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As distintas formas de aquisição da propriedade na América do Sul

Se, ao pensarmos no Direito Imobiliário além das fronteiras nacionais é desafiador, questionarmos como se dá a aquisição de propriedade em países sul-americanos pode ser ainda mais.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Atualizado às 10:53

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Introdução

De acordo com o autor Francesco Carnelutti em sua obra 'La Figura Giuridica del Notaro¹ os sistemas notariais e de registro são muito diferentes, mas, ao mesmo tempo, são semelhantes ao redor do mundo. Diante do limbo institucional e normativo verificado aos entornos decorrentes da transnacionalização no Direito Imobiliário, Notarial e Registral, a realização desta exposição se tornou emergencial. Objetiva-se, dessa maneira, compreender de que forma reagem os sistemas imobiliários registrais e notariais no limite de suas jurisdições dentro da América do Sul. O direito comparado, que traz alento ao presente estudo, explora secundariamente se pode ser constatada uma similitude jurídico-imobiliária em alguns países sul-americanos tanto quanto há na proximidade territorial.

O Sistema Imobiliário Brasileiro

A contextualização temporal da atividade notarial e registral brasileira parte do pressuposto de que tabeliães e oficiais de registro, de um modo geral, figuraram na histo'ria nacional desde o seu descobrimento. A primeira conjectura para esse entendimento é de que no início todas as terras no Brasil eram públicas, ou seja, pertenciam ao Estado.

Entretanto, a influência lusitana no sistema brasileiro modelou-se aos poucos e com inúmeros eventos, tais como a confecção do Tratado de Tordesilhas e a vinda de Pedro Álvares Cabral para a conquista de terras nativas. Nesse interregno, o descobridor trouxe consigo um escrivão, o Pero Vaz de Caminha. E este realizava todos os registros diários dos fatos e atos jurídicos da Colônia que ocorriam dentro e fora das caravelas. Assim, é certo que essa atividade funcional carregava, desde o seu início, a identidade essencial do serviço notarial e registral. De modo afortunado, o primeiro documento confeccionado sobre as terras brasileiras foi tido como a 'Certidão de Nascimento do Brasil'.²

A dialética historiográfica no Direito Imobiliário brasileiro não é sutil, uma vez que tão logo novos instrumentos jurídicos foram surgindo, assim como a Carta de Doação e a Carta Foral. Dessa maneira é que se caracterizam as primeiras relações jurídicas entre donatários administradores de Capitanias Hereditárias e o Rei Português. Essas modalidades versavam sobre a posse hereditária das terras e sobre os direitos e deveres dos donatários em relação à exploração dos territórios. E se esses institutos naquela época existiam na condição de prematuros, hodiernamente são revestidos com um grande rigor legislativo e estrutural.

O sistema registral brasileiro é considerado atualmente um dos mais completos e contundentes sistemas, principalmente por adotar uma tipificação mista que também é popularmente conhecida como título e modo. Isso porque existe uma correlação para o surgimento do direito real, em que o título alcança efeitos relevantes e estruturais somente quando é finalmente registrado no carto'rio extrajudicial correspondente.

Assim, a registrabilidade em abstrato está adstrita ao preenchimento de ritos e pressupostos. Após a observância da prioridade estabelecida com a prenotação do título, inicia-se o processo qualificatório. Que é mais do que uma mera análise dos elementos intrínsecos e extrínsecos do título, pois o profissional registrador verifica os pressupostos de existência, validade e eficácia do negócio jurídico e emite um juízo de admissibilidade ao documento. Destarte, conferindo-lhe certeza e segurança jurídica.

Por fim, este é considerado um sistema que suporta presunção relativa de veracidade e inscrição formal. Do ponto de vista organizacional, é vinculado a um sistema de fólio real. E seus efeitos de registro são mistos, uma vez que poderão ser declarativos ou constitutivos. A complexidade do sistema brasileiro apresenta, por isto, características que o tornam diferente de todos os outros países sul-americanos. ³ 

O Sistema Imobiliário Argentino

Na Argentina, no Uruguai e no Paraguai, curiosamente há um sistema de título, ou seja, um ordenamento imobiliário declarativo em que um ti'tulo por si só é válido e gera constituição de direito real, sendo desnecessário o registro como ocorre no Brasil.

O funcionamento para a transmissão da propriedade na Argentina compõe-se com o título e com a tradição. Lago orienta que essa consonância constava nos artigos 2.601 e 2.602 do revogado Código Civil Argentino. Naquele diploma legal, para que a tradição translativa da posse pudesse transmitir o domínio do bem, exigia-se que fosse antecedida por título suficiente e realizada pelo proprietário capaz de alienar e para o adquirente capaz de adquirir.

No recente Código Civil y Comercial de La Nación, de 01 de agosto de 2015, foi mantido o mesmo sistema. Mas, adota-se a ideia que o título e a tradição devem ser suficientes, ou seja, que devem atender os requisitos da entrega material do objeto ou mediante a manifestação voluntária de partes. Estas, devendo ser capazes e legitimadas.

O Sistema Imobiliário Uruguaio

No Uruguai, há também uma branda combinação entre título e tradição para a transmissão da propriedade. As particularidades e os efeitos dos registros públicos são organicamente tratados pela Ley 16.871, de 28 de setembro de 1997.

