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O covid-19 e a teoria dos atos ultra vires

Vamos expor, brevemente, os motivos pelos quais administradores e controladores de sociedades empresárias não podem ser responsabilizados pelos atos ultra vires realizados em prol do combate ao covid-19.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Atualizado às 09:53

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A pandemia do covid-19 trouxe ao mundo uma crise sanitária e econômica sem precedentes.

Em razão do alto índice de contágio e do baixo conhecimento acerca do vírus, a solução mais eficaz encontrada pelos governos para reduzir a propagação da doença foi a suspensão imediata das atividades de vários setores da economia com vistas a impor o distanciamento social necessário.

No Brasil, em resposta aos efeitos calamitosos do surto pandêmico, várias empresas tomaram iniciativas solidárias - e salutares - para ajudar na redução do impacto do covid-19 dentro da sociedade.

Cervejaria que produziu e doou vários litros de álcool em gel, mineradora que importou e doou inúmeros equipamentos de proteção individual, varejista de produtos esportivos que confeccionou e doou máscaras à hospitais, esses são apenas alguns dos exemplos de múltiplas empresas que tomaram iniciativas em prol do combate ao coronavírus.

Pois bem. É de conhecimento comum que a empresa tem sempre por objetivo produzir e partilhar lucros, e, portanto, os atos incompatíveis com o escopo lucrativo, bem como os que não correspondem ao objeto social, não produzem seus regulares efeitos jurídicos.

Sendo assim, se a sociedade atua fora daquilo que constitui o seu objeto, há de se concluir que não atuou. É a teoria dos atos ultra vires (do latim, além das forças), segundo o qual a capacidade de obrigar-se da pessoa jurídica só existe enquanto ela atua em busca dos fins para os quais foi constituída. Essa teoria gravita em torno dos atos praticados pelos administradores da sociedade fora de seu objeto, ou seja, com abuso de poder.

Faz-se necessário destacar que, não se deve confundir os atos ultra vires societatis com os atos com excesso de poder em sentido estrito. Os atos com excesso de poder são aqueles quando o administrador age dentro dos limites do objeto social, todavia ultrapassa as fronteiras estabelecidas para pautar sua atuação. Aí há limitação aos poderes do administrador, mas não à capacidade de agir da pessoa jurídica, não se podendo falar, por isso, em ato ultra vires.

O fato é que o administrador possui uma certa margem de discricionariedade na condução dos negócios da companhia, mas sempre visando a realização dos fins sociais. A avaliação de conveniência e oportunidade na tomada de decisões é própria de quem administra.

Ressalte-se, todavia, que poder discricionário não é o mesmo que poder arbitrário, porquanto discricionariedade é liberdade de ação administrativa dentro dos limites permitidos na lei e no estatuto social.

Sendo assim, considerando que os atos de auxílio no combate ao coronavírus podem ser classificados como situações que fogem ao objeto das sociedades empresárias, e, por consequência, deságuam na teoria dos atos ultra vires, podem os administradores ou controladores da sociedade ser responsabilizados?

Nos parece que não, isso porque, no âmbito da disciplina dos administradores e do acionista controlador o legislador previu na lei 6.404/76 (Lei das S/A) normas de caráter institucional, ou seja, normas que impõem ao controlador e ao administrador também o respeito e o zelo para com interesses que extravasam a órbita societária interna.

Como se vê do art. 116, p.ú, da Lei das Sociedades Por Ações, que define o poder de controle, o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades perante os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e perante a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

No mesmo sentido, o art. 154 da lei 6.404, que discorre sobre os deveres do administrador, aduz que o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.

Importante destacar, inclusive, que o §4º do aludido art. 154 fala que o conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais.

Em ambos os dispositivos (arts. 116 e 154 da lei 6.404/76) fica evidente o dever daqueles que dirigem a companhia de observar sempre o princípio da função social da empresa. Cumprir a função social implica assumir a plenitude da responsabilidade social, tendo o dever ético de pôr em prática políticas sociais tendentes a melhorar as condições e a qualidade de vida da sociedade.

Por sua vez, agir com responsabilidade social significa conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torne parceira e corresponsável pelo desenvolvimento social. A empresa socialmente responsável é aquela capaz de acolher os interesses das diferentes partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo, meio ambiente), buscando atender às demandas de todos e não apenas dos acionistas ou proprietários.

E se é assim, não há como responsabilizar administradores ou controladores da companhia que, embora realizem atos fora do objeto social ou do escopo lucrativo da empresa, atuem em benefício da comunidade exercendo sua função social dentro das autorizações contidas na Lei das Sociedades por Ações.

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*João Ricardo Tavares é advogado, sócio do Paurá Advocacia. Especialista em Direito Empresarial pela FGV/Rio

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