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Breves considerações sobre a responsabilidade dos anunciantes e apresentadores: O caso da empresa 123importados

Neste artigo propõe-se a revisão da responsabilidade civil das empresas de comunicação, no sentido de que, conforme o caso concreto, respondam por danos ao consumidor em razão da veiculação de publicidade flagrantemente fraudulenta.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Atualizado às 07:57

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No início do mês de julho de 2020 a imprensa especializada noticiou a detenção do grupo ligado à sociedade empresária 123 Importados, que comercializava produtos eletrônicos (principalmente TV's) a preço bem abaixo da média de mercado, os quais, após adquiridos pelos consumidores, não lhes eram entregues (leia aqui).

As suspeitas de fraude levaram consumidores que adquiriram produtos do referido fornecedor a denunciarem o fato ao Procon de São Paulo (leia aqui) e ao site Reclame Aqui - até a dia 14 de julho de 2020 havia no site 6065 reclamações - (leia aqui).

Nas denúncias constam, dentre outros, registros como pedidos de reembolso, cancelamento de compras, suspeita de golpe, direito de arrependimento, códigos de rastreio de mercadoria, ausência de atendimento em canais de comunicação e endereço inexistente (leia aqui).

No que interessa aos aspectos jurídicos tratados neste breve artigo, chama a atenção o fato da referida sociedade empresária anunciar seus produtos na grande mídia, em programas como o Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena (assista aqui), Rede Record, no programa Cidade Alerta, apresentado por Luiz Bacci (assista aqui) e Rede TV, no programa apresentado por Sikêra Jr. (assista aqui). 

O fato de a 123 Importados anunciar seus produtos em grandes veículos de comunicação nos traz a oportunidade de reacender o debate em torno da responsabilidade civil dos canais de TV, apresentadores e celebridades que aceitam veicular anúncios de empresas fraudulentas que causam danos ao consumidor.

O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento no sentido da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos canais de televisão1, bem como suas retransmissoras2, enquadrando tais sujeitos como fornecedores, nos termos do art. 3º do CDC.

De outro lado, o CDC estatui no art. 29 que são equiparados a consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas previstas no código. Bem assim, considerando-se que a oferta e a publicidade são práticas comerciais expressamente disciplinadas no Capítulo V, Seção I, do CDC, não restam dúvidas sobre a aplicação do CDC aos canais televisivos em relação ao seu público. Parece-nos, portanto, que a questão relacionada à aplicação do CDC às emissoras de TV não oferece maiores dificuldades.

Superada a questão relacionada ao enquadramento dos canais de TV como fornecedores de serviços, e a consequente aplicabilidade do CDC a esses sujeitos, há, de outro lado, questão mais dificultosa, relacionada à possibilidade de responsabilização civil das emissoras de TV e seus apresentadores por eventuais danos causados aos consumidores pelos fornecedores que veiculam publicidade nesses meios de comunicação.

O STJ tem decidido no sentido de afastar a responsabilidade civil das empresas de comunicação por danos causados ao consumidor em virtude de produtos e serviços anunciados nos respectivos canais. Em síntese, as decisões têm como fundamento a impossibilidade de se atribuir responsabilidade às emissoras, uma vez que estas não integram a cadeia de fornecimento do produto ou serviço anunciado, isto é, não participam da elaboração do anúncio publicitário ou do contrato celebrado com o consumidor3, não são responsáveis pela qualidade dos produtos e serviços anunciados4, tampouco nos casos em que se identifica a prática de crime de estelionato pelo fornecedor5.

Contudo, vale ponderar que, a princípio, apenas a responsabilização objetiva das empresas de comunicação não seria aplicada. Em voto proferido no julgamento do REsp. 1.427.314/RS, a ministra Nancy Andrighi destacou trecho do REsp. 1.391.084, no qual ficou registrado que "no caso de não agir com a devida diligência, a empresa de televisão que veicula anúncio publicitário é solidariamente responsável pelo pagamento de indenização a consumidor lesado por empresa que, anunciando seu produto, efetua propaganda enganosa". Percebe-se, portanto, que a responsabilização subjetiva dos canais televisivos é admitida quando verificada que o veículo de comunicação não agiu com a devida diligência.