O artigo 705 do Código Civil Uruguaio estabelece que os modos de aquisição da propriedade são a ocupação, acessão, tradição, sucessão causa mortis e prescrição. Os títulos, contudo, possuem efeitos meramente pessoais jus ad rem (direito obrigacional) e não ius in re (direito real), necessitando da tradição para se efetuarem. Vale destacar que nos negócios jurídicos uruguaios sujeitos a registro, a eficácia entre as partes se dá no momento da tradição e a oponibilidade erga omnes (aos terceiros) após a prenotação. De forma que caberá ao registro, tão somente este último efeito.

Em relação à perfectibilização dessa tradição, os artigos 764 a 767 do Código Civil Uruguaio descrevem diversas modalidades tanto para bens móveis quanto imóveis. Mas, basicamente uma tradição efetiva se faz quando o adquirente vai até o imóvel por si ou por meio de um representante e toma a posse do bem com o consentimento do alienante.    

A tradição poderá ocorrer de duas maneiras: simbólica (pela entrega das chaves ao adquirente depois que o alienante retirou seus móveis; pela entrega de documentos que representam a coisa; e, pelo alienante mostrar a coisa ao adquirente e lhe facultando a tomada de posse) e ficta (por meio de cláusula em escritura pública).

O Sistema Imobiliário Paraguaio

Finalmente, no Paraguai figura um sistema de título. O registro possui efeitos meramente declarativos, não sendo obrigatório.

Os artigos 716 e 1.968 do Código Civil Paraguaio atentam que, salvo disposição em contrário, os contratos que tenham por objeto a criação, modificação, transferência e extinção de direitos reais ou, de quaisquer outros direitos pertencentes ao alienante sobre coisas presentes e determinadas, produzirão tais efeitos desde o dia em que o consentimento foi legitimamente manifestado. Entretanto, esses efeitos possuem extensão apenas entre as partes. A oposição erga omnes estará sujeita à inscrição no registro paraguaio. 4 

Considerações finais

É fundamental refletir sobre os desdobramentos que diferentes ordenamentos jurídicos perpassam em relação a um mesmo direito material. O Direito Imobiliário percebido no Brasil não está para a mesmo formato como o enxergamos na Argentina, Uruguai e Paraguai.

No entanto, a combinação dessas diferenças pode gerar muitos obstáculos e insegurança jurídica para as partes que queiram se aventurar em negócios imobiliários internacionais, pois provavelmente dependerão do conhecimento dos sistemas jurídicos do local do bem para a aquisição de um imóvel. E essa aquisição poderá ocorrer de diversas formas.

Diferentemente do que acontece em outras regiões, não há na América do Sul uma motivação generalizada ao intento de fazer-se conhecedor das particularidades imobiliárias latino-americanas. Pois, embora existam alguns mecanismos esparsos de integração registral no âmbito europeu, como o Notariado Latino,5 o Cross Border Electronic Conveyancing (COBRECO), a Associação Europeia de Registradores de Imóveis (ELRA) e a European Land Information Service (EULIS), cujos objetivos giram em torno da liberdade do fluxo transfonteiriço de capitais e de acesso fácil de informações sobre propriedade, não há, de maneira geral, normas comunitárias aplicáveis às transações imobiliárias transnacionais na América do Sul.

Contudo, a integração regional é possível e a prática dos negócios imobiliários a nível internacional pode ser facilitada com a implementação de iniciativas pró interação, segurança e autodeterminação informacional entre os sistemas imobiliários sul-americanos, a começar por debates e interconexões que possam se dar no campo intelectual.

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1 CARNELUTTI, Francesco. La figura giuridica del notaro. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, ano IV, p. 922-950, 1950.

2 SIQUEIRA, Marli Aparecida da Silva; SIQUEIRA, Bruno Luiz Weiler. Tabelia~es e oficiais de registro: da evoluc¸a~o histo'rica a` responsabilidade civil e criminal. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496880/RIL148.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 15 ago. 2020.

3 SERRA, Ma'rcio Guerra; SERRA, Monete Hipo'lito. Registro de Imo'veis I: Parte Geral. Sa~o Paulo: Editora Saraiva, 2017.

4 LAGO, Ivan Jacopetti do. Alguns aspectos registrais das vendas imobilia'rias transnacionais no a^mbito do Mercosul. Revista de Direito Imobilia'rio, Sa~o Paulo, v. 82, ano 40, p. 419-446, jan.-jun. 2017.

5 PATRA~O, Afonso Nunes de Figueiredo. A aplicac¸a~o internacionalmente ampliada das regras de Notariado Latino nos nego'cios imobilia'rios. Revista de Direito Imobilia'rio, Sa~o Paulo, v. 82, ano 40, p. 485-551, jan.-jun. 2017.

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*Gabriela Becker Pinto é mestranda em Direito das Relações Internacionais e da Integração na América Latina pela Universidad de La Empresa (UDE/UYU). Especialista em Direito Notarial e Registral pelo Instituto Damásio de Direito (IDD Faculdade IBMEC São Paulo/SP). Bacharela em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF). 

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