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Analfabetos, idosos e o acesso ao Poder Judiciário em tempos de pandemia

A comunidade jurídica tem, inegavelmente, inúmeros desafios a enfrentar. E eles são latentes!

terça-feira, 23 de junho de 2020

Atualizado às 09:55

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A pandemia da covid-19 trouxe à tona uma série de problemáticas até então não percebidas ou não enfrentadas, ao menos por boa parte da população.

Uma delas, observada e considerada em especial neste texto, é com relação ao elevado número de analfabetos e de idosos brasileiros, contextualizados aqui como sujeitos de direitos que demandarão por seus direitos em processos com atos judiciais que serão cada vez mais virtuais e que ocorrerão com a utilização cada mais maciça de recursos tecnológicos, em um contexto de pandemia.

Desde que foi decretada pela Organização Mundial da Saúde a situação desencadeada pelo novo coronavírus, autoridades e responsáveis pelos mais variados setores do mundo inteiro têm buscando por alternativas e por recursos, a fim de que as atividades da existência humana tenham continuidade.

Neste sentido, a fim de assegurar tratativas efetivas para o caminhar da justiça brasileira, o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, expediu e tem expedido resoluções que estabelecem como deve se dar a tramitação dos processos judiciais da maneira mais célere possível, sem que os direitos amparados pela legislação vigente sejam prejudicados por conta do transcorrer do tempo, diante da impossibilidade da prática de atos físicos, por conta da recomendação do isolamento social.

As resoluções do CNJ têm em comum, em sua maioria, a orientação para a utilização de inúmeros recursos digitais, seja para o peticionamento em processos, para a realização de audiências ou para quaisquer outros atos que se façam necessários, com regulamentações que valem para serventuários da justiça, partes e advogados.

As inovações trazidas pelas resoluções, oriundas da realidade de que os direitos precisam continuar a ser perseguidos e de que os processos continuem tramitando, defrontam-se com os dados demográficos brasileiros referentes aos índices de analfabetos e de idosos.

Ao se fazer este entrelace, alguns problemas começam a emergir, para os quais a necessária atenção por parte dos operadores do direito, num todo, se faz medida urgente e irretocavelmente necessária.

Há no país pelo menos 11,3 milhões de pessoas com mais de 15 anos que são analfabetas (ou, por assim dizer, um percentual de 6,8% de pessoas que representa o índice de analfabetismo), e ainda existem mais de 28 milhões de pessoas com 60 anos ou mais (uma estimativa de que isso implique em ser de 13% a população de idosos do país).

Estes números, significativamente expressivos, representam indagações que se resumem em uma única pergunta: mantidos os atendimentos virtuais e a prática de atos judiciais preferencialmente por meios digitais, como recomenda o CNJ, considerando-se que esta é a medida mais justa e acertada, a fim de que muitas vidas sejam salvas e de que a propagação da covid-19 tenha um mínimo controle, como se dará o acesso de pessoas analfabetas e/ou idosas ao Poder Judiciário?

A educação fundamental nacional é inegavelmente deficitária, haja vista que o percentual da população brasileira que concluiu a educação básica obrigatória, ou seja, que concluiu, no mínimo, o ensino médio, é inferior a 50%.

Na outra ponta cronológica da existência humana, quando falamos de idosos, a porcentagem de analfabetos neste grupo é de aproximadamente 20%, ressaltando-se ainda que na região Nordeste a população analfabeta com 60 anos ou mais chega a quase 40%.

Deste entrosamento de dados, a conclusão é simples: um expressivo número de pessoas com tão deficitária instrução básica e ainda com um poder aquisitivo irrisório, uma vez que é público e notório para qualquer comunidade, nacional ou internacional, que o Brasil é um país em desenvolvimento, com um desnível de distribuição de rendas absolutamente significativo, e ainda uma gama extensa de idosos, que anteriormente à pandemia já apresentavam imensas dificuldades para que se fosse efetivada a tão almejada inclusão digital, não apresentarão qualquer condição de acesso à internet para a realização dos atos processuais que se fizerem necessários, seja pela ausência da capacidade de compreensões mínimas acerca da tecnologia que se fará necessária, seja pela impossibilidade de acesso aos recursos que se tornarão cada vez mais fundamentais.

