dos juros e da multa em acréscimo ao valor do tributo sonegado, para além de extrapolar o âmbito do tipo penal implicaria em punição em cascata, ou seja, na aplicação da reprimenda penal sobre a punição administrativa anteriormente aplicada, o que não se confunde com a admitida dupla punição pelo mesmo fato em esferas diversas, dada a autonomia entre elas. 3. O valor a ser considerado para fins de aplicação do princípio da insignificância é aquele fixado no momento da consumação do crime, vale dizer, da constituição definitiva do crédito tributário, e não aquele posteriormente alcançado com a inclusão de juros e multa por ocasião da inscrição desse crédito na dívida ativa. 4. Recurso improvido. (STJ, REsp 1306425/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 10.06.14, DJe 01.07.14).

5 Nesse sentido, elenca a agência Brasil. Clique aqui. Ultimo acesso em 21.05.20.

6 Informação disponível em: Clique aqui. Ultimo acesso em 21.05.20.

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*Gabriela Crespilho da Gama é especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada criminalista, associada ao escritório Zanoide, Braun e Castilho Sociedade de Advogados.

*Daniel Diez Castilho é especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e graduado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado criminalista, sócio do escritório Zanoide, Braun e Castilho Sociedade de Advogados.

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