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Proibição de expulsão de estrangeiro com filho brasileiro: prevalência do paradigma de direitos humanos

Thais Tozzini Ribeiro

O STF decidiu que a expulsão de imigrante com filho brasileiro do qual tenha guarda e apoie economicamente é vedada. A decisão se alinha com o padrão de direitos humanos sobre a migração adotado pela Constituição Federal e Lei de Migração.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Atualizado às 07:11

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No dia 25 de junho de 2020, no julgamento do RE 608898 com repercussão geral (tema 373), o plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, de forma unânime, que a expulsão de estrangeiro com filho brasileiro nascido depois de fato criminoso que a motivou é incompatível com os princípios constitucionais de proteção à criança e à família.

Com essa decisão, o STF fixou a seguinte tese: "O § 1º do artigo 75 da lei 6.815/1980 não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, sendo vedada a expulsão de estrangeiro cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob guarda do estrangeiro e deste depender economicamente".

O caso julgado se refere a cidadão da Tanzânia condenado, em 2003, por uso de documento falso, conduta caracterizada como crime nos termos do artigo 304 combinado com o artigo 297 do Código Penal, que teve sua expulsão decretada em portaria do Ministério da Justiça em 2006.

O Supremo Tribunal de Justiça havia proibido a expulsão ao levar em conta os princípios da proteção do interesse da criança previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A União questionou essa ideia com o argumento de que o Estatuto do Estrangeiro só vedava a expulsão se a prole brasileira fosse anterior ao seu fato motivador. Assim, impedir a expulsão no contexto do caso analisado contrariaria a soberania nacional, já que essa é uma decisão discricionária do presidente da República.

O recurso começou a ser julgado em novembro de 2018 pelo relator do caso, o ministro Marco Aurélio. Ele observou que a regra do Estatuto do Estrangeiro (artigo 75, parágrafo 1º, da lei 6.815/1980) que admite a expulsão nessas condições não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. O ministro afirmou que o dispositivo do Estatuto do Estrangeiro contraria o princípio da isonomia, ao dar tratamento discriminatório a filhos havidos antes e após o fato motivador da expulsão. Segundo ele, os prejuízos para a criança independem de sua data de nascimento ou adoção, muito menos do marco aleatório representado pela prática da conduta motivadora da expulsão. Nessa ocasião, acompanharam o voto do relator os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski e houve pedido de vista pelo ministro Gilmar Mendes.

Ao retomar o julgamento com apresentação do seu voto vista no dia 25 de junho de 2020, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o relator no entendimento de que o decreto de expulsão é incompatível com a ordem constitucional atual, que consagra a preservação do núcleo familiar e o interesse afetivo e financeiro da criança. Além disso, destacou que a Lei de Migração (lei 13.445/2017), que revogou inteiramente o Estatuto do Estrangeiro, proíbe expressamente a expulsão quando a pessoa tiver filho brasileiro sob sua guarda ou dependência econômica ou socioafetiva, independentemente da data de nascimento ou adoção. Celso de Mello e Dias Toffoli também acompanharam o relator.

Dessa forma, o referido julgamento demonstra que, aos poucos, o Poder Judiciário e a própria sociedade brasileira buscam adotar o paradigma de direitos humanos e integração presente na Lei de Migração (que inclusive traz a não criminalização de migrantes por sua condição migratória) em detrimento do paradigma de segurança nacional constante no Estatuto do Estrangeiro em relação a figura do migrante, compreendendo nesse caso concreto que a manutenção do núcleo familiar é mais importante do que proteção da ordem pública por si só.

Importante mencionar que, conforme é referido nos votos dos ministros,  o primeiro passo na construção da lógica de aplicação de direitos humanos para a população migrante no Brasil foi a própria Constituição Federal, que, no caput de seu artigo 5º, ao falar dos direitos individuais e coletivos dos cidadãos, coloca em pé de igualdade os brasileiros e os estrangeiros, não compactuando com a lógica discriminatória do Estatuto do Estrangeiro.

Apesar de não estar diretamente relacionada com este conceito, a decisão do STF reforça a importância do conceito de reunião familiar constante na Lei de Migração, que é uma modalidade de permanência no país que visa aproximação da família, mantendo a unidade de seus membros.

Além disso, a decisão do STF não favorece aqueles migrantes que, no período do cumprimento de pena, possam eventualmente decidir com sua companheira por uma gravidez no momento de visita íntima com a intenção de permanecer no país, visto que os ministros deixam claro duas condições: a necessidade da criança estar sob guarda do estrangeiro e dele depender economicamente. Assim, é uma decisão que não deixa "brecha" para que indivíduos tirem vantagem da proteção conferida por ela.

Importante ressaltar, contudo, que há diferenças no entendimento jurisprudencial do STF em relação ao assunto em casos de expulsão e extradição. A primeira situação consiste na devolução do estrangeiro ao país de origem depois do cumprimento de pena devido a ilícito cometido no Brasil. Assim, como cuida-se de medida de polícia, dependente de um juízo discricionário de inconveniência da estada do estrangeiro no território nacional, o STF defende que esse juízo de conveniência pode ser sobreposto pelo interesse do filho brasileiro1, entendimento este que foi reforçado pela Suprema Corte na decisão da quinta-feira passada.

Contudo, em relação a extradição, onde temos a saída compulsória do estrangeiro, em virtude de crime cometido em outro país, que pede para receber de volta o cidadão foragido, o entendimento jurisprudencial do STF é completamente diverso. A súmula 421 deste tribunal dispõe que: "Não impede a extradição a circunstância de ser o extraditando casado com brasileira ou ter filho brasileiro." Isso ocorre porque, em tema de cooperação internacional na repressão a atos de criminalidade comum, a existência de vínculos conjugais e/ou familiares com pessoas de nacionalidade brasileira não se qualifica como causa obstativa da extradição2. Ou seja, na avaliação de extradição, é irrelevante considerar as relações familiares tendo em vista que é um assunto de cooperação internacional.

Esperamos que, ao analisar questões semelhantes envolvendo migração, o sistema de justiça brasileiro continue a adotar entendimento condizentes com esse novo paradigma, conferindo aos migrantes e seus familiares a proteção que lhes foi conferida pela legislação brasileira contemporânea.

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1 Entendimento sedimentado pelo seguinte precedente: Ext 510, Voto do min. Sepúlveda Pertence, P, j. 6-6-1990, DJ de 3-8-1990.

2 Entendimento sedimentado pelo seguinte precedente: Ext 1.343, rel. min. Celso de Mello, 2ª T, j. 21-10-2014, DJE de 19-2-2015.

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t*Thais Tozzini Ribeiro é advogada de Szazi, Bechara, Storto, Reicher e Figueirêdo Lopes Advogados. Mestranda em Relações Internacionais pela USP. Integrante do "Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes" (ProMigra), vinculado a Faculdade de Direito da USP, que atua na promoção, conscientização e efetivação dos direitos dos migrantes na cidade de São Paulo e região metropolitana.

 

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