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Desafios do uso de drogas a população carcerária

Se o consumo de substâncias psicoativas na sociedade brasileira é preocupante, torna-se ainda mais grave dentro das unidades prisionais.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Atualizado às 08:18

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O consumo de drogas no âmbito da sociedade brasileira é preocupante. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgada no ano passado, aponta que 4,9 milhões de brasileiros consumiram drogas ilícitas em período recente, e o universo abrangeu entrevistados entre 12 e 65 anos em todo o país. O estudo teve parceria com o IBGE, Instituto Nacional de Câncer e Universidade de Princeton (EUA).

A dependência inclui inúmeras substâncias: tabaco, álcool, cocaína, maconha, crack, solventes, heroína, ecstasy, tranquilizantes, benzodiazepínicos, esteroides, anabolizantes, sedativos barbitúricos, estimulantes, anfetamínicos, analgésicos, opiáceos, anticolinérgicos, LSD e drogas injetáveis. As mais usadas são maconha e cocaína.

Se o consumo de substâncias psicoativas na sociedade brasileira é preocupante, torna-se ainda mais grave dentro das unidades prisionais. O Brasil é o terceiro colocado no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, com 773.151 mil apenados, presos em unidades prisionais e delegacias, dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), referentes ao ano de 2019. Somos superados por Estados Unidos e China.

As drogas estão presentes no sistema prisional como forma de os custodiados lidarem com as mazelas do encarceramento, como a superpopulação, condições de insalubridade, exposição à violência, falta de assistência à saúde e o rompimento dos laços familiares.

Em 2017, o Infopen elaborou um relatório nacional de informações penitenciárias; uma das conclusões foi de que a quantidade total de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil, em número superior a 176 mil, representa quase 30% da população carcerária. Ainda, com a promulgação da lei 11.343/06 - Lei Antidrogas, o número total de presos por tráfico de drogas aumentou.

A situação do nosso sistema prisional é crítica: quase 45% dos presos estão no regime fechado; em segundo lugar, vêm os presos provisórios, são pessoas encarceradas sem uma sentença definitiva, não são inocentes nem culpados, que somam quase 40%. O regime semiaberto atinge16% e o regime aberto, em torno de 4% do total. Segundo o relatório do DEPEN, o Brasil tem 461.026 vagas disponíveis, para uma população flutuante de 770 mil presos, ou seja, temos um déficit de aproximadamente 312.130 vagas. São pessoas que estão amontoadas nas vagas e espaços disponíveis.

Importante dizer que a grande maioria dos presos tem entre 18 e 29 anos, 90% são do sexo masculino e quase 8% do sexo feminino, porém os dados demostram que, nos últimos anos, tivemos um crescimento significativo da população carcerária feminina. Os crimes relacionados a essas presas são de entorpecentes, depois contra o patrimônio e, em seguida contra a pessoa e contra dignidade sexual.

As condições precárias e desumanas das prisões, com celas úmidas, frias ou muito quentes e sem ventilação adequada propiciam a proliferação das doenças contagiosas, transmitidas pelo ar, como a tuberculose, doenças de pele, e, agora a covid-19, que se alastra no meio carcerário. A situação se agrava quando falamos dos portadores do HIV, diabetes e dependentes de drogas. Estamos vivendo a maior crise sanitária que o país já teve e atinge diretamente o sistema prisional, pelas más condições de higiene e falta de assistência médica.

Já podem ser consideradas folclóricas as histórias da fabricação da chamada droga "Maria Louca", bebida alcoólica artesanal produzida a partir de frutas e cereais dentro dos presídios. Hoje, o crime organizado ingressa sem cerimônia no estabelecimento penal com drogas, tendo ou não conivência com a segurança prisional, e disseminando todo tipo de substâncias psicoativas e meios de extorsões.

Diz-se que o crack foi banido dos presídios brasileiros por determinação das facções criminosas, pois tal droga deixa a pessoa alucinada e, por isso, sem nenhum controle, atrapalhando assim o maior negócio dos grupos, que é a venda de drogas.

É importante salientar que surgiu uma nova droga no cenário nacional e, por conseguinte, no sistema prisional, chamada de "K4", trata-se de uma espécie de maconha produzida em laboratório, 100 vezes mais forte que a comum.

Até o mês passado os laboratórios das polícias do país não tinham como comprovar cientificamente que o K4 é entorpecente, e consequentemente, fazer a apreensão dessa droga, além de instaurar o devido processo contra o vendedor, traficante. Em 2019, foram registradas 1821 apreensões de K4 nos presídios paulistas; de janeiro a março deste ano, 483.