Até que comunidade científica mundial descubra um caminho eficaz para o extermínio ou para um mínimo controle farmacológico da covid-19, fato é que todas as medidas praticadas por qualquer ser vivente no planeta terra na luta contra esse inimigo invisível da humanidade serão apenas paliativas.

Por isso, alternativas para com a situação abordada nestas reflexões precisam urgentemente de reflexão. Caminhos novos precisam ser traçados e perseguidos nas práticas diárias dos que transitam pela imensidão do universo jurídico.

Ao iniciarmos as ponderações para que se imagine um novo traçar de caminhos, de pronto descartamos a hipótese de se aventar a possibilidade de que as medidas propostas pelo CNJ sejam flexibilizadas quando for evidente uma situação na qual uma parte na causa, seja porque é analfabeta ou idosa e por não poder acessar as alternativas disponíveis porque isso foge de suas possibilidades reais, venha a ter seu comparecimento pessoal como única alternativa a qualquer unidade judiciária do país.

Ainda que não exista no Direito brasileiro qualquer direito que seja absoluto, a vida humana tem valor máximo, e não há de ser a arbitrariedade de conjecturas neste sentido que refletiriam em uma suposta diminuição de sua valia.

Pensamos então se seria o caso de serem redesenhadas algumas leis, como a lei 9.099/95, por exemplo, que exige o comparecimento pessoal da parte a todos os atos processuais.

No contexto dos juizados especiais, teriam os procuradores constituídos poderes para representar e transigir por seus clientes nos atos que se fizerem necessários e isso se tornaria uma regra, ainda que na excepcionalidade da pandemia, desde que estes patronos tenham acesso às plataformas digitais e que possam exercer o múnus da advocacia com toda a dignidade que lhes deve ser presente?

E quanto à oitiva de testemunhas? Como se pensar na obrigatoriedade de um testemunho sem condições sanitárias mínimas em complemento à realidade do analfabetismo, da idade avançada e do déficit tecnológico?

A comunidade jurídica tem, inegavelmente, inúmeros desafios a enfrentar. E eles são latentes! Alguns, ponderados neste texto, sem a menor pretensão de se esgotar a temática, consignados apenas sob uma perspectiva de pensamentos, à uma ótica absolutamente peculiar.

A latência da necessidade quanto ao enfrentamento dos novos desafios é medida apta a repercutir a justiça, em uma busca conjunta por todos que militam no Poder Judiciário.

As resoluções e as orientações proferidas pelo Conselho Nacional de Justiça neste momento tão caótico no sentido de orientarem e de determinarem como se dará o processamento de direitos e a realização de atos que os viabilizem, têm abrangência e validade nacionais, assim como os têm toda a demais legislação nacional vigente.

Resoluções, orientações e toda a legislação devem servir a todos, em condições de igualdade, respeitadas e sopesadas todas e quaisquer diferenças e entraves, já que a justiça só é justa quando, pela máxima da Constituição Federal, os iguais são tratados igualmente e os desiguais, desigualmente.

A todos fica a consideração de que é hora de se reconceituar o justo e persegui-lo em prol dos rostos, histórias e fatos representados por um número expressivo de brasileiros que precisa e que tem o direito de acessar o Poder Judiciário, respeitados e considerados em suas individualidades e em suas particularidades, de modo a se fazer surgir, em conjunto, um novo conceito de justiça.

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t*Natalia Carolina Verdi é advogada, especialista em Direito Médico, Odontológico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito, especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mestre em Gerontologia pela PUC-SP, professora convidada, palestrante, autora, blogueira no blog Direitos do Longeviver, junto ao Portal do Envelhecimento.

 

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