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Acidentes aeronáuticos: De quem é a competência para investigar? Polícia, Ministério Público, ANAC ou Aeronáutica?

A sociedade brasileira pôs em pauta um longo debate legislativo para o melhoramento e aperfeiçoamento da atividade aérea no país, inserindo-se, nesse contexto, a investigação de acidentes aeronáuticos.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Atualizado às 08:05

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Há aproximadamente um mês, no dia 8/7/20, em plena quarta-feira fim de expediente, começamos a receber por mensagem imagens de um avião que caiu e pegou fogo próximo ao aeroporto Campo de Marte, em São Paulo.

Segundo informações preliminares, extraídas do sítio eletrônico do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), por volta da 21h, a aeronave Beechcraft Baron 58, de matrícula PR-OFI, ao ser comandada para realizar procedimento de arremetida, colidiu contra o solo, em via pública, logo após a cabeceira 12 do Aeroporto Campo de Marte.

Quando nos deparamos com notícias como essa, de pronto, surgem algumas perguntas, tais como: e agora, quem investiga? É a Polícia? É o Ministério Público? É a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC)? É o Comando da Aeronáutica? Qual é objetivo? Qual o prazo da investigação?

Sem ter a pretensão de esmiuçar o tema, abordaremos o assunto da forma mais clara, direta e objetiva possível de modo que, ao final da leitura, seja possível responder as indagações sugeridas, dando atenção e enfoque especial para a investigação que é realizada pela Aeronáutica.

Pois bem, inicialmente importa tecermos relevante digressão histórica recente, para compreendermos momentos de crise pelos quais passamos e que motivaram, no Brasil, importantes modificações e evoluções na investigação de catástrofes aéreas.

Entre os anos de 2006 e 2007, duas grandes tragédias aeronáuticas ocorreram no Brasil, envolvendo duas das maiores companhias aéreas do país, as quais vitimaram centenas de pessoas e atingiram outras centenas de familiares das vítimas.

Impulsionada pelos nefastos impactos dessas catástrofes, a sociedade brasileira pôs em pauta um longo debate legislativo para o melhoramento e aperfeiçoamento da atividade aérea no país, inserindo-se, nesse contexto, a investigação de acidentes aeronáuticos.

Desse modo, após aproximadamente 8 longos anos de amplos debates na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, ao cabo de todo o processo legislativo pertinente, o Poder Legislativo aprovou a lei ordinária 12.970/14, que alterou e inseriu dispositivos no Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA), como resposta aos anseios e demandas sociais para o aperfeiçoamento operacional da aviação civil brasileira, visando mitigar a possibilidade de repetição de novas tragédias.

Referido processo legislativo contou com a participação e contribuição de órgãos de segurança pública, associações de empresas, associações de aeronautas e aeroviários, membros da advocacia pública, integrantes do Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (SIPAER), dentre outros.

As inovações trazidas à baila se consubstanciaram em imprescindível evolução normativa, lastreada nas realidades e exigências práticas e técnicas, consideradas as peculiaridades do cenário internacional e nacional afeto à investigação de acidentes aéreos com foco na prevenção de outras catástrofes.

Desse modo, houve uma internalização adequada e compatível de normas, preceitos e princípios internacionais, com o delineamento focado nas especificidades, peculiaridades, necessidades e finalidades próprias de investigações voltadas tão somente para prevenção de acidentes aéreos.

Cumpre destacar que a necessidade dessa evolução não surgiu de um dia para o outro e, nem mesmo, por mera especulação. Ela foi fruto do aperfeiçoamento sistêmico, decorrente das necessidades evolutivas técnicas e práticas das investigações de acidentes aeronáuticos que ocorrem há décadas no Estado Brasileiro, tudo em consonância com normas internacionais.

Para que se preserve o contexto histórico e evolutivo sobre a temática, importa rememorar que, no Brasil, a investigação de acidentes aéreos teve seu propósito focado na persecução criminal/punitiva.

Em 1941, com a criação do então Ministério da Aeronáutica, que era responsável, de um modo geral, pelas atividades da Aviação Civil e Militar, foi instituída a figura do "Inquérito Técnico Sumário", o qual visava a pesquisa de ocorrência de culpa e apuração/imposição de responsabilidade dos envolvidos nos acidentes aeronáuticos.

Nesse período, uma única investigação sobre acidente aeronáutico, ao mesmo tempo em que responsabilizava culpados, também intentava de forma tímida, limitada e subsidiária evitar outros acidentes semelhantes.

Tal modelo de investigação, que ocorria de maneira inquisitiva e sumária, tinha resultados pobres, escassos de informações voluntárias, pois não havia nenhuma colaboração dos envolvidos, carente de análises detalhadas e sistêmicas, com pouca, senão rara, contribuição prática para a prevenção.

Assim, no campo prático e aplicado, a sistemática do "Inquérito Técnico Sumário" se mostrou inadequada, totalmente ineficaz e ineficiente para evitar a recorrência, sendo modelo fadado ao insucesso.

Diante da imprescindível necessidade evolutiva, em 1944, o Estado Brasileiro aderiu à Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago), recepcionada já em 1946 pelo ordenamento jurídico pátrio por meio do decreto 21.713/46.

A partir desse marco temporal, os processos evolutivos dos mecanismos de prevenção de acidentes foram constantes, podendo citar, entre eles o decreto 69.565/71, o decreto 87.249, o próprio CBA com a atual redação dada pela lei 12.970/14, e o decreto 9.540/18 (decreto SIPAER), os quais estabeleceram as atuais bases, princípios e preceitos sobre a investigação de acidentes aeronáuticos.