Consideramos importante essa constatação, uma vez que, nos casos em que seja possível ao veículo de comunicação identificar - ou pelo menos desconfiar das falsas promessas contidas em um anúncio publicitário, deve ser responsabilizado solidariamente por eventuais danos causados ao consumidor.

Não é incomum no comércio eletrônico empresas fraudulentas lesarem consumidores com a não entrega de produtos ofertados por preços bem mais baratos dos que os normalmente são encontrados no mercado. Tanto é verdade que os Procons de vários estados divulgam, de tempos em tempos, uma lista de sites de empresas não confiáveis, alertando consumidores para não realizarem a compra nestes estabelecimentos. (leia aqui)

No caso envolvendo a 123 Importados, parece-nos que é possível a qualquer pessoa de diligência mediana identificar que determinado anúncio publicitário promete algo flagrantemente fora da realidade - seja pelo preço ou pelas características do produto ou serviço anunciado. Se não havia como ter certeza da fraude (até porque isso é muito difícil), o indício era muito forte. Aliás, esta é justamente uma recomendação constante dos órgãos de proteção ao consumidor (Procons) e dos especialistas em fraude: se o preço for muito abaixo da média do mercado, desconfie! Melhor não comprar do que arriscar e ficar no prejuízo. (leia aqui)6

Desta forma, este dever de diligência muito mais se aplica às empresas de comunicação que, aliás, reúnem mais condições de verificar se um anúncio é enganoso ou não. Com efeito, tratam-se de sociedade empresárias altamente organizadas sob diversos aspectos, especialmente do ponto de vista jurídico, assessoradas e representadas, em sua maioria, por grandes escritórios de advocacia, bastando, assim, uma simples consulta aos respectivos profissionais para que sejam identificadas eventuais fraudes envolvidas nas publicidades veiculadas pelos fornecedores.

Cumpre frisar que atualmente o acesso à informação é muito mais amplo do que na década de 1990, quando o Código de Defesa do Consumidor foi concebido e promulgado. A evolução da internet e o amplo acesso a sítios eletrônicos mantidos por entidades governamentais e não governamentais permite a qualquer pessoa investigar se determinado fornecedor é ou não idôneo. Se isso permite ao consumidor maior consciência no momento de adquirir um produto ou serviço, igualmente permite às empresas de comunicação identificar maus fornecedores, e com isso evitar a propagação de anúncios fraudulentos.

Além de promessas encantadoras em relação aos preços ofertados - o que por si só já seria suficiente para criar desconfiança - bastaria uma simples verificação da empresa (capital social, sócios, sede, etc) que estava prestes a anunciar para que as empresas de comunicação desconfiassem e não aceitassem a veiculação da publicidade em seus veículos.

Segundo o advogado especialista em fraudes, Flávio Tasinaffo, em rápida e simples investigação em relação à empresa 123 Importados, foi apurado o seguinte:7

  • A empresa por trás do site 123importados.com foi aberta em 07 de janeiro de 2020 com o capital social de apenas R$1000,00, com apenas um sócio com residência cadastrada na periferia de São Paulo. Indaga-se: como uma empresa que está prestes a anunciar nos principais programas e veículos de comunicação do Brasil tem um capital social de apenas R$1000,00? Estranho não?
  • O site somente aceita pagamento em boleto bancário, o meio preferido pelos fraudadores, uma vez que o golpista recebe rapidamente o valor não conseguindo o consumidor cancelar a compra na instituição financeira.
  • O endereço divulgado no site como sendo a sede da 123importados é um co-working e, ao se dirigir ao local e perguntar sobre a referida empresa, ninguém tinha conhecimento do funcionamento da mesma. Será que as empresas de comunicação não poderiam ter feito o mesmo diante de tantos indícios de fraudes?
  • Não bastasse, o telefone cadastrado na Receita Federal é o (11) 9999-99999, ou seja, inexistente.
  • O e-mail informado é inválido.
  • O sócio titular da empresa Online Intermediações Ltda, responsável pelo site 123importados.com, foi condenado pelo crime de tráfico de drogas e condutas afins no ano de 2009.

Ou seja, será que os veículos de comunicação não poderiam fazer uma breve análise dos clientes que estão prestes a anunciar, principalmente nos casos de indícios ou suspeitas de fraudes? Ou, se valendo de sua aparente irresponsabilidade em relação aos produtos e serviços anunciados, ficam isentos de qualquer dano causado ao consumidor?

