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Quem vai pagar a conta das rescisões trabalhistas?

Passou-se a questionar a aplicabilidade do fato do príncipe na seara trabalhista, atribuindo a responsabilidade do pagamento das verbas rescisórias ao ente público que editou o decreto e que impossibilitou a continuação da atividade empresarial.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Atualizado em 30 de julho de 2020 08:07

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I - Introdução

Várias medidas foram adotadas visando enfrentar o estado de calamidade pública decorrente do coronavírus. Dentre elas constam decretos estaduais e municipais determinando a paralisação de atividades empresariais em todo o país.

Diante de tal cenário, passou-se a questionar a aplicabilidade do fato do príncipe na seara trabalhista, atribuindo a responsabilidade do pagamento das verbas rescisórias ao ente público que editou o decreto e que impossibilitou a continuação da atividade empresarial.

A fim de alcançar uma resposta para essa questão, é necessário conceituar o instituto do fato do príncipe, bem como analisar os pressupostos para caracterização da hipótese de força maior, ambos considerando a excepcionalidade da crise atual.

II - Da força maior

A força maior, prevista no art. 501 e seguintes da CLT, trata-se de hipótese de rescisão do contrato de trabalho em razão de acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente, não sendo possível, portanto, evitá-lo.

Não restam maiores dúvidas de que a pandemia decorrente do Coronavírus configura hipótese de força maior, inclusive, reconhecida que era no art. 1°, parágrafo único, da então medida provisória 927, "in verbis":

Art. 1º Esta Medida Provisória dispõe sobre as medidas trabalhistas que poderão ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde, em 3 de fevereiro de 2020, nos termos do disposto na Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

Parágrafo único. O disposto nesta Medida Provisória se aplica durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, e, para fins trabalhistas, constitui hipótese de força maior, nos termos do disposto no art. 501 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. (g.n.)

Entretanto, isso não significada que qualquer empresa está autorizada a demitir seus empregados com base na força maior. É necessário observar que a ocorrência do motivo de força maior que não afetar substancialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as disposições do instituto, conforme previsto no art. 501, §1°, §2°, da CLT.

É certo que algumas empresas, ao contrário da maioria, alavancaram sua atividade no período da pandemia, sendo necessário, inclusive, a ampliação do quadro de empregados. Em tais casos, resta afastada, de forma absoluta, a possibilidade de aplicação da rescisão por força maior, afinal, não houve a afetação econômico-financeira do estabelecimento.

Nesse sentido, é imprescindível, para configurar a força maior, a comprovação do abalo substancial da empresa a ponto de impossibilitar a continuidade do setor empresarial e, consequentemente, a manutenção dos vínculos empregatícios.

Se ocorrer a força maior e essa determinar a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos, é assegurado a redução pela metade da indenização sobre os depósitos fundiários, consoante § 2º do art. 18 da lei 8.036/90:

Art. 18. Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho, por parte do empregador, ficará este obrigado a depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS os valores relativos aos depósitos referentes ao mês da rescisão e ao imediatamente anterior, que ainda não houver sido recolhido, sem prejuízo das cominações legais.

§ 2º Quando ocorrer despedida por culpa recíproca ou força maior, reconhecida pela Justiça do Trabalho, o percentual de que trata o § 1º será de 20 (vinte) por cento.

Frisa-se que as demais verbas rescisórias são devidas na integralidade pelo empregador, com exceção do aviso prévio, cujo pagamento, nessa modalidade de rescisão contratual, não é pacífico na doutrina. Para alguns a referida parcela é devida, para outros não, e para uma minoria é devida pela metade.

III - Do fato do príncipe

O fato do príncipe é uma espécie do gênero da força maior. O fato do príncipe ocorre, no direito do trabalho, quando a Administração Pública impossibilita a continuidade da atividade empresarial, de forma definitiva ou temporária, por intermédio de lei ou ato administrativo, o que é previsto no art. 486 da CLT.

