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A dignidade da pessoa humana, a quarta revolução e o inciso VII, do art. 2º da lei 13.709/18 (LGPD)

O princípio da dignidade da pessoa humana passa a ganhar novos contornos na hiperhistória.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Atualizado às 08:05

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A partir do quarto final do século XX, o direito civil deixa de exercer uma função central no âmbito das relações privadas, em razão da maior importância que o direito constitucional passa a adquirir no sistema normativo. Nessa esteira, tem-se na Constituição de 88, como exemplos, disposições acerca da função social da propriedade, defesa do consumidor e proteção à família. Ademais, os direitos e garantias fundamentais, manifestados por meio de princípios, passam a nortear um movimento de harmonização do direito privado com o texto constitucional. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana alcança função central na ordem jurídica, assumindo uma proporção transcendental. Pois, na contemporaneidade, a carta política emana seus efeitos a dimensões jurídicas que vão muito além do direito público.

O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no inciso III, do art. 1º, da carta magna de 88, constitui princípio fundamental do estado democrático de direito, inserindo na ordem constitucional a visão kantiana de que os indivíduos possuem dignidade, pois, a humanidade passa a presenciar a era do ser em detrimento do ter.  Contudo, essa noção de dignidade da pessoa humana, deve-se harmonizar com a importância que os dados pessoais do indivíduo passam a ter na sociedade da informação e a sua direta influência na sua existência digna numa sociedade eminentemente digital. Com efeito, partindo da premissa de que as disposições preceituadas no texto constitucional, em suas abstrações, não abarcam as respostas para as questões que buscam solucionar, tem-se, por certo, a necessidade de que o princípio da dignidade da pessoa humana cada vez mais deve dialogar com as transformações tecnológicas vivenciadas no século XXI.

Em épocas passadas, os indivíduos desenvolviam a sua sociabilidade por meio de suas famílias ou aldeias. Tais coletivos eram restritos e herméticos a redes locais. Ao passo que na contemporaneidade, as relações sociais são cultivadas por meio da internet, onde se verifica a existência de redes extensas e de âmbito global. O sentimento de pertencimento do indivíduo nesses grupos virtuais está intimamente ligado a suas paixões e estilo de vida e não, necessariamente, aos seus laços sanguíneos, origens étnicas ou nacionalidade. Ocorre que, para se inserir nesse novo modelo de relação social, e, consequentemente, existir, o indivíduo deve fornecer uma série de dados pessoais (n° de telefone, e-mail, CPF...) e ao entrar nessa rede virtual, o mesmo passa a produzir uma série de dados e informações que servem de matéria-prima para o desenvolvimento econômico das maiores empresas do mundo. Esse existir está diretamente condicionado à noção de privacidade, intimidade e autodeterminação informacional do indivíduo, que na hiperhistória,1 consubstanciam sobremaneira o valor da dignidade da pessoa humana.

A importância dos dados pessoais na constituição do indivíduo na atual sociedade, e do novo sentido que a dignidade da pessoa humana passa a adquirir, perpassa por uma breve análise da evolução tecnológica e antropológica da espécie humana e as suas consequências nas relações econômicas e sociais de toda uma coletividade.

Segundo Luciano Floridi,2 as tecnologias podem ser analisadas em primeira, segunda ou terceira ordem de acordo com sua natureza. Quando as tecnologias estão entre os seres humanos e a natureza, num sentido intermediário, podemos qualificá-las como de primeira ordem (humanidade-tecnologia-natureza). Nesse sentido, tem-se rudimentares formas de entrepostos tecnológicos como o chapéu, sandálias, o machado, a roda ou o guarda-chuva. Todavia, é de se destacar que muitos animais criam tecnologias simples de primeira ordem, como varas ou conchas, para realizar tarefas de limpeza, luta ou até mesmo brincadeiras.

Contudo, mesmo que seja possível se verificar que muitas outras espécies também construam e fabriquem artefatos como os seres humanos, o nosso nível de sofisticação e complexidade é muito mais intenso no desenvolvimento de tais habilidades (homo technologicus). Já as tecnologias de segunda ordem (humanidade-tecnologia-tecnologia), diretamente ligadas ao desenvolvimento do comércio e de um nível de socialização humana mais complexa, não estão mais relacionadas à natureza, mas a outras tecnologias. Como elementos marcantes da modernidade e da Revolução Industrial, tem-se como exemplos: a chave de fenda, os veículos e o motor. No que tange às tecnologias de terceira ordem, tais inovações possuem tamanha autonomia que, em certos cenários, os seres humanos não são um elemento essencial na cadeia de comando destes dispositivos (tecnologia-tecnologia-tecnologia). Nesse modelo social, localizado na hiperhistória, observa-se que diferentemente das tecnologias de segunda ordem, que são fortemente influenciadas por motores, as de terceira ligam-se diretamente aos computadores inteligentes e são entendidas como tecnologias da informação e comunicação (TIC). Note-se a internet das coisas, os veículos autônomos, os códigos de barras e as tecnologias que transformam a casa num ambiente inteligente.