Além disso, é de se questionar se, anunciando seus produtos e serviços sem o auxílio dos meios de comunicação de massa, o fornecedor atingiria o mesmo volume de vendas proporcionado pela publicidade veiculada nos intervalos da programação televisiva ou em programas de TV.

No caso do 123importados.com, a técnica mais utilizada foi o merchandising, em que o oferecimento dos produtos era feito no decorrer dos programas de apresentadores famosos e que gozam de prestígio perante o público. Em alguns casos, inclusive, o anúncio dos produtos do 123importados.com pelos apresentadores foi feito de forma bem incisiva, induzindo o consumidor a adquirir os produtos de forma rápida, sob o argumento de que já estavam acabando (utilização do gatilho mental da escassez).

Em nossa opinião, não há dúvidas de que milhares de consumidores foram influenciados pela credibilidade dos canais de TV, e principalmente pelos seus apresentadores nos anúncios destes produtos ofertados e não entregues.

Conforme ressaltado, uma vez verificado pela empresa de comunicação que o preço do produto ou serviço a ser exposto na publicidade cuja veiculação foi aceita pelo canal é flagrantemente desproporcional ao que é normalmente praticado no mercado, bastaria uma breve e simples análise a respeito dos sócios da sociedade empresária anunciante, seu capital social, sede, canais de comunicação etc. para que se concluísse que o conteúdo da publicidade evidenciava fortes indícios de fraude praticada pelo fornecedor.

Portanto, talvez seja o momento de se rever a questão relacionada à responsabilidade civil das empresas de comunicação e de seus apresentadores, principalmente nestes casos de comprovada negligência na aferição da reputação de empresas criadas para fraudar os consumidores. A nosso sentir, muito embora nas relações de consumo o risco deva ser suportado por quem vende (caveat venditor), as empresas de comunicação, inegavelmente, possuem responsabilidade social, em razão do caráter difuso das informações que propagam em suas mídias.

Desse modo, aplicando-lhes, igualmente - já que também se enquadram no conceito legal de fornecedor - os deveres anexos à boa-fé objetiva, que devem ser observados por todos os fornecedores no mercado de consumo, especialmente o dever de cautela e diligência, no exato sentido de, uma vez diante de publicidade que contenham promessas manifestamente fantasiosas, verifiquem a idoneidade do fornecedor que patrocina a publicidade, sob pena de responderem solidariamente pelos danos causados aos consumidores.

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1 "TELEVISÃO. SHOW DO MILHÃO. Código de Defesa do Consumidor. Prática abusiva. A emissora de televisão presta um serviço e como tal se subordina às regras do Código de Defesa do Consumidor. Divulgação de concurso com promessa de recompensa segundo critérios que podem prejudicar o participante. Manutenção da liminar para suspender a prática. Recurso não conhecido". (REsp 436.135/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 17/6/03, DJ 12/8/03, p. 231)

2 "A retransmissora, tal qual a emissora, se enquadram ao conceito de fornecedor de serviços, nos moldes do disposto no artigo 3º, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor." (STJ, REsp 946.851/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/4/12, DJe 15/5/12)

3 AgRg nos EDcl no Ag 1.360.058/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 27/4/11.

4 REsp 1.157.228/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 03/02/2011, DJe 27/4/11.

5 REsp 1.046.241/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/8/10, DJe 19/8/10.

6 Aqui o paralelo é interessante: se cabe ao consumidor (que é vulnerável) desconfiar destas hipóteses e ter cautela na hora da compra, não deveria por maior razão os anunciantes terem a mesma cautela antes de realizarem os anúncios?

7 Informação retirada do Portal Tudo Golpe do advogado especialista em prevenção à fraudes, Flávio Tasinaffo. Acesso em 14/7/20: clique aqui

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t*Vitor Guglinski é advogado, especialista em Direito do Consumidor, professor dos cursos de pós-graduação da Escola Superior de Advocacia da OAB (ESA), da Universidade Cândido Mendes - Ipanema (RJ), do Meu Curso (SP) e membro do Brasilcon.



t*Leonardo Garcia é procurador do Estado do Espírito Santo, professor de Direito do Consumidor e diretor do Brasilcon.

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