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

O fato do príncipe também se baseia na teoria da imprevisão já que é espécie do gênero da força maior, com a peculiaridade de que o ato impeditivo das atividades da empresa parte da Administração Pública. Tal dispositivo raramente foi aplicado na justiça do trabalho, restringindo-se a hipótese de desapropriação, conforme se destaca nos julgados a seguir:          

RECURSO DE REVISTA. FACTUM PRINCIPIS CONFIGURADO. Da leitura do acórdão regional não se extrai que o empregador tenha concorrido para a desapropriação de sua propriedade rural, razão pela qual a hipótese é de factum principistal como prevista no art. 486 da CLT, ficando o pagamento da indenização devida aos empregados a cargo do poder público, no caso, a autarquia federal (INCRA) promotora da desapropriação. Recurso de Revista de que não se conhece. (TST - RR: 6310676320005065555 631067-63.2000.5.06.5555, relator: João Batista Brito Pereira, Data de Julgamento: 16/11/05, 5ª Turma, Data de Publicação: DJ 17/2/06.)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO ANTES DA LEI Nº 13.015/2014. DESAPROPRIAÇÃO DE IMÓVEL RURAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. FACTUM PRINCIPIS. CARACTERIZAÇÃO. INTELIGÊNCIA DO ART. 486 DA CLT. No caso vertente, de acordo com o quadro fático delineado pela decisão regional, a rescisão do contrato de trabalho dos reclamantes deu-se por meio de ato da Administração Pública (desapropriação de imóvel rural para fins de reforma agrária), bem como que os proprietários do imóvel não concorreram para a desapropriação do imóvel e não tiveram como evitá-la. Esta Corte, em casos análogos, tem admitido a responsabilidade indenizatória do ente estatal com fulcro no art. 486 da CLT, quando restou comprovado que empregador não concorreu, direta ou indiretamente, para o encerramento das atividades empresariais. Nessa linha, descabe falar em violação 486 da CLT, tendo em vista a conclusão do acórdão regional de que o empregador não concorreu para a desapropriação do imóvel, razão pela qual restou caracterizada a hipótese de factum principis prevista no dispositivo legal referenciado. Precedentes. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 17644420135030038, relator: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 20/9/17, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 29/9/17)

Note-se que, embora também não haja concorrência da empresa, a hipótese de desapropriação difere consideravelmente da crise decorrente do Coronavírus, na qual os decretos editados pelo poder público não decorreram de mera discricionariedade, ou seja, do juízo de conveniência e oportunidade para praticar o referido ato administrativo, tanto que não se restringiram a um grupo específico de empresas, mas sim a toda coletividade.

Na verdade, tais atos administrativos guardam relação com um bem jurídico maior, qual seja, a preservação do direito à saúde. Em outras palavras, o plano de fundo da pandemia muda o cenário para aplicação do fato do príncipe, mais especialmente a natureza do ato em questão.

Por consequência lógica, a única possibilidade de a tese do fato do príncipe ser aceita, no atual cenário, consiste em superar a motivação do ato administrativo que culminou com a paralisação da atividade empresarial, ou seja, comprovar que a Administração Pública poderia ter optado por outras soluções possíveis, o que deve ser analisado em cada caso concreto, embora, de maneira geral, diante dos impactos desastrosos que o coronavírus já causou, seja difícil vislumbrar essa circunstância.

Por fim, ressalta-se que mesmo na possibilidade de aplicação do fato do príncipe, as verbas rescisórias são devidas por parte da empresa, com exceção das indenizatórias, ou seja, aviso prévio e multa de 40% sobre o FGTS, as quais ficam cargo do ente público responsável.

IV - Considerações finais

Diante do exposto, verifica-se que a aplicação da força maior no atual cenário de pandemia é plenamente possível, desde que haja a comprovação do abalo econômico e financeiro da empresa, sendo que, em caso de extinção da empresa ou de um dos seus estabelecimentos, a multa do FGTS é reduzida pela metade, com divergências acerca do pagamento ou não do aviso prévio em tal modalidade de rescisão contratual.

Por outro lado, a aceitação do fato do príncipe dependerá da análise da motivação dos decretos que determinaram a paralisação das atividades empresariais, notadamente se esses decorreram ou não da discricionariedade da Administração Pública, o que deve ser verificado em cada caso. Porém, de maneira geral, tal instituto é considerado de difícil aceitação no poder judiciário, em razão da evidente necessidade de preservação da saúde da coletividade.

Finalmente, tem-se que, tanto na força maior, como no fato do príncipe, não há isenção total do pagamento da rescisão contratual por parte da empresa, mas sim de algumas verbas, em especial o FGTS e aviso prévio, a depender da modalidade aplicada.

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t*Tácita Mendonça Figueiredo é advogada graduada em Direito e especialista em Direito e Processo do Trabalho.





t*Ricardo Calcini é mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de pós-graduação em Direito do Trabalho da FMU. Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos.


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