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Créditos com superprivilégio real

Na árdua tarefa de gerenciar fluxo de caixa negativo, inúmeras empresas lutam para suspender, temporariamente, a amortização do principal e o pagamento de juros.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Atualizado em 24 de julho de 2020 07:30

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O governo Federal, o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central adotaram medidas monetárias, financeiras, creditícias e fiscais com a finalidade de minimizar, durante a pandemia, os efeitos da Covid-19 sobre o patrimônio e o caixa das empresas nacionais e estrangeiras em atividade no país, v.g., linhas de crédito subsidiadas pelo Tesouro Nacional com garantia do FGI - Fundo Garantidor de Investimentos, administrado pelo BNDES, e reedição do DPGE - Depósito a Prazo com Garantia Especial.

Na árdua tarefa de gerenciar fluxo de caixa negativo, inúmeras empresas lutam para suspender, temporariamente, a amortização do principal e o pagamento de juros; liberar garantias, em especial as representadas por recebíveis; repactuar carências, perdão parcial de saldos devedores, prazos de vencimento de prestações, redução de juros compensatórios; obter dispensa da remuneração de debêntures etc.

O socorro do governo e as composições com os credores são medidas paliativas, emergenciais, por isso é imperioso criar mecanismos que propiciem a reestruturação preventiva do passivo de empresas viáveis em situação de pré-insolvência, através de soluções contratuais, extrajudiciais e pré-concursais, conforme "Recomendação da Comissão Europeia 2014/135/EU".

A recuperação extrajudicial não atinge esse ambicioso objetivo e, na lei 11.101/05 - LRFE, não há incentivo (nem proteção) capaz de estimular os agentes financeiros a prover a falta de dinheiro da empresa em estado de crise econômica, indispensável ao desenvolvimento de suas atividades, porquanto exclusivamente os créditos decorrentes de contratos de mútuo feneratício e de financiamento, celebrados durante o transcurso da recuperação, têm prioridade no caso de falência da devedora.

Para evitar os males de longo, dispendioso e exaustivo processo judicial e dos seus consectários lógicos (revisão, para baixo, do rating, trava bancária etc.), a LRFE deve ser alterada, por meio de medida provisória, com o escopo de assegurar ao credor, que se dispuser a conceder empréstimos, financiamentos e refinanciamentos pré-concursais, uma garantia primária (a priming lien), uma garantia com superprioridade real (DIP-Financing super priority lien).

A superprioridade visa mitigar o risco de crédito no caso de insucesso do negócio, em virtude de as empresas no país estarem muito alavancadas, pois, a relação endividamento líquido/capital próprio é de 80%, e, sobretudo, porque se espera expressiva retração da demanda de bens e serviços, em todos os segmentos, por longo período, com péssimas repercussões sobre a geração de caixa das empresas, cabendo observar que, se, em tempos de normalidade, as empresas em crise têm imensas dificuldades de pagar em dia suas dívidas pecuniárias, o que dizer em meio a uma recessão global (que poderá transformar-se em depressão), que atingirá toda cadeia de produção e consumo?

Destarte, os créditos, oriundos de empréstimos, financiamentos e refinanciamentos, assinados antes da recuperação judicial, formariam uma nova categoria, distinta da dos créditos concursais ou falimentares (art. 83) e da dos créditos extraconcursais (arts. 67 e 84).

Quanto à classificação, seriam créditos com superprioridade real (DIP-Financing super priority lien), denominação inspirada no §364 (d) (1) (B) do US Bankruptcy Code (Código de Falências dos EUA), cumprindo notar que a superprioridade poderá reduzir as expectativas dos demais credores, inclusive, ressalte-se, dos extraconcursais, mas, "dos males o menor", isto é, ou a preservação da empresa, conservação dos empregos e pagamento aos credores ou a inexorável bancarrota.

Quanto aos requisitos da contratação, seria baseada, entre outros (due diligence), em um plano de viabilidade nos moldes do art. 60 da LRFE, elaborado pelos administradores e auditado por profissional ou empresa especializada com reconhecida idoneidade moral, técnica e financeira e prestígio no mercado.  

Quanto à época de formação, os decorrentes de contratos firmados até 180 dias antes do pedido de recuperação judicial.

Quanto à ordem de pagamento, teriam prioridade absoluta e incontrastável sobre os bens do ativo do devedor-falido, precedendo a todos os demais, anteriores ou posteriores, inclusive aos créditos fiscais, trabalhistas, decorrentes de indenizações por acidentes de trabalho e aos discriminados nos arts. 122, 150, 151, 193 e 194 da LFRE.

