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À espera da transação tributária no contencioso

A exposição de motivos da MP reconhece que a complexidade da legislação - que leva a dúvidas e interpretações conflitantes sobre uma infinidade de temas na área tributária - é uma das causas desta litigiosidade e demanda que a administração tributária dê a contribuintes/responsáveis tributários um tratamento adequado.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Atualizado às 09:16

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A transação tributária por adesão no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica - geralmente denominada de transação tributária no contencioso1 - foi criada pelos arts. 11 a 18 da medida provisória 899/192 com o objetivo de reduzir a litigiosidade tributária federal nos âmbitos administrativo e judicial3.

A exposição de motivos da MP reconhece que a complexidade da legislação - que leva a dúvidas e interpretações conflitantes sobre uma infinidade de temas na área tributária - é uma das causas desta litigiosidade e demanda que a administração tributária dê a contribuintes/responsáveis tributários um tratamento adequado, na forma da referida modalidade de transação tributária4.

A constatação permite afirmar que o instituto da Offer in Compromise - uma espécie de transação tributária nos EUA - serviu de inspiração à transação tributária no contencioso. De fato, há três fundamentos possíveis para a Offer in Compromise: (I) dúvida quanto à possibilidade de pagamento do contribuinte (doubt as to collectibility); (II) dúvida sobre o mérito da dívida (doubt as to liability); e (III) dúvida quanto à efetividade da administração tributária (effective tax administration)5.

Importam, para os fins deste artigo, os dois primeiros fundamentos6. A dúvida quanto à possibilidade de pagamento do contribuinte constitui a base do maior número de Offers in Compromise celebradas. Se o contribuinte comprovar que não dispõe de capacidade de pagamento - ou seja, que não consegue pagar a sua dívida tributária, considerado o regime decadencial/prescricional aplicável - poderá ser firmada esta espécie de transação tributária7. A influência deste fundamento da Offer in Compromise na transação tributária ordinária na cobrança da dívida ativa da União é reconhecida pela exposição de motivos da MP8.

Já o segundo fundamento - a dúvida sobre o mérito da dívida - é menos comum e autoriza a celebração de Offer in Compromise quando houver uma disputa genuína em relação à existência ou ao montante do tributo devido9. Não poderá haver transação tributária deste tipo se já houver julgamento definitivo do Judiciário sobre pleito do contribuinte que diga respeito ao tributo em questão10.

Assim como no caso da Offer in Compromise fundada em dúvida sobre o mérito da dívida, as disputas judiciais e administrativas sobre a existência ou o montante do tributo devido estão na base da transação tributária no contencioso. Na forma da lei de conversão da MP - a lei 13.988/2011 - esta espécie de transação tributária abrange contribuintes/responsáveis envolvidos em contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica, exceto quando a controvérsia jurídica já tiver sido decidida pelo Judiciário12.

A portaria do ministro da Economia 247/2013 disciplinou a transação tributária no contencioso, aguardando-se agora a publicação de editais da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e/ou da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) que darão operatividade ao instituto, permitindo que seja efetivamente posto em prática.

A Portaria tem os seus méritos, e isto deve ser ressaltado. Como ela própria afirma, o que se quer é "estabelecer novo paradigma de relação entre administração tributária e contribuintes, primando pelo diálogo e adoção de meios adequados de solução de litígio" (art. 3º, inciso IV). Neste sentido, o art. 28 da portaria prevê, por exemplo, que o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o presidente de confederação representativa de categoria econômica ou de centrais sindicais, habilitadas à indicação de conselheiros ao CARF (art. 28 do anexo II da portaria do ministro da Fazenda 343/1514), podem propor ao Ministro da Economia temas a serem objeto desta modalidade de transação tributária.

Esta porta aberta a contribuintes/responsáveis e seus representantes para dar início ao diálogo sobre a transação tributária no contencioso15 deve ser acompanhada, contudo, de mecanismos que lhes permitam participar ativamente deste diálogo. Após a referida proposição de temas, segue-se, nos termos do art. 29 da portaria, manifestação da PGFN e da RFB. Posteriormente, o ministro da Economia decide se os temas propostos serão objeto de editais de transação tributária no contencioso.

