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Quando a ciência encontra a Constituição

A insistência de que a ciência poderia se sobrepor à vontade do soberano, fundamentando o ato jurídico, pode ser boa retórica, mas não deslinda o dilema.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Atualizado às 09:04

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Em que se fundamenta a decisão de um ato jurídico? No atual cenário de pandemia, a resposta da vez é a Ciência. É em nome da Ciência, dos dados científicos e de uma infinidade de pesquisas que membros dos três poderes de todo o mundo têm fundamentado suas decisões pelo isolamento social ou não. De modo algum, o presente texto pretende navegar pelas águas da política, pois se presta tão somente a defender que, em última instância, o que deveria fundamentar qualquer ato jurídico é a Constituição do país e não a Ciência ou outras tradições.

Encontra-se em voga certo discurso que vincula, de modo estrito, a ciência e os fundamentos do ato jurídico, de forma que pouco ou nenhum espaço restaria à autoridade competente senão seguir as prescrições científicas. De fato, a ciência deve ser considerada como elemento, entre outros, para a tomada de decisão, mas considerá-la fundamentação última é fazer injustiça tanto à complexidade da ciência, quanto à complexidade do ato jurídico.

Como se argumentará a seguir, a fundamentação de um ato jurídico envolve em especial a consideração de valores, os quais não podem ser deduzidos de qualquer descrição científica acerca dos fatos. Em última instância, a autoridade deve voltar-se à Constituição, para que nela encontre os valores últimos que uma sociedade, por meio de seus constituintes, optou por defender e cultivar.

Ressalte-se que o problema da fundamentação de decisões no âmbito jurídico não é tão somente teórico. Quando cidadãos brasileiros, e de outros países de modo geral, em tempos de pandemia, têm seus direitos fundamentais restringidos, a maior parte das vezes por decretos do Poder Executivo - os quais não possuem força de lei -, torna-se legítima a dúvida não somente acerca da constitucionalidade desses atos, mas também, e em especial, acerca da fundamentação dessas decisões.

A ciência, prática de extrema importância para as sociedades complexas da modernidade, não é onisciente. Paul Feyerabend, em seu Against Method, preocupou-se em demonstrar que a ciência, enquanto prática humana, estrutura-se como uma tradição entre outras, ainda que formada por pressupostos que lhe assegurem certos padrões de racionalidade. Para o autor, uma sociedade é composta por diversas tradições, e para que essa mesma sociedade seja livre é preciso que haja uma estrutura que possibilite a coexistência dessas tradições, algo como uma concorrência irrestrita dessas tradições. Uma sociedade em que uma única tradição - seja pelo seu grau de objetividade, seja por qualquer outro motivo - alcança uma posição de poder sem concorrência com outras tradições, não é, em sua plenitude, livre. Portanto, não há razão para, em uma sociedade democrática, deixar a alguma dessas tradições necessariamente a prerrogativa de dar última palavra acerca de decisões que vincularão todo o grupo. Além disso, em regra, a ciência não possui conteúdo prescritivo - ou seja, nenhuma ciência diz acerca do que deve ser o caso, mas sim do que é o caso - como também não pode arrogar-se detentora dos valores últimos da espécie humana, sob pena de se tornar ciência, ou mera ideologia.   

Nesse sentido, a insistência de que a ciência poderia se sobrepor à vontade do soberano, fundamentando o ato jurídico, pode ser boa retórica, mas não deslinda o dilema. Inclusive porque no atual cenário, vimos que a ciência tem sido utilizada por políticos que defendem o isolamento social bem como pelos políticos que defendem a flexibilização do isolamento. Há uma ciência econômica que pode muito bem privilegiar a economia, como pode haver também, dentro da própria epidemiologia, entendimentos distintos sobre o coronavírus e seus efeitos.

Em um Estado Democrático de Direito, todo uso do poder político, em especial pelo seu mandatário, dá-se por meio do direito, não se podendo submeter o império da lei às motivações subjetivas dos agentes públicos, mesmo que legalmente investidos. Nesse caso, o exercício do poder público não se dá à margem do ordenamento jurídico; ao contrário, tal exercício extrai sua validade do direito, sendo muitas vezes difícil discernir onde começa e termina o ato jurídico puro.