Quanto ao tempo de pagamento, gozariam de privilégio de caixa (cash flow privilege), assegurado aos seus titulares o recebimento das prestações na medida em que a empresa for produzindo receita; se sobrevier a falência, o pagamento seria realizado com o saldo de caixa; na sua falta, com a imediata venda de bens tantos quantos bastem para liquidar o restante do débito.

Três fatos incontestáveis alicerçam esta sugestão:

(1º.) o crédito é a ponte entre a insuficiência de caixa e o ponto de equilíbrio financeiro da empresa - uma ponte sobre um abismo (a falência);

(2º.) a confiança é o valor que lastreia o crédito e gera credibilidade: sem confiança e sem credibilidade, não há crédito;

(3º.) para restabelecer a confiança, a credibilidade e o crédito, é imprescindível eliminar o déficit de caixa da empresa, o que só é possível com novos ingressos em dinheiro, que pouquíssimos - sejamos pragmáticos - estão dispostos a fornecer a uma empresa assaz endividada, consoante prova-o a observação dos fatos e a experiência da vida, às quais devemos nos curvar, humildemente, se almejamos atingir os objetivos do art. 47 da LRFE: salvar empresas viáveis, manter empregos, pagar credores e estimular a atividade econômica.

Mas, como capitalizar a empresa em dificuldades econômico-financeiras e eliminar o seu déficit de caixa?

Com o aumento das vendas, redução dos custos, antecipação de recebíveis etc., porém, devido à urgência, com aporte de "dinheiro novo", que bancos e instituições financeiras só estarão dispostos a fornecer a uma empresa em crise em tempos sombrios se a lei lhes assegurar uma "garantia primária", uma "superprioridade real", na hipótese de quebra da devedora, não sendo demais lembrar, consoante lição do prof. Bill Lazier da Stanford Graduate Scholl of Business: "As organizações não morrem devido à falta de lucros. Elas morrem de falta de caixa" (apud Jim Collins, "Como as gigantes caem", editora Campus Elsevier, ed. 2010, p. 82).

Além do DIP - Financing super priority lein, poderiam ser criados FIPs-ERJ, isto é, Fundos de Investimento em Participações em Empresas em Recuperação Judicial, na forma e para os fins da Instrução CVM 578/16, passando a constituir uma nova categoria ao lado dos fundos discriminados no seu artigo 14.

Para os FIPs-ERJ se tornarem atrativos aos investidores qualificados e mais seguros do que as startups, é indispensável que ofereçam um "prêmio" suficientemente alto para compensar o risco de liquidez, de negócio, de governança e de balanço, inerentes a esse tipo de investimento, o que se conseguirá se houver, por exemplo:

(a) isenção de imposto de renda para pessoas físicas dos rendimentos auferidos no resgate e na amortização de cotas e dos decorrentes da liquidação do FIP-ERJ, tal qual a isenção concedida às pessoas físicas cotistas dos FIPs-IE e FIPs-PD&I (§3º, do art. 2º, da lei 11.478/07, com a redação do art. 4º da lei 12.431/11; art. 33 da IN RFB 1.585/15, e Solução de Consulta 103 - Cosit, de 2019);

(b) redução de 50% (cinquenta por cento) da dívida consolidada com a União Federal, consoante o Projeto de Reforma da lei 11.105/05, que propõe a alterar o art. 10-A, inc. II, da lei 10.522/02, porém, um abatimento de até 30% (trinta por cento);

(c) parcelamento do saldo remanescente em 120 (cento e vinte) parcelas, conforme prevê o art. 3º do Projeto de Reforma da lei 11.105/05 (Art. 10-A, inc. I).

Este instrumento de revitalização das companhias abertas e fechadas em crise, porém econômica e financeiramente viáveis, encontra respaldo no pensamento do Banco Mundial, do FMI e da UNCTAD e são o oposto dos "private equity funds" americanos dedicados às "leveraged buyouts"(compras alavancadas), tão criticados pela Senadora Elizabeth Warren, pré-candidata à presidência dos EUA, como se vê da matéria "Elizabeth Warren, in detailed attack on private equity, unveils plan to stop 'looting' of U.S. companies", publicada pelo Washington Post em 18.07.2019 (disponível em https://www.washingtonpost.com/us-policy/2019/07/18/elizabeth-warren).

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*Jorge Lobo é advogado mestre em Direito empresarial da UFRJ, doutor e livre-docente em Direito comercial da UERJ e procurador de Justiça aposentado do MP/RJ.

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