A publicidade e a transparência ativa são, nos termos do art. 2º, VIII da portaria, princípios aplicáveis a esta espécie de transação tributária. O parágrafo único daquele dispositivo mostra que a concretização de tais princípios envolve, "entre outras ações", a "divulgação em meio eletrônico de todos os termos de transação celebrados, com informações que viabilizem o atendimento do princípio da isonomia, legalidade e participação da sociedade na fiscalização da correta aplicação da lei, regulamento e edital aplicável."

Uma participação efetiva da sociedade civil na construção da transação tributária no contencioso demanda, ainda, a possibilidade de seus representantes conhecerem a posição da PGFN e da RFB e de se manifestarem previamente à decisão do ministro da Economia sobre os referidos editais. Para que haja efetivo diálogo, deve haver um mecanismo para que a voz da sociedade civil seja ouvida nesta etapa da criação da transação tributária no contencioso.

Outro importante princípio que rege esta espécie de transação tributária é o reconhecimento, como não poderia deixar de ser, da "presunção de boa-fé do contribuinte" (art. 2º, I da portaria), indispensável para que a cultura do litígio seja amenizada e passe a conviver com a cultura da cooperação entre administração tributária e contribuintes/responsáveis.

É com base neste princípio que o art. 9º da portaria determina a suspensão de tramitação de processos administrativos que digam respeito a créditos tributários objeto de solicitação de adesão à transação tributária no contencioso. Em seguida, porém, a norma do mesmo artigo menciona a "possibilidade, no prazo previsto para adesão ao edital, da suspensão de atos de cobrança, a critério da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia ou da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, conforme o caso."

Se esta modalidade de transação tributária está fundada na boa-fé do contribuinte/responsável, então a suspensão de atos de cobrança não deveria ser apenas uma possibilidade, mas sim um reflexo imediato da transação tributária no contencioso. Neste ponto, a portaria poderia ter se inspirado no regime jurídico da Offer in Compromise, que impede a adoção de medidas coercitivas em relação ao patrimônio do contribuinte enquanto pendente a Offer e antes de decorridos trinta dias de sua eventual rejeição16.

Para formalizar sua adesão à espécie de transação tributária de que se cuida, o contribuinte/responsável deverá fazer algumas concessões, como a de sujeitar-se, em relação aos fatos geradores futuros ou não consumados, ao entendimento dado pela administração tributária à questão em litígio, ressalvadas a cessação de eficácia prospectiva da transação decorrente de precedente judicial (art. 927, I a IV do CPC/15 ou demais hipóteses do art. 19 da lei 10.522/02) e a alteração da legislação (art. 4º, VI, a e b da portaria).

Esta concessão causa algumas perplexidades: o que ocorre no caso de, posteriormente à celebração da transação, o STJ e/ou o STF decidirem, em regime de recurso repetitivo, uma questão litigiosa - distinta daquela objeto da transação firmada - por meio de acórdão cujos fundamentos determinantes sejam aplicáveis à questão transacionada? Haverá cessação da eficácia prospectiva da transação nesta hipótese?

E mais: como conciliar a sujeição do contribuinte/responsável ao entendimento da administração tributária em relação a fatos geradores futuros ou não consumados com o caput do art. 171 do CTN17, que só admite a transação terminativa, e não a transação preventiva de litígios?

Estas são apenas algumas questões iniciais decorrentes da disciplina da transação tributária no contencioso. Há ainda várias outras18. Todas elas merecem ser submetidas a amplo debate público, com o objeto de aprimorar um instituto que é indispensável à criação de um efetivo sistema multiportas de solução de conflitos tributários no país.

_________

1 Em conjunto com a transação tributária no contencioso tributário de pequeno valor, que será objeto de futuro artigo.

3 Trata-se, na realidade, da concretização de uma demanda do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988. A justiça distributiva é um dos valores centrais da Constituição. Assegurá-la implica, entre outras coisas, ampliar as possibilidades de acesso à justiça na seara tributária mediante um sistema multiportas de solução de conflitos tributários, do qual a transação tributária faz parte (PISCITELLI, Tathiane, Arbitragem no Direito Tributário: Uma Demanda do Estado Democrático de Direito in Arbitragem Tributária: Desafios Institucionais Brasileiros e a Experiência Portuguesa, PISCITELLI, Tathiane, MASCITTO, Andréa e MENDONÇA, Priscila Faricelli de (coord.), 2ª ed., rev., atual. e amp., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, pp. 185 a 187 e FERNANDES, André Luiz Fonseca, Transação Tributária - A Experiência de Blumenau e Possíveis Avanços para o País, Migalhas. Publicação de 24/6/20 - Clique aqui).