Em outras palavras, o agente público toma suas decisões a partir de motivações objetivas estabelecidas pelo ordenamento jurídico que estiver em vigor, de modo que a cada vez que se fizer necessária uma decisão, o agente responsável não se entregue a interesses pessoais, valores subjetivos entre outros fundamentos. Se na ética o indivíduo possui liberdade para recorrer ao sistema moral que considerar mais adequado - ainda que não se trate muitas vezes de uma escolha verdadeiramente livre -, vinculando-se aos motivos que ele mesmo põe para si ao decidir, ao agente público não há outra saída senão tomar a decisão que encontre seu fundamento no próprio ordenamento jurídico, havendo risco de, caso contrário, descaracterizar-se o próprio Estado de Direito.

Contudo, não se trata tão somente de verificar a legalidade e constitucionalidade do ato. No caso, tanto uma decisão pelo isolamento quanto pela manutenção da abertura do comércio pode, em tese, encontrar amparo no normativo constitucional. O problema é semelhante, mas outro: qual das duas decisões elencadas, a título de exemplo, possui fundamentação mais adequada - ou seja, sendo ambas constitucionais, qual seria a mais legítima.

Adentra-se aqui território à margem do Direito positivado em lei. De fato, a legitimidade, para além da concordância com o ordenamento, levanta a questão de o porquê obedecer. Carlos Santiago Nino já notara que a obediência às normas não poderia derivar do sistema jurídico, mas sim de uma apreciação ética das normas. Não é o caso de, para argumentar pela legitimidade da decisão pró-isolamento, apelar para algum sistema ético em especial, embora, junto com a ciência, esses sistemas também devam concorrer como elementos para a tomada de decisão. Cremos, no entanto, que a resposta - mesmo estando em uma zona para além do direito positivado - pela motivação de um ato jurídico exige que se retorne mais uma vez à Constituição.

A Constituição da República Federativa do Brasil traz um conjunto de normas procedimentais e de obrigação, mas também traz um conjunto de valores hierarquizados que faz as vezes de um quadro de fundamentação para a tomada de decisão. Em outras palavras, é a Constituição que dá à nação um quadro de valores objetivos que, à revelia dos interesses pessoais ou de grupos, deve fundamentar os atos jurídicos. A legitimidade do ato jurídico, portanto, encontra-se nos valores cristalizados por uma Constituição.

No caso concreto, pressupondo como constitucional qualquer um dos atos tomados pelos agentes públicos, a ordem do isolamento será o ato jurídico mais adequado, tendo em vista que é a decisão que se fundamenta mais concretamente no valor da dignidade da pessoa humana, que em última instância, é a fonte de irradiação dos direitos fundamentais.

Números de mortos podem ser relativizados, como estão sendo, assim como as conclusões médicas e científicas podem contradizer-se, mas o ato jurídico deve ser executado de modo a concretizar o valor absoluto e objetivo - porque fixado constitucionalmente - da dignidade humana. Assim, os atos jurídicos em tempos de calamidade não devem convergir para salvaguardar uma ideologia, conclusões científicas ou econômicas, ou alguma mitificação qualquer.

Fundamentada pela manutenção da dignidade humana em específico, o ato jurídico deve garantir no presente que todas as pessoas - independentemente de números - possam ser atendidas em hospitais, e não morrer em corredores por falta de respiradores; ou que, se a morte se mostrar irremediável, mesmo sob tratamento médico, que essas mesmas pessoas possam ser enterradas dignamente e tenham seu corpo velado, ainda que à distância, por seus familiares; ou, por fim, que as condições de trabalho oferecidas aos funcionários da saúde e serviços funerários sejam salubres.

A defesa de um valor absoluto, como a dignidade humana, pode resultar em um sem número de efeitos colaterais a curto e médio prazo, mas todo ato jurídico deve maximizar e concretizar esse valor no momento presente, ainda que em hipótese haja restrição de direitos em caráter excepcional.  Não se pode ferir a dignidade humana hoje com a desculpa de que, em hipótese, esse valor será garantido amanhã.

É a garantia de que os atos jurídicos continuarão se fundamentando nesse valor último que permitirá, ainda que a longo prazo, mitigar esses mesmos efeitos deletérios.

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*Gustavo Pizzicola é graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo, lotado na Assessoria Técnica Jurídica da Diretoria-Geral da Instituição.

*Renzo E. Pegoraro Bedetti é graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assistente Jurídico em Pinheiro Neto Advogados. Coautor de pesquisa de iniciação científica (Bolsa PIBIC/CNPq) intitulada "O agasalho legislativo aos desagasalhados". Monitor da matéria de Direito Comercial.

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