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Non bis in idem nas penas administrativas

Tema tormentoso no meio forense concerne aos problemas decorrentes da conduta ilícita de alguém (infração) da qual possa resultar imposição de penalidades de natureza jurídica diferentes, ou da mesma natureza.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Atualizado às 08:36

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Tema tormentoso no meio forense concerne aos problemas decorrentes da conduta ilícita de alguém (infração) da qual possa resultar imposição de penalidades de natureza jurídica diferentes, ou da mesma natureza. Isso ocorre quando a conduta originar penalidades das ordens penal, administrativa e civil; ou, da prática da infração decorrer mais de uma penalidade, porém, da mesma natureza jurídica, isto é, acúmulo de sanções penais; ou de sanções administrativas etc. Como resolver essa questão?

Provadas as condutas delituosas de servidor público, envolvido em crimes de corrupção passiva (art.317, CP), e de prevaricação (art. 319), poderá sofrer, perante o Judiciário, as respectivas penalidades,  cumuladas, em concurso material, como determina a legislação penal (art.69, "caput").1 Além disso, estará sujeito às sanções de natureza administrativa, no caso, sanções disciplinares, estabelecidas nos respectivos estatutos (leis), apuradas no âmbito administrativo, sem prejuízo, se for o caso, das reprimendas decorrentes da  ação de improbidade administrativa, impostas no Judiciário. Finalmente, terá que ressarcir a Administração Pública pelos prejuízos causados ao erário (responsabilidade civil).

Isso porque, as instâncias penal, administrativa e civil são, em princípio, independentes, observadas, porém, as relações entre elas, nos termos definidos pelo Direito. Como exemplário, o Código Civil, no artigo 935, estabelece a impossibilidade  de se questionar a existência do fato [delituoso], ou sobre quem seja o autor [autoria], quando essas questões já houverem sido decididas [definitivamente] no juízo criminal. Importa mencionar, ainda, o artigo  8º, da Lei de Abuso de Autoridade (13.869, 2019): 'Faz coisa julgada em âmbito cível, assim como no administrativo-disciplinar, a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Essas situações, polêmicas, costumam estar delineadas nos Códigos Penal e Processo Penal,2 ou em legislações esparsas. Entretanto, o tema torna-se menos claro, quando a conduta ilícita  leva à possibilidade de aplicar-se 'mais de uma sanção administrativa'. Ou seja: dada conduta ilícita pode redundar na imposição de mais de uma penalidade administrativa?

De maneira geral, a infração é considerada administrativa, na medida em que o ordenamento jurídico atribua a certa autoridade,  na função administrativa, competência para impor a respectiva penalidade. Como expõe Celso Antônio Bandeira de Mello, em frase lapidar, "reconhece-se a natureza administrativa de uma infração  pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la."(Curso de Direito Administrativo, p.898, 34ªed., Malheiros, 2019).  Logo, o ilícito será administrativo se a sanção a ser imposta for de competência de autoridade administrativa (função administrativa)!

Um dos princípios das penalidades administrativas, ordinariamente referido pela abalizada doutrina, é  o 'non bis in idem, o qual, na verdade, é princípio geral de Direito; e, conforme já aduzimos, decorre dos princípios da legalidade e tipicidade, ambos princípios das infrações e penalidades administrativas.3  Como o nome está a indicar, o non bis in idem veda à autoridade impor  mais de uma penalidade administrativa no sujeito infrator.  

Apesar disso, a lei pode, expressamente, estabelecer a imposição de mais de uma penalidade administrativa, embora tenha havido o cometimento de somente uma infração. Dessa forma, o artigo 87, §2º, da Lei 8.666/93 (Normas Gerais de Licitações e Contratos Administrativos), permite à autoridade impor, concomitantemente, a multa com a advertência, a suspensão temporária e a declaração de inidoneidade, conforme o caso, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.