Tais disposições normativas disciplinaram e encaminharam o SIPAER com destinação específica à prevenção de outras ocorrências, tendo por escopo o estabelecimento de hipóteses e a identificação de fatores contribuintes para a consumação de uma ocorrência aeronáutica, sempre dissociada da persecução sobre culpa, responsabilidade, contraditório, ampla defesa, nexo de causalidade estrito ou qualquer outro elemento punitivo ou sancionador.

Com tal aperfeiçoamento, pode-se compreender e visualizar que o Brasil adotou, assim como os demais países pactuantes da Convenção de Chicago, o modelo dualista de investigação de acidentes aeronáuticos: o sistema policial-judiciário e o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (SIPAER), este último independente e neutro.

Justamente com a compreensão sobre a necessidade da atuação do Estado em suas mais diversas formas e competências (civil/criminal/administrativa), o próprio CBA, agasalhando tratados e princípios internacionais sobre a investigação de acidentes aeronáuticos, instituiu uma modalidade específica de investigação, denominada Investigação SIPAER, a qual tem como objetivo tão somente a prevenção de outras ocorrências, desenvolvendo-se de maneira totalmente autônoma e independente de outras investigações sobre o mesmo acidente.

Todavia, é necessário que seja esclarecido que tal especificidade não exclui a necessidade de outras investigações para finalidades diversas, paradigma expressamente previsto nos artigos 88-A, 88-B e 88-C do CBA e no decreto SIPAER. Tais preceitos legais internalizaram os princípios e normas do Anexo 13 à Convenção sobre Aviação Civil Internacional (Convenção de Chicago) de 1944.

Percebe-se, portanto, que o Brasil criou ao longo de décadas, um sistema específico para investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, tendo como viga-mestra a implementação do conceito de "Cultura Justa" que, hodiernamente, é considerada como um elemento-chave para o reforço da segurança da aviação na medida em que visa melhorar a comunicação das ocorrências na aviação, aperfeiçoando e otimizando o fluxo contínuo de informações.

Foi compreendido que, sob o amparo da "Cultura Justa", é criada uma condição essencial para o estabelecimento de um ambiente nacional e internacional lastreado na maior cooperação e coordenação institucional entre as esferas de segurança pública e as autoridades judiciárias, sem que as atividades de uma se sobreponham, interfiram ou impeçam as investigações realizadas sob o manto da Convenção de Chicago.

Dessa forma, percebe-se que o próprio CBA, de maneira expressa, além de não impossibilitar, impedir ou embaraçar eventuais investigações no âmbito do administrativo da ANAC, ou sobre a persecução do Parquet, da Polícia Judiciária ou de qualquer apuração cível ou criminal, prevê de forma expressa a possibilidade de coordenação e cooperação técnica e institucional. As investigações, em cada um dos órgãos constituídos, ocorrem de forma autônoma e independente, se complementando, sem criar embaraços ou entraves.

Feita essa digressão sobre competências, limites, objetivos e finalidades das investigações sobre acidentes aéreos, com foco especial para aquela que é realizada no âmbito do SIPAER, pende apenas a indagação sobre o prazo das investigações.

De forma sucinta, as investigações criminais promovidas pelos órgãos de persecução penal, observam os trâmites e prazos próprios do Código Penal e de Processo Penal, observando ainda o Parquet, na seara da responsabilização civil e administrativa, as peculiaridades da lei 7.347/85, e da lei complementar 75/93, no que atinem às Notícias de Fato (NF), aos Inquéritos Civis Públicos (ICP) e eventuais Ações Civis Públicas (ACP).

No campo de atuação da ANAC, na sua condição legal de órgão regulador e fiscalizador da aviação civil brasileira, incumbe a observância aos procedimentos e prazos administrativos previstos na lei 11.182/05 e nos respectivos regimentos e resoluções.

Especificamente na seara das investigações realizadas com o propósito exclusivo de prevenção de acidentes aéreos, cujas atividades são realizadas pelo CENIPA, embora haja amplo detalhamento normativo e procedimental no CBA e no Decreto SIPAER, o legislador infraconstitucional foi silente, não tendo estipulado um prazo, talvez com o entendimento sobre toda a complexidade que envolve a investigação de catástrofes aéreas, em função das diversas circunstâncias técnicas, o que exige um tempo próprio para cada ocorrência.

Em que pese o silêncio legal, pode ser aplicada a Norma Sistêmica do Comando da Aeronáutica 3-13/17 (NSCA) que trata dos "Protocolos de Investigação de Ocorrências Aeronáuticas da Aviação Civil Conduzidas pelo Estado Brasileiro", a qual estima o prazo de 12 meses a ser observado (6.3.d). Esta previsão certamente teve por objetivo dar respostas à sociedade no menor tempo possível sobre as investigações que são realizada pelo CENIPA.

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t*Ricardo Fenelon Junior é sócio fundador do escritório Fenelon Advogados. Advogado especialista em aviação, infraestrutura e regulação. Ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Professor de Direito Aeronáutico no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Aeronáutico (IBAER).



t*Adriano Trindade
é consultor do Fenelon Advogados. Advogado especialista em Direito Aeronáutico, em especial Acidentes Aéreos, e Direito Trabalhista. Ex-chefe da Assessoria Jurídica do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA).

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