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STJ e o caso Samarco: Convenção de Haia e carta rogatória no pre-trial discovery

Na ação movida por fundos de pensão estadunidenses contra a Samarco, sob a alegação defensiva de violação à Convenção de Haia, o STJ precisou decidir sobre a concessão de exequatur à carta rogatória

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Atualizado em 20 de julho de 2020 14:05

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Um grave acidente, de repercussão global, o maior desastre socioambiental da história do Brasil ocorreu no ano de 2015 em Bento Rodrigues, distrito da cidade mineira de Mariana, com o rompimento da barragem de Fundão e a liberação de 40 milhões de litros cúbicos de rejeito de minério, responsáveis pela devastação de diversas cidades. A barragem, operacionalizada pela mineradora Samarco, era utilizada pela Vale - que, ademais, é coproprietária daquela mineradora.

Ocorre que a Vale é uma das empresas com parcela da sua operação no país e que negociam ações nos Estados Unidos, sob a forma jurídica de ADR (american depositary receipts). Nesse sentido, por conta do mercado acionário, a empresa possui o dever legal de fornecer informações periódicas a respeito das suas operações, nos moldes do órgão regulatório ianque, a SEC (Securities and Exchange Commission).

Após o referido acidente, as entidades gestoras de fundos de aposentadoria ACERA e OCERS1, entre outros interessados, com fulcro na lei estadunidense de valores mobiliários, moveram ação coletiva em face da Vale junto a Justiça Estadual dos Estados Unidos da América, na Corte do Distrito Sul de Nova Iorque, pleiteando pelo pagamento de indenização, pois, alegaram, a mineradora prestou declarações falsas e omitiu dados relevantes referentes ao uso da barragem e à contenção de rejeitos de minério, especialmente em relação à segurança e à sustentabilidade, induzindo-os, portanto, ao investimento em ações da companhia, suportando, após o acidente, milhões de dólares em prejuízos. Nos autos do processo, o tribunal nova-iorquino expediu Carta Rogatória requerendo ao Brasil que obrigasse "a Samarco, em amparo à justiça, através do devido processo regular (...), a comparecer perante a autoridade adequada, representada por uma ou mais pessoas cientes dos assuntos (...) e a fornecer respostas orais sob juramento, às perguntas (...) e a eventuais perguntas de acompanhamento".

A decisão do STJ que concedeu o exequatur à carta rogatória

As autoras protocolaram, diretamente no STJ, o pedido de exequatur à Carta Rogatória2 expedida nos autos do processo estrangeiro e adequadamente apostilada, com fundamento nos decretos 1.899/96 e 8.660/16 que promulgaram, respectivamente, a Convenção Interamericana sobre Cartas Rogatórias e Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros. Após a apresentação de impugnação3 pela Samarco e de manifestação favorável à concessão do exequatur pelo Ministério Público Federal, o ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça acolheu, monocraticamente, com fulcro no artigo 216-O do Regimento Interno do STJ, o pedido autoral, concedendo o exequatur.

A ré, então, interpôs Agravo Interno e, após a manifestação das autoras e do MPF, a Corte Especial do STJ, por unanimidade, negou provimento ao recurso, mantendo o exequatur concedido à Carta Rogatória. Assim, expediu-se ordem de cumprimento do exequatur à Justiça Federal de Belo Horizonte.

O pre-trial discovery of documents, a Convenção da Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial e o Brasil

A principal polêmica na concessão do exequatur à Carta Rogatória em exame diz respeito ao pre-trial discovery e à mencionada Convenção de Haia sobre Provas, promulgada pelo decreto 9.039/17. Isso porque, quando houve sua Adesão, amparado pela cláusula geral do lex fori regit processum, o país formalizou declaração ao artigo 23 da Convenção de Haia a fim de afastar a possibilidade de cumprimento das Carta Rogatórias no âmbito da fase pré-processual que é própria dos países do Commom Law.

O referido procedimento (discovery), em geral, é incompatível com a processualística brasileira, pois cuida-se de procedimento probatório prévio ao processo judicializado e, por essa razão, é conduzido pelas partes quase sem nenhuma intervenção judicial. Nesse sentido, não se olvida, o Brasil, cujo ordenamento tem tradição romano-germânica (Civil Law), voltado ao direito amplamente codificado e regulado, atribuiu ao juiz de direito o poder-dever de conduzir a produção das provas, sempre no curso de um processo judicial, ainda que acautelatório (artigos 369 e 370 do Código de Processo Civil).

O adequado controle de licitude pelo STJ na concessão do exequatur

A autora, buscando afastar o cumprimento do pleito cooperativo rogado, fundamentou suas alegações, especialmente, na cláusula geral e indeterminada de violação à ordem pública. Contudo, acertadamente, o STJ reconheceu, por um lado, a possibilidade de que os representantes da Samarco, nos limites da sua ciência acerca dos fatos, prestem informações ao juízo da demanda estrangeira, afastando a incidência do artigo 447, § 2º, inciso III do CPC que impede o testemunho de representante de empresa que integre o feito como parte.

E assim porque, embora não se desconsidere que a Samarco, não sendo parte na demanda estrangeira, é juridicamente interessada, o juízo rogante requereu, em verdade, a oitiva de testemunha - o que, em medida alguma, é instituto jurídico desconhecido ou não adaptável, tampouco atípico. Logo, considerando todas as variáveis e a adequada exegese das normas insculpidas no Código de Processo Civil incidentes à espécie, não seria adequado desconsiderar que "ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade" (artigo 378, CPC) e, ainda, que "incumbe ao terceiro, em relação a qualquer causa (...) informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento" (artigo 380, I, CPC). No mais, nenhuma violação haverá na realização do ato, pois a própria disciplina legal está apta a preservar os direitos da ré, afinal, ao comparecer ao juízo rogado, lhe estará preservado o direito de não produzir prova contra si própria (artigo 379, CPC).

Por outro, a declaração do Brasil, a respeito da cláusula 23 da Convenção de Haia sobre Provas, não pretendeu impedir a cooperação internacional brasileira, mas afastar eventuais abusos, incompatibilidades com o ordenamento nacional e violações a direitos humanos. Nesse sentido, antes de tudo, é de se verificar que o pedido de produção probatória foi realizada por juiz de direito nos autos de processo já em curso, afastando a principal preocupação da declaração brasileira em comento, qual seja, o pre-trial discovery.

Assim, considerando que o conteúdo da Carta Rogatória diz respeito a instituto jurídico conhecido e adaptável e, no mais, houve o adequado apostilamento e tradução para o português, o STJ não poderia mesmo afastar a concessão do exequatur pretendido, sob pena de violação ao ordenamento nacional e aos tratados de cooperação internacional ratificados pelo Brasil.

É pacífica a compreensão de que a produção de prova estrangeira não poderá ocorrer de forma atentatória ao direito nacional. Entretanto, tal qual ocorreu no caso em análise, para se afastar a denegação de justiça que violaria o direito fundamental a adequada prestação jurisdicional, deve-se sempre buscar o conteúdo, a vigência o sentido e o alcance das normas incidentes ao pleito cooperativo. Afinal, em 1988, o Brasil inaugurou um Estado cooperativo com a promulgação da sua Constituição Federal (art. 4º da CF) e, em 2015, com o Novo Código de Processo Civil, privilegiou a cooperação jurídica internacional interessada.

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1 ACERA (Alameda County Employees' Retirement Association) e OCERS (Orange County Employees Retirement System) são gestoras de fundo de pensão estadunidenses, localizadas no estado da Califórnia.

2 Carta Rogatória 13.192/US (2018/0076223-6), relatada pelo Ministro Presidente do Superior Tribunal de Justiça, cuja decisão final transitou em julgado em 9/9/19.

3 Foram as teses defensivas: "a) necessidade de apreciação da presente rogatória pelo órgão colegiado e em conjunto com a CR n. 13.193/US; b) observância do sigilo profissional, que a impediria de prestar as informações solicitadas; e c) ausência de adesão formal dos Estados Unidos da América à Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial, o que implicaria violação da ordem pública e o consequente reconhecimento da improcedência do pedido rogatório".

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*Renata Alvares Gaspar é pós-doutoranda em Direito pela UFU. Doutora em Direito e Mestre em Estudios Latinoamericanos pela Universidade de Salamanca. Consultora Jurídica para do MERCOSUL. Coordenadora e Pesquisadora da Rede de Pesquisa de Processo Civil Internacional. Líder do Grupo de Estudo Direito, Globalização e Cidadania. Membro da Academia Brasileira de Direito Internacional. Sócia do escritório Massarente e Gaspar Advocacia. Mãe de uma Filha e esteve de licença maternidade em 2018.

*Felipe S. Vivas de Castro é pós-graduando em Processo Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Coordenador do Grupo de Estudo Direito, Globalização e Cidadania. Advogado no Santos Bevilaqua Advogados.

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