Com a aquisição, pelo estado de São Paulo, de um equipamento, chamado FTIR, fabricado nos Estados Unidos, a Polícia Científica Paulista passou a emitir laudos para confirmar o tráfico de drogas sintéticas, uma vez que o aparelho analisa uma gota e, em minutos, identifica a droga, seja a K4 ou qualquer outra droga sintética.

Ainda que as visitas estejam suspensas, por conta da pandemia, no sistema prisional paulista, seguem as tentativas para a entrada de drogas: no CDP de São Bernardo do Campo, em 13 de agosto, 586 micropontos de K4 foram encontrados na palmilha de um tênis - a substância é borrifada em papel e depois remetida aos presidiários, das maneiras menos prováveis. Um exemplo é o uso dos rolos de papel higiênico, dentro dos quais os traficantes também ocultam entorpecentes. Por conta disse, até esse item de higiene, se levado por familiares, foi proibido pela Secretaria de Administração Penitenciária.

São Paulo tem se empenhado na melhora do sistema prisional, bem como ao combate as drogas, por meio da firme atuação da Secretaria da Administração Prisional, hoje comandada pelo secretário, Coronel Nivaldo Cesar Restivo.

A droga dentro das prisões parece acalmar o sistema; segundo relato de alguns presos, o entorpecente exerce uma função de freio na prisão, fazendo tudo funcionar "normalmente", evitando inclusive rebeliões. Contudo, trata-se de uma situação que gera graves consequências aos presos, a começar pelo adoecimento. É fato que parte dos usuários de drogas ilícitas dentro das prisões já haviam usado, antes de serem presos, drogas lícitas, como bebidas alcóolicas e cigarros, substâncias aceitas pela sociedade, mas que geram dependências semelhantes às ilícitas, além de outras drogas leves, compradas inclusive em farmácias. Contudo, é na prisão que ele/ela conhece as drogas pesadas.

A tentativa de colocar a droga para dentro dos presídios ocorre de várias maneiras, a mais comum ainda é no dia da visita, porém os guardas penitenciários são treinados, experientes e geralmente localizam os entorpecentes durante a revista, embora a modalidade íntima desta seja humilhante. Mesmo que realizada em ambos os gêneros, a revista reflete especialmente no aumento da população carcerária feminina, pelo crime de tráfico de drogas.

Os apenados têm direito à saúde, como estabelece a Lei de Execução Penal e a Constituição Brasileira, mas a realidade de vulnerabilidade, em que vivem, sustenta condições para a proliferação das drogas no sistema prisional.

Infelizmente é muito difícil saber o número real de usuários ou dependentes químicos dentro do sistema prisional, uma vez que as pessoas presas não admitem o uso de drogas. Sabemos que a maconha e a cocaína são as drogas mais usadas entre os presos homens e, entre as mulheres, os psicofármacos, e, os tranquilizantes.

Falta ao Estado a consolidação de políticas públicas que alterem essa grave realidade, pois são precários os programas de desintoxicação e de reabilitação dos presos, que não dispõem de assistência mínima à saúde. Durante a pandemia de covid-19, não faltaram argumentos para o desencarceramento de presos por questões humanitárias.

A circulação e consumo de drogas dentro do sistema penal são de difícil prevenção e sustentados por um círculo vicioso. A família do apenado/usuário tem de pagar suas dívidas de diversas formas ao crime organizado e o usuário é escravo de todo tipo de extorsão dentro da unidade prisional.

Alguns especialistas, defendem a criação de um presídio exclusivo para desintoxicação e reabilitação do custodiado que é dependente químico, porém este, ao sair da cadeia, ficará eternamente marcado na sociedade, seja como egresso do sistema prisional ou, ainda, mais usuário de droga.

Como combater de forma eficiente a dependência de substâncias psicoativas? Como debelar o tráfico dentro do sistema prisional? Com vencer a vulnerabilidade dos apenados, ligada às drogas? O tráfico no Sistema Penitenciário está, em grande parte ligado à impunidade, sendo que o aparato repressivo e punitivo do Estado para coibir a distribuição e uso de drogas nos presídios não consegue dar as respostas necessárias.

Torna-se necessário, portanto, adotar uma série de ações, como melhora na educação e políticas de ressocialização, além do enfrentamento dos problemas decorrentes do álcool e outras drogas nos cárceres, garantindo tratamento adequado aos dependentes químicos. É fundamental pensar a drogadição levando em conta as especificidades do sistema penal, ou seremos vencidos por esse grave problema.

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t*Umberto Luiz Borges D'Urso é advogado Criminal, mestre em Direito Político e Econômico. Pós-graduado "Lato Sensu" em Direito Penal, em Processo Penal e em Direito. Presidente do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo por quatro gestões. Advogado do escritório D'Urso e Borges Advogados Associados.

 

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