Porém,  como resolver o problema em que a conduta afronta duas ou mais normas jurídicas,  cada qual estabelecendo sanções administrativas, quando omissa a lei a respeito da possibilidade de imposição cumulativa dessas penalidades? Seria imposta apenas uma delas, a critério da autoridade? Se possível, qual seria o critério para a escolha desta ou daquela sanção? Haveria critério seguro à autoridade administrativa, a fim de escolher a penalidade?

A nosso ver, deve-se buscar critério formal-dogmático, baseado no descumprimento de deveres de normas jurídicas ]sobretudo] de proteção de bens ou valores diferentes, justificando a imposição cumulativa de sanções administrativas, apesar da omissão da lei a respeito da cumulatividade delas. Se violado mais de um dever jurídico, especialmente contidos em normas de natureza jurídico-administrativa diversas, no silêncio da lei, haverá a imposição cumulativa das respectivas sanções administrativas!4

Se dada pessoa importa mercadorias sem autorização do órgão sanitário competente [ordem sanitária] e sem efetuar o pagamento do tributo [ordem tributária], arcará com duas consequências normativas, porque dois deveres jurídicos foram violados. Assim também, quando uma pessoa jurídica, para importar dado produto, precisa de autorização do órgão sanitário e do órgão de fiscalização de atividade econômicas: as  penas serão somadas!

As penalidades podem ser da mesma espécie; normalmente, multas são impostas por descumprimento de deveres jurídicos contidos em normas legais diversas. Assim, pouco importa o tipo ou espécie de sanção   administrativas (multas, suspensões, interdições), bem assim os órgãos competentes que devam impor as penalidades, podendo ser um só, ou recair em diferentes órgãos, como sói acontecer.  

Conforme explica Susana Lorenzo,  não há ofensa ao princípio do non bis in idem, quando a norma, expressa ou tacitamente, atribui competência à Administração para impor as penalidades (Sanciones Administrativas. Montevideo, Júlio César Faira, 1996).  

Na omissão do texto legal, não é caso de aplicar-se o Código Penal (concurso formal de crimes),5 para imposição de penas administrativas de forma menos gravosa ao agente,  pois, de regra, no Direito Administrativo, ocorre o cúmulo de penalidades; tendo havido violação de mais de um dever, no silêncio da lei, o sujeito deve suportar as respectivas consequências. Na expressão capilar de Zanobini, "se a pessoa tinha um duplo dever de não cometer o fato, cometendo-o, viola duas diversas obrigações e deve suportar as consequências da dupla transgressão."(Le Sanzioni Amministrative, p.156. Torino, Fratelli Bocca, 1924). 

Se, porventura, o cúmulo das sanções resultar excessivo, desproporcional, em virtude do critério ou princípio da proporcionalidade, a autoridade deve reduzi-las, à medida da conduta do infrator, do grau de culpabilidade (dolo, culpa) e demais dados concretos contidos  no  processo. 

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1- Referido dispositivo determina a cumulação de penas quando o infrator cometer, mediante mais de uma ação ou omissão, mais de um crime, idênticos ou não.

2- Dentre outras normas: arts. 63 e 68 CP; 63 a 67 e 92 a 94 CPP.

3- Heraldo Garcia Vitta, A Sanção no Direito Administrativo, p.114, Malheiros, 2003.

4- Nesta ocasião, bom destacar o disposto no artigo 17, "caput", da Lei Complementar 140/2011,  de proteção ambiental, cuja legislação advém do artigo 23 e parágrafo único, da Constituição Federal,  que tratam da competência administrativa comum, concorrente, de execução, da União, Estados e Municípios: 'Art. 17.  Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.'

5- O artigo 70, "caput", do CP, estipula critério específico para a imposição de penalidades, quando o agente mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Em princípio, não há cumulação das sanções.

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*Heraldo Garcia Vitta. Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Advogado e Professor de Direito. Especialista em Direito Privado (ITE-Bauru-SP). Mestre e Doutor em Direito do Estado (PUC-SP).

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