5 LEDERMAN, Leandra e MAZZA, Stephen W., Tax Controversies: Practice and Procedure, 4th. ed., Durham: Carolina Academic Press, 2018, p. 765, OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de, A Transação em Matéria Tributária, São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 82, FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques, Transação Tributária: O Direito Brasileiro e a Eficácia da Recuperação do Crédito Público à Luz do Modelo Norte-Americano, Curitiba: Juruá, 2014, p. 68 e DOMINGOS, Francisco Nicolau, Os Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos Tributários: Novas Tendências Dogmáticas, Porto Alegre: Núria Fabris, 2016, pp. 214/215.

6 O terceiro fundamento será abordado em futuro artigo.

7 LEDERMAN, Leandra e MAZZA, Stephen W., ibidem, p. 773.

8 O autor deste artigo demonstrou, em conjunto com Mariana Cardoso Martins, que a citada capacidade de pagamento do devedor é uma importante premissa não apenas da transação tributária ordinária, mas também da transação tributária excepcional na cobrança da dívida ativa da União (Portaria PGFN 14.402/20). Cf. FERNANDES, André Luiz Fonseca e MARTINS, Mariana Cardoso, Transação Tributária Excepcional: O que Falta Melhorar?, Migalhas. Publicação de 2/7/20 (Clique aqui).

9 Francisco Nicolau Domingos mostra que esta espécie de transação tributária tem lugar quando "(...) não resulta clara a matéria de facto" ou quando "(...) não é possível concretizar uma interpretação segura das normas jurídicas aplicáveis." DOMINGOS, Francisco Nicolau, ibidem, p. 215.

10 LEDERMAN, Leandra e MAZZA, Stephen W., ibidem, p. 791.

11 Clique aqui ..

12 É o que se depreende: (i) do caput do art. 18 da Lei, segundo o qual: "A transação somente será celebrada se constatada a existência, na data de publicação do edital, de inscrição em dívida ativa, de ação judicial, de embargos à execução fiscal ou de reclamação ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação."; e (ii) do art. 20, inciso II da Lei, que veda: "a oferta de transação por adesão nas hipóteses: a) previstas no art. 19 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, quando o ato ou a jurisprudência for em sentido integralmente desfavorável à Fazenda Nacional; e b) de precedentes persuasivos, nos moldes dos incisos I, II, III e IV do caput do art. 927 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), quando integralmente favorável à Fazenda Nacional;".

15 Como afirma Andréa Mascitto, em texto elaborado em conjunto com Luiz Roberto Peroba Barbosa: "Ou seja, aqui é aberta uma importante porta para que os contribuintes, através das confederações que os representam (tais como Confederações de Indústria, Comércio, Serviços e instituições financeiras e afins), sejam incluídos no debate dos temas para que Fisco e contribuintes possam chegar a um acordo ao invés de seguirem disputando com todos os desgastes que isso representa de lado a lado." (BARBOSA, Luiz Roberto Peroba e MASCITTO, Andréa, Contribuintes Podem Propor Temas Tributários Controversos a serem Transacionados, Migalhas. Publicação de 29/6/20 (Clique aqui).

16 OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de, ibidem, p. 83. Cf. ainda MISEY JR, Robert. J e GOLLER, Michel G., Federal Taxation: Practice and Procedure, 13th ed., Riverwoods: Wolters Kluwer, 2019, p. 477 e Clique aqui.

17 "Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em (de)terminação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário."

18 A serem abordadas em futuro artigo.

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t*André Luiz Fonseca Fernandes é mestre em Direito Político e Econômico. Especialista em Direito Tributário. Coordenador do Comitê Temático de Transação Tributária e Negócio Jurídico Processual do Instituto Brasileiro de Arbitragem Tributária - IBAT. Sócio do escritório Alcides Jorge Costa Advogados Associados.


t*Andréa Mascitto é sócia da área tributária do escritório Pinheiro Neto Advogados. Vice-presidente Jurídica da Câmara de Comércio Brasil-Canadá. Membro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/SP. Professora de Direito Tributário da FGVlaw. Mestre e especialista em Direito Tributário.









*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico. 

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