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Dano moral em ricochete na justiça do trabalho e o art. 223-B da CLT

Você já ouviu falar sobre dano moral em ricochete na justiça do trabalho?

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Atualizado às 12:28

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Certamente, você já ouviu falar sobre o dano moral, previsto nos art. 186 e 1871 do Código Civil e no art. 5º, V e X2, da Constituição Federal. Porém, o presente artigo abordará uma questão bem distinta, qual seja, o dano moral em ricochete, também conhecido como dano moral reflexo ou indireto, sob a ótica da justiça do trabalho.

Em apertada síntese, dano moral em ricochete é aquele que, tendo-se originado de um ato lesivo ao direito personalíssimo de determinada pessoa (dano direto), não se esgota na ofensa à própria vítima direta, atingindo, de forma indireta, direito personalíssimo de terceiro, em razão de seu vínculo afetivo estreito com aquele diretamente atingido.

Isto significa que o dano moral em ricochete ocorre quando o prejuízo (direto) é sofrido por determinada pessoa - neste caso é o trabalhador -, mas quem acaba sentindo os efeitos (indiretos) deste prejuízo também é a sua família e até mesmo amigos e entes queridos, que sofrem com a lesão aos direitos da personalidade do ofendido por possuírem laços afetivos.

Na justiça do trabalho, é comum os casos em que o trabalhador acaba sofrendo doença grave ou acidente de trabalho, culminando até mesmo em sua morte. Nesta situação o trabalhador - ou seu espólio, em caso de óbito (art. 9433, CC e art. 1104 do CPC) - estará autorizado a ajuizar reclamação trabalhista para pleitear a indenização pelo dano moral direto causado a ele, ao passo que seus entes queridos (avós, pais, irmão, filhos, esposa, amigos, etc.) estará legitimada a ajuizar reclamação trabalhista própria e autônoma para pleitear indenização por dano moral em ricochete (indireto).

Acontece que a Reforma Trabalhista (lei 11.467/17) introduziu o art. 223-B da CLT, com vigência desde 11/11/17, o qual excluiu a hipótese de dano moral em ricochete trabalhista, ao prever que o ofendido - neste caso o trabalhador doente ou acidentado - é o titular exclusivo do direito à indenização, confira o texto legal:

"Art. 223-B.  Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação"

Da leitura do referido dispositivo legal, nota-se que a intenção do legislador eliminar o direito à indenização por dano moral em ricochete, causados aos entes queridos do trabalhador. Porém, como muito bem observado pela melhor doutrina dos ilustres professores Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado5:

"O primeiro macro aspecto de destaque no Título II-A da CLT consiste na tentativa sutil de a Lei n. 13.647/2017 descaracterizar um dos avanços humanísticos e sociais mais relevantes da Constituição de 1988, que é o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem social, econômica e jurídica, com os seus diversos princípios correlatos, capitaneados pelo princípio da dignidade da pessoa humana."

Na mesma direção, aponta o enunciado 18 aprovado durante a 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, confira:

"DANO EXTRAPATRIMONIAL: EXCLUSIVIDADE DE CRITÉRIOS APLICAÇÃO EXCLUSIVA DOS NOVOS DISPOSITIVOS DO TÍTULO II-A DA CLT À REPARAÇÃO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS DECORRENTES DAS RELAÇÕES DE TRABALHO: INCONSTITUCIONALIDADE. A ESFERA MORAL DAS PESSOAS HUMANAS É CONTEÚDO DO VALOR DIGNIDADE HUMANA (ART. 1º, III, DA CF) E, COMO TAL, NÃO PODE SOFRER RESTRIÇÃO À REPARAÇÃO AMPLA E INTEGRAL QUANDO VIOLADA, SENDO DEVER DO ESTADO A RESPECTIVA TUTELA NA OCORRÊNCIA DE ILICITUDES CAUSADORAS DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NAS RELAÇÕES LABORAIS. DEVEM SER APLICADAS TODAS AS NORMAS EXISTENTES NO ORDENAMENTO JURÍDICO QUE POSSAM IMPRIMIR, NO CASO CONCRETO, A MÁXIMA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 5º, V E X, DA CF). A INTERPRETAÇÃO LITERAL DO ART. 223-A DA CLT RESULTARIA EM TRATAMENTO DISCRIMINATÓRIO INJUSTO ÀS PESSOAS INSERIDAS NA RELAÇÃO LABORAL, COM INCONSTITUCIONALIDADE POR OFENSA AOS ARTS. 1º, III; 3º, IV; 5º, CAPUT E INCISOS V E X E 7º, CAPUT, TODAS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL"

Ainda mais especificamente, é o enunciado 20 aprovado durante a 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, veja:

"DANO EXTRAPATRIMONIAL: LIMITES E OUTROS ASPECTOS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. O ARTIGO 223-B DA CLT, INSERIDO PELA LEI 13.467, NÃO EXCLUI A REPARAÇÃO DE DANOS SOFRIDOS POR TERCEIROS (DANOS EM RICOCHETE), BEM COMO A DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS OU MORAIS COLETIVOS, APLICANDO-SE, QUANTO A ESTES, AS DISPOSIÇÕES PREVISTAS NA LEI 7.437/1985 E NO TÍTULO III DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR."

Com efeito, o artigo 223-B da CLT vai de encontro aos princípios constitucionais, pois as pessoas que sofrem com o dano moral em ricochete também são titulares para pleitear o direito próprio à indenização dos prejuízos por elas sofridos. Vale dizer, são prejuízos distintos, sofridos por pessoas diferentes, que merecem as respectivas indenizações, muito embora tenham origem no mesmo fato gerador.

No caso, a indenização por dano moral em ricochete resguarda o direito personalíssimo e autônomo dos entes queridos do trabalhador, cuja natureza do ano é eminentemente civil e, portanto, aplicável as regras de direito civil, ainda que o dano seja decorrente de relação trabalhista, afastando-se a norma do art. 223-B da CLT.

Logo, de acordo com a doutrina francesa do dommage par ricochet, repercutida pela doutrina brasileira e pela jurisprudência do STF, STJ e TST, não há dúvida de que o dano moral, que é direto e personalíssimo, também pode ser admitido em relação a terceiros, de forma reflexa, indireta ou em ricochete. Assim, o dano moral por ricochete ou préjudice d' affection (prejuízo da afeição) se materializa em direito de indenização para os entes queridos e intimamente conectados ao trabalhador, vítima direta do evento danoso e que sofreram, por reflexo, o dano experimentado por esta6.

Na esteira da justiça trabalhista, são bastante frequentes as decisões reconhecendo o dano moral por ricochete aos familiares e amigos que possuem laços afetivos com trabalhadores que sofreram com doença grave e por acidentes que culminarem em sua morte, confira-se os seguintes julgados7.

E, ainda que não seja objeto do presente estudo, é de suma importância se atentar ao prazo prescricional para pleitear o respectivo pedido de indenização na justiça trabalhista, haja vista que podem ter contagens diferentes, a depender de cada situação analisada particularmente8.

Portanto, em que pese as discussões acerca o início do prazo prescricional para pleitear tais indenizações, a depender de caso a caso, atualmente é unânime o entendimento de que é cabível a indenização por dano moral em ricochete na justiça do trabalho, pleiteada pelos familiares, amigos e entes queridos do trabalhador que sofreu doença ocupacional ou acidente de trabalho grave e que até mesmo resultaram em sua morte, como se infere dos julgados acima, devendo-se afastar a aplicação do art. 223-B da CLT, seja por violação à Constituição Federal seja por se tratar de dano com natureza jurídica civil.

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1 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

2 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

3 Art. 943. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança.

4 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º .

5 DELGADO, Mauricio Godinho. DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à lei 13.467/17. São Paulo: LTr, 2017, p. 144

6 RR-11878-07.2017.5.18.0128, 4ª Turma, Relator Ministro Ives Gandra Martins Filho, DEJT 1/3/19).

7 "LEGITIMIDADE ATIVA. DANO MORAL EM RICOCHETE. GENITORA E IRMÃOS DO EMPREGADO FALECIDO. ACIDENTE DE TRABALHO. A genitora e os irmãos do empregado falecido, vítima de acidente de trabalho, são partes legitimas para figurar no polo ativo da ação que tem por fim postular o pagamento de reparação por danos morais reflexos, também denominados "por ricochete". Recurso de revista conhecido e provido  (TST - RR: 11406820135060019, relator: Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 5/6/19, 7ª turma, Data de Publicação: DEJT 14/6/19)"

8 RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO APLICÁVEL. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS, REFLEXOS OU EM RICOCHETE. ACIDENTE DE TRABALHO. MORTE DO EMPREGADO. AÇÃO AJUIZADA PELA GENITORA DO DE CUJUS. NÃO CONHECIMENTO. Esta Corte pacificou entendimento de que a prescrição aplicável à pretensão de compensação por danos morais e materiais é definida de acordo com a data em que ocorreu o acidente de trabalho ou aquela em que o empregado teve ciência inequívoca da lesão: se posterior à publicação da Emenda Constitucional nº 45/2004, aplica-se o prazo previsto no artigo 7º, XXIX, da Constituição Federal; se anterior, a prescrição incidente é a civil. Esta, por sua vez, deve observar a regra de transição prevista no artigo 2.028 do novo Código Civil, podendo ser de vinte anos (artigo 177 do CC/1916), se no início da vigência do novo Código Civil (11/01/2003) transcorreram mais de dez anos da data do evento danoso ou da ciência inequívoca da lesão (mais da metade do prazo prescricional de 20 anos previsto no estatuto civil revogado); ou de três anos, se transcorrido menos da metade daquele prazo. Ocorre que, na presente demanda, a reclamante pleiteia compensação por danos morais em virtude de acidente que vitimou seu filho, à época empregado da reclamada. Trata-se, portanto, do instituto denominado de dano moral indireto, reflexo ou em ricochete, pois a lesão causadora da morte do de cujus, evidentemente, afetou a esfera íntima da reclamante, por ser mãe dele. Nesta hipótese, a egrégia SBDI-1 concluiu que se aplica a prescrição trienal, prevista no artigo 206, § 3º, V, do Código Civil. Assim, decorridos mais de três anos entre a data da rescisão do contrato de trabalho advinda com a morte do empregado - 8/10/08 - e o ajuizamento da presente ação - 31/7/12 - há prescrição trienal a ser pronunciada. Precedentes de Turmas e da SBDI-1. Recurso de revista a que não se conhece.

(TST - RR: 2717820175120058, relator: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 15/8/18, 4ª turma, Data de Publicação: DEJT 17/8/18)

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t*João Teixeira Júnior é advogado, sócio do escritório João Teixeira Júnior Advocacia. Membro da Associação dos Advogados Trabalhistas do Estado de São Paulo - AATSP. Especializando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/SP.

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