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Isolamento social: Legado ambiental e urbanístico nas grandes metrópoles?

Apesar da evolução que vivemos, resta a pergunta: após mais de 100 dias de isolamento social, qual o legado do ponto de vista ambiental e urbanístico que deixaremos para grandes metrópoles como São Paulo após a pandemia de covid-19?

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Atualizado às 08:21

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Estamos vivendo um período de retomada da atividade econômica, a qual será realizada por meio de fases, conforme estabelecido, no caso de São Paulo, pelo Plano São Paulo do Governo do Estado. Na Capital Paulista, vivemos o período da denominada Fase 3 e uma eminente evolução para Fase 4, as quais contemplam medidas bem menos restritivas que as fases anteriores, tais como abertura de bares, restaurantes e salões de beleza.

Apesar da evolução que vivemos, resta a pergunta: após mais de 100 dias de isolamento social, qual o legado do ponto de vista ambiental e urbanístico que deixaremos para grandes metrópoles como São Paulo após a pandemia de covid-19?

Sabemos que com a imposição do isolamento social pelo Poder Público, houve considerável impacto na circulação de veículos, queda da produção industrial e da malha aérea e fechamento de bares e restaurantes, de modo que é inegável a melhora da qualidade ambiental e a redução da faixa de poluição nas grandes cidades. Inclusive, Autoridade Municipal de Limpeza Urbana - AMLURB de São Paulo apontou uma redução de 56% dos resíduos de varrição, 12% do lixo comum e 25% de aumento da coleta seletiva.

Ocorre que, com a evolução para as fases menos restritivas dos planos de reabertura econômica, esses números tendem a se "normalizar", pois a diminuição só ocorreu em razão das pessoas estarem em suas casas.

Pouco se falou sobre os impactos que serão gerados após a flexibilização das medidas de distanciamento social e a necessidade de, no futuro e momentaneamente, abandonarmos muitas políticas ambientais, visto que, por questões sanitárias, medidas tais como o incentivo de utilização de transporte público, redução de uso materiais descartáveis de plástico e a conscientização da necessidade de se reduzir a produção de lixo tendem a ser temporariamente suspensas em muitos países, inclusive no Brasil.

A assertiva está embasada em estudos realizados pelo Departamento de Políticas e Leis Ambientais da Escola de Direito da UCLA (University of California), que destaca, ainda, que devemos enfrentar uma batalha de cada vez e, que sem dúvidas, o enfretamento da covid-19 é prioridade global.

Uma batalha de cada vez, contudo, não significa deixar de lado os ganhos nas mudanças de hábitos poluidores que tínhamos pré-covid-19 e a possibilidade de mudarmos o velho conceito ambiental e urbanístico das grandes metrópoles. O trabalho harmônico, no que couber, entre políticas sanitárias, ambientais e urbanísticas é possível e necessário.

Países como França e Alemanha aproveitaram o momento e estão incentivando a redução do uso do habitual transporte público para que a população passe a se valer da bicicleta como meio de locomoção, sendo que a França investirá cerca de 20 milhões de Euros para melhorar a infraestrutura cicloviária, como a implantação de aproximadamente 750km de ciclovias e aumento de estacionamento de bicicletas.

No entanto, na Capital Paulista, a oportunidade de mudar as políticas urbanas e ambientais parece se distanciar com a evolução de cada fase do Plano São Paulo, ficando cada vez mais distante o sonho do paulistano de viver em uma cidade urbanisticamente agradável e com boa qualidade ambiental.

O jornal britânico The Guardian destaca que ao redor do mundo as grandes cidades vêm sendo urbanisticamente redesenhadas, retirando o lugar dos carros e ônibus e dando espaço para ciclistas e pedestres.

O MIT (Massachusetts Institute of Technology) e o World Economic Forum apontavam, antes do início da pandemia de covid-19, que o cenário de congestionamento e tempo perdido nos deslocamentos só poderia ser alterado com o aumento de transportes compartilhados, bicicletas e transportes públicos, deixando de lado os transportes individuais e poluidores.

Já a Discourse Media aponta que o custo do transporte público para a sociedade gira, para cada contribuinte, em torno de USD 0,57; já os automóveis custam à sociedade USD 5,56, por viagem, o que, por sua vez, são valores muito superiores aos custos negativos das bicicletas e da tradicional caminhada, USD -1,51 e -2,15, respectivamente.

Não por menos, o estímulo desses meios alternativos de transporte (bicicleta e caminhada), implicam em melhora na qualidade de saúde da população, reduzindo doenças como hipertensão, diabetes, obesidade e asma, o que significa um trabalho harmônico entre as políticas ambientais, urbanísticas e sanitárias.

Uma pesquisa realizada em 2019 pela Rede Nova São Paulo aponta que, na cidade de São Paulo, a população fica, em média, 2h25m por dia em deslocamento, o que significa dizer que em um ano passamos aproximadamente 36 dias no trânsito.

Na média a maioria dos entrevistados aponta a falta de infraestrutura como impedimento do uso das bicicletas. Este fato, como aponta uma pesquisa da Harvard University, é determinante para o aumento de usuários deste tipo de transporte, podendo com o aumento de investimento em infraestrutura aumentar significativamente o número de usuários e, consequentemente, como apontado acima, reduzir os custos que se têm com transporte público e automóveis.

A implementação temporária de ciclovias e passeios urbanos é simples e de baixo custo, por exemplo adotando medidas, tais como: impedir a circulação de carros em pequenas vias, destinando-as para bicicletas e pedestres e, nas grandes avenidas, priorizar as antigas faixas reservadas aos automóveis para os meios alternativos de locomoção. Posteriormente, assegurada a possibilidade de investimento público, pode-se, inclusive, torná-las definitivas e proceder com obras de melhorias nas infraestruturas.

Contudo, não se nota a mobilização do Poder Público para aproveitar o cenário atual, a fim de transformar drasticamente as políticas urbanísticas ambientais como aliadas também das políticas sanitárias, o que, de fato, poderia reduzir drasticamente o contágio pela covid-19, aumentar a qualidade ambiental, as condições de saúde pública e propiciar uma cidade com melhor qualidade urbana, sem contar a aceleração da retomada gradual das atividades econômicas.

São Paulo, ao que parece, anda na contramão de todas as políticas urbanas e ambientais que vêm sendo adotadas ao redor do mundo, perdendo a melhor oportunidade que já se teve de se reestruturar e propiciar à sua população uma melhor qualidade de vida.

Respondendo à pergunta, aparenta-se que não deixaremos nenhum legado de transformação urbana e ambiental na urbe paulista e, futuramente, retomaremos nossas atividades como se nada tivesse acontecido.

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t*Douglas Nadalini é sócio do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra - Sociedade de Advogados e lidera o Departamento de Direito Ambiental do escritório, com ênfase em relações governamentais em licenciamentos ambientais, prevenção e resolução de conflitos. Graduado em Direito pela PUC/SP e pós-graduado em Direito Tributário e em Direito Ambiental pela Universidade de São Paulo.


t*André Pereira de Morais Garcia
é membro do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra - Sociedade de Advogados e atua no Departamento de Direito Ambiental do escritório. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP.

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