Junto com as inovações tecnológicas, a humanidade também experimentou revoluções antropológicas que fizeram o homem repensar o seu existir. A primeira delas demonstrou que o planeta terra não estava inserido no centro do universo (Revolução Copernicana - 1543). Com Charles Darwin, a humanidade passou a ter ciência de que a evolução de sua espécie, não era tão única e exclusiva aos humanos, e que não somos tão distintos do resto do reino animal (Revolução Darwiniana - 1859). Contudo, mesmo sabendo não estar no centro do universo ou do reino animal, a espécie humana considerava-se no poder sobre seus próprios pensamentos. A partir dos estudos de Sigmund Freud (1917), a noção de que o ser humano detinha o acesso e o controle sobre os seus conteúdos mentais, foi contraposta por um modelo mental que está inconsciente e sujeito a mecanismos de defesa, como a repressão. O papel de Freud foi determinante em iniciar o deslocamento de nossas certezas cartesianas, "penso, logo existo", sendo complementado pelo desenvolvimento da neurociência. Tem-se a terceira revolução (revolução freudiana ou neurocientífica).3 Por último, e como as três revoluções anteriores, a quarta revolução removeu um equívoco sobre nossa existência, além de fornecer os meios conceituais para reinventar o nosso próprio ser. Sendo assim, após os estudos de Alan Turing (1950),4 o pai da quarta revolução, a espécie humana desloca-se de sua privilegiada função de ser a única detentora do raciocínio lógico, do processamento de informações e de um comportamento inteligente.

Na contemporaneidade, estamos cada vez mais delegando para sistemas de inteligência artificial nossas memórias, tarefas e outras atividades cotidianas, sendo esse o traço marcante da quarta revolução. Nesse momento histórico, paulatinamente, as interfaces digitais aumentam sua interconexão com o mundo físico, fazendo da espécie humana um organismo de informação (Inforg). Essa espécie, quase que em tempo integral, conecta-se com um ambiente informacional (infosfera), por meio do compartilhamento de informações com indivíduos naturais e artificiais que também processam informações de forma lógica e autônoma.5

Desse modo, ao mudar nossa compreensão do mundo externo, também modificamos nossa concepção de quem somos, isto é, nossa autocompreensão. Nesse contexto social, os dados passam a influenciar excessivamente a existência do indivíduo em sua vida em sociedade, não por outra razão, pode-se afirmar que o mundo está repleto de dados. A acentuada expansão da Internet e a proliferação de tecnologias como big data e inteligência artificial (IA) impulsionam um consumo e utilização de dados num ritmo bastante acelerado. Estima-se que o mundo irá gerar cerca de 90 zetabytes (cerca de 1 bilhão de terabytes) até o fim de 2020. Tal consumo materializa um volume de dados maior do que todos os dados já produzidos desde o advento dos computadores.6 Em 2025, conjectura-se que os dados globais cresçam de 33 zetabytes para 175 zetabytes, com grande parte deles estando armazenados em nuvem.7 Vários setores da economia (saúde, bancário e publicidade...) impulsionam suas atividades econômicas por meio desses dados. Sendo assim, à medida que os dados pessoais e não pessoais se tornam a principal matéria prima para o crescimento tecnológico e econômico mundial, surge o desafio de ressignificar a existência do indivíduo nesse novo modelo social. 

Nesse sentido, a partir dos anos 70, começam a surgir legislações voltadas a proteção de dados no continente Europeu. O Brasil, em relativo descompasso com tais transformações sociais e tecnológicas, em 14 de agosto de 2018 aprova e sanciona a lei 13.709/18. No que tange a dignidade da pessoa humana, o princípio constitucional é mencionado como "dignidade" no inciso VII, do artigo 2º da LGPD, da seguinte forma: "A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais." O inciso supracitado faz referência à dignidade de uma pessoa natural (art. 1º, LGPD)8 e surge em harmonia com importantes fundamentos da República. Apesar de sua quase imperceptível menção na norma, a dignidade da pessoa humana é um conceito estruturante para a interpretação da LGPD, bem como para a compreensão de uma cultura e sociedade que buscam a efetiva proteção dos dados pessoais do indivíduo na hiperhistória. Pois, a defesa dos dados pessoais emerge como um importante contraponto à crescente influência das tecnologias nas relações sociais e as assimetrias de poder existentes no controle dos dados e informações das pessoas naturais. Portanto, a recompreensão do sentido e da amplitude da dignidade da pessoa humana, nesse contexto, manifesta-se como o centro de uma nova ética digital9 voltada para a existência do indivíduo no século XXI.

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1 FLORIDI, Luciano. The Onlife Manifesto: Being human in a Hyperconnected Era. New York: springer Publishing, 2015. p. 51-53.

2 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere Is Reshaping Human Reality. Oxford Univ. Sept. 2014. p. 26-27-32.

3 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere Is Reshaping Human Reality. Oxford Univ. Sept. 2014. p. 90.

4 TURING, A. M. Computing machinery and intelligence. Mind, New Series, Vol. 59, nº 236. 1950.  p. 433-460.

5 FLORIDI, Luciano. The Fourth Revolution: How the Infosphere Is Reshaping Human Reality. Oxford Univ. Sept. 2014. p. 94.

6 THE ECONOMIST. Um dilúvio de dados está dando origem a uma nova economia. Disponível: clique aqui. Acessado em: 20/8/20.

7 SEAGATE. A digitalização do mundo. Disponível: clique aqui.  Acessado em: 20/8/20.

8 No sentido de que as pessoas jurídicas também devem ser titulares de direito no âmbito da LGPD, tem-se: ROCHA, Felipe Borring. DALESE, Pedro. A APLICABILIDADE DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS (LEI 13.709/18) ÀS PESSOAS JURÍDICAS. Empório do Direito, 2020. Disponível: clique aqui. Acessado em: 26/8/20.

9 FLORIDI, Luciano. On Human Dignity as a Foundation for the Right to Privacy. Philosophy & Technology. 2016. p. 307-312.

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*Pedro Dalese é bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), advogado do Escritório Luciano Tolla Advogados (Niterói/RJ) e especializado em Direito Digital e Proteção de Dados pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABRJ).

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