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A Constituição como ferramenta de trabalho (II)

Jovens desperdiçam muito tempo com pretensos argumentos de autoridade. Devem ser mais originais na leitura do texto constitucional, mergulhando nas múltiplas acepções de princípios e regras jurídicas. Quando abrirem a Constituição, pensem como Pablo Picasso: não procurem, encontrem!

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Atualizado às 07:48

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O jovem profissional do Direito precisa esquecer de como lhe maltrataram na faculdade de Direito. Perdoe os péssimos professores, aqueles que lhe obrigaram a ler livros, ou manuais que eles mesmos escreveram para o curso de direito penal. Absolva os excêntricos que lhe apresentaram uma "teoria do delito", na graduação, um tanto pessoal.

O principal, para mim, é sugerir que o jovem desculpe o atraso do sistema de ensino que trata o aluno como alguém que deve sucumbir à experiência e ao conhecimento do passado, vociferado pelo professor da ocasião.

No caso do aluno do Direito, as faculdades querem vê-lo de joelhos frente à doutrina e à jurisprudência vigentes. Enfim, pretendem reduzi-lo a alguém apto a decorar teorias e pretensos precedentes, cuja validade empírica não é convidado a questionar, cuja lógica não se vê inspirado a criticar. Se passar no concurso público, ou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, satisfeita a missão educacional da instituição. Faculdade de excelência mostrar-se-ia aquela que mais aprova em concursos públicos. Será?

Se o Direito não é um dado, mas um construído, como se aprende em Teoria Geral do Direito, o comportamento do profissional do Direito, inserido no seu tempo, demanda a consciência da necessidade cotidiana de se aprimorar para resolver novos problemas.

Não adianta contemplar os alicerces. A dogmática jurídica apresenta-se como metodologia, não como religião. Logo, não se prescindem de economia, sociologia, história, ciência e filosofia, na reflexão para a interpretação do Direito. E, o palpite àquele que almeja resolver casos é: seja cético diante de afirmações de julgados ou da doutrina que lhe pareçam injustas, ou não concernentes com a Constituição da República. 

Ora, o advogado precisa construir soluções, bem assim responder a questões práticas dos clientes, as quais exigem dinâmica de pensamento fincada na realidade contemporânea. Com todo acatamento, desista de imitar seu avô, pois as respostas para a defesa penal não se encontram todas nos clássicos comentários de Nelson Hungria.

Hoje, os desafios se exibem outros, começando com a comunicação com as autoridades que recebem a defesa criminal. Cabe ao advogado compreender como pensam e agem juízes e acusadores públicos, antes de estruturar argumentos.

O primeiro obstáculo nasce na visão autoritária do direito penal que mutila a cabeça de alguns juízes criminais, os quais querem ser reconhecidos, socialmente, como rígidos repressores, quando, na realidade, são apenas mal formados, não foram instruídos quantos aos fins últimos da magistratura.

O segundo óbice ao sucesso da defesa está na perspectiva retrógrada de integrantes do Ministério Público que se enxergam como meros acusadores públicos, portanto, negam ser promotores de Justiça e se sentem desvinculados da verdade, da legalidade e dos direitos individuais (art. 37 c.c. art. 129, I, da CR).

O terceiro embaraço a enfrentar emerge o mecanismo atrasado de atuação dos tribunais que gostam de se repetir (nos erros, inclusive), sem se constrangerem de usar de armadilhas procedimentais para não ofertar Justiça aos casos concretos (art. 5º, XXXV, da CR). Nada como encontrar empecilho ao conhecimento do recurso (art. 5º, LIV, da CR), como assentar que não se analisam provas em recursos criminais (art. 5º, LVII, da CR), como negar a ampla cognição do habeas corpus para a tutela da liberdade individual (art. 5º, LXVIII, da CR), ou como declamar a jurisprudência - ainda que injusta, ou em descompasso com interpretação constitucional.

Enfim, como enfrentar quem lhe ouve com preconceito em relação ao acusado, com má vontade por excesso de trabalho e com um viés equivocado quanto ao fim do direito penal? 

Use a Constituição, como instrumento, para a argumentação sólida na construção da defesa criminal. A cada argumento, indique o dispositivo constitucional que lhe dá base, ou que se exibe violado no âmbito do processo judicial.  

Por mais inovador, ou extravagante que aparente ser o que a defesa diz, todos a encaram com mais seriedade, quando se oferta matiz constitucional. Quem sabe criar teses por meio de novas exegeses das disposições constitucionais consegue tirar os julgadores do conforto da repetição de decisões, obriga o Ministério Público a não copiar o arquivo do parecer, trocando somente o nome do réu. 

Desse modo, no tocante ao direito penal, tenha convicção de que a teoria do bem jurídico penal não se apresenta tema acadêmico. Cuida-se de método eficiente para se aprender a decifrar os tipos penais, bem assim para reconhecer falhas gravíssimas na imputação criminal.

Para tanto, tomo a liberdade de indicar um passo a passo de como utilizar a Constituição, para apreciação do sentido e significado de uma infração penal: 

1. Você deve ler o tipo penal - só ele! Não olhe o comentário, a jurisprudência, a doutrina, não procure dicas na internet;

2. Pergunte a si próprio:

2.1. Qual valor constitucional se quer proteger com esse tipo penal?

2.2. O que o legislador quis resguardar quando esse tipo penal foi criado?

2.3. O valor constitucional, protegido pelo legislador, tem o mesmo sentido no mundo contemporâneo?

2.4. O indivíduo, meu cliente, entendeu que violava esse valor constitucional? Quando? Por que?

2.5. O resultado material do crime corresponde à violação do valor constitucional, protegido pelo tipo? Há tipicidade material?

2.6. A acusação pública imputou a violação desse valor constitucional? Está descrita essa violação na denúncia?

2.7. Algum outro valor constitucional está em jogo, quando examino os fatos? (existe excludente de ilicitude?)

2.8. Como a doutrina constitucional e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal enxergam esses valores?

3. Convicto quanto às suas concepções, pesquise doutrina e jurisprudência penal para colocar as hipóteses em xeque, ou para aprimorar o que refletiu. 

A receita acima proposta deve ser experimentada pelo leitor. Parece-me impossível discutir, por exemplo, sobre crimes econômicos sem conhecer a fundo os artigos da Lei Maior atinentes à ordem econômico-financeira (art. 170 e seguintes, da CR).

Enfim, jovens desperdiçam muito tempo com pretensos argumentos de autoridade. Devem ser mais originais na leitura do texto constitucional, mergulhando nas múltiplas acepções de princípios e regras jurídicas. Quando abrirem a Constituição, pensem como Pablo Picasso: não procurem, encontrem!   

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t*Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo é advogado. Mestre e doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-doutor no Ius Gentium Conimbrigae (Universidade de Coimbra). Sócio do escritório Moraes Pitombo Advogados.

 

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