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A aplicação da lei penal pelos Tribunais: Uma discussão necessária

A proteção da sociedade, por melhor que seja a intenção do julgador, não é tarefa primordial a cargo da Justiça Criminal, posicionada na retaguarda da defesa social.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Atualizado às 09:41

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Enquanto as atenções voltaram-se para fatos envolvendo um desembargador em Santos, com grande repercussão na mídia e indignação nos meios jurídicos1, outro acontecimento recente também merece escrutínio por sua relevância.

O ministro Rogério Schietti, do Superior Tribunal de Justiça, em evento virtual promovido pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), fez críticas duras às decisões emanadas da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no sentido de haver um rigor excessivo, em contrariedade às diretrizes jurisprudenciais dos tribunais superiores, o que levou o presidente da Seção Criminal do TJ/SP, desembargador Guilherme Strenger, a emitir nota2, reagindo a tais afirmações.

A polêmica instaurada sugere a urgente necessidade de superar divergências e rever procedimentos, visando, sobretudo, ao aprimoramento da prestação jurisdicional.

O crescente rigor das decisões criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo talvez possa ser explicado pela escalada da criminalidade no Estado, de maneira que a Justiça criminal se sente obrigada a combater essa perda de segurança que intranquiliza a população. Induz uma cultura de severidade, quando se trata de julgar recursos da defesa ou habeas corpus.

Esse fenômeno é verificável pelo próprio conteúdo da manifestação do presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça, ao declarar que a prestação jurisdicional se faz "com estrito cumprimento das leis e consequencialismo, buscando, primordialmente, proteger a sociedade e os cidadãos de bem, cumpridores de seus deveres, que não transgridem normas e se portam de maneira ordeira e correta" (grifos nossos).

O citado "consequencialismo", ao ser deslocado do seu campo natural de ocorrência para orientar decisões criminais, acaba por gerar distorções graves, exatamente por confrontar o estrito cumprimento das leis, assim afastando-se da sua correta aplicação teleológica.

Ademais, a afirmação de que "primordialmente" busca-se "proteger a sociedade e os cidadãos de bem", parece mais alinhada à competência de órgãos de segurança pública que às altas atribuições do Poder Judiciário, que deve atuar, isto sim, "sempre respeitando os direitos e garantias fundamentais dos acusados", como também enfatiza, com propriedade, o desembargador Strenger. E, ainda, sujeitar-se aos precedentes jurisprudenciais das cortes superiores, mais enfaticamente quando forem favoráveis à defesa.

A proteção da sociedade, por melhor que seja a intenção do julgador, não é tarefa primordial a cargo da Justiça Criminal, posicionada na retaguarda da defesa social3. A maior rigidez empregada nas suas decisões, sabidamente, não atinge essa finalidade; antes, provoca resultados contraproducentes, como, v.g., o aumento exagerado de prisões cautelares e penas privativas de liberdade, voltadas a situações em que reações penais mais brandas seriam suficientes e, portanto, consentâneas com o arcabouço normativo, de modo a evitar ou diminuir o contencioso que vai desaguar nos tribunais superiores.

Ao que parece, terá sido essa a intenção das observações formuladas pelo ministro Schietti - apontar que o rigor demasiado não conduz a bons resultados, provoca insegurança jurídica e congestiona os tribunais superiores com volume invencível de novos recursos e habeas corpus, acúmulo evitável se houvesse maior emparelhamento decisório entre os tribunais.

Também o Superior Tribunal de Justiça pode e deve aprimorar seus julgamentos. A extrema dificuldade de ver conhecido um recurso especial e, posteriormente, de obter a sua procedência, é causa de deformidades do sistema. Aumenta a impetração de habeas corpus - por vezes, a única maneira de ter acesso ao Tribunal Superior -, assim como a escassez de julgamentos desses recursos em prol da defesa não oferece a gama necessária de orientações que se poderia esperar da jurisprudência, inclusive para balizar o entendimento dos tribunais inferiores4.

Diante desse contexto, há de se objetivar maior adequação e equilíbrio entre os fins da Justiça Criminal e sua atuação eficiente como meio de pacificação social.

As ponderações dirigidas ao Tribunal de Justiça bandeirante, no que concerne ao excessivo rigorismo da sua atuação no campo penal, portanto, encontram sustentação, mas não se pode crer que a intenção dos magistrados paulistas seja "medir forças" com os tribunais superiores, como sugeriu o ministro, possivelmente apenas com o intuito de estimular essa necessária discussão.

As considerações, de parte a parte, conduzem à conclusão de que é imperioso estabelecer melhor interação entre os tribunais, no interesse de todos e especialmente dos jurisdicionados, sem dispensar o concurso da advocacia, que pode oferecer auxílio substantivo para a superação das dificuldades existentes, em cumprimento ao artigo 133 da Constituição Federal.

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1 Leia-se o excelente artigo do advogado e professor José Rogério Cruz e Tucci no portal jurídico Migalhas.

2 Nota publicada em Migalhas, 20.7.2020.

3 Ruiz Filho, Antonio. Artigo publicado pelo portal jurídico Migalhas, 24.04.2020: "Direito Penal, seu processo e algumas verdades incômodas".

4 Ruiz Filho, Antonio. Artigo para a Revista do Advogado nº 141, "30 anos do Superior Tribunal de Justiça"  editada pela Associação dos Advogados de São Paulo (AASP): "Habeas corpus: problema ou solução?", 2019, p. 18.

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t*Antonio Ruiz Filho é advogado criminalista. É presidente da Comissão de Defesa da Democracia e de Prerrogativas da Federação Nacional dos Advogados. Sócio do escritório Ruiz Filho Advogados. Foi presidente da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo, diretor da OAB/SP - Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo e do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.

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