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O "Caso Racing Point" e implicações de propriedade intelectual na Fórmula 1

Breves reflexões sobre as regras de propriedade intelectual da Federação Internacional do Automobilismo a partir do "Caso Racing Point"

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Atualizado às 15:33

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No segundo grande prêmio da temporada de 2020 da Fórmula 1, a escuderia Renault fez um protesto formal junto à Federação Internacional de Automobilismo (FIA) alegando que os dutos de freio utilizados pela equipe Racing Point seriam uma cópia do utilizado pelo carro da Mercedes no ano passado e violariam, portanto, as regras de propriedade intelectual da principal categoria do automobilismo mundial. Com isso, no início de agosto, a FIA divulgou que aceitou as alegações da Renault e puniu a Racing Point com a perda de 15 pontos no Mundial de Construtores e aplicou uma multa de 400 mil euros.

O desempenho da Racing Point nesse início de temporada chamou a atenção de toda a comunidade ligada à Fórmula 1. Com design e estrutura inspirados no carro com o qual a Mercedes conquistou os títulos do Mundial de Construtores e de Pilotos na temporada passada, a construtora britânica ganhou o apelido de "Mercedes rosa", gerando polêmicas e insinuações de que o seu carro seria uma cópia daquele desenvolvido pelos alemães no passado.

Ocorre que as polêmicas deixaram de ser comentários na imprensa e conversas no paddock e deram lugar a uma reclamação formal da Renault na FIA, alegando que um determinado componente do carro - no caso, os dutos do freio traseiro - era uma mera cópia daquele usado pela Mercedes em 2019. Daí, originou-se o processo no qual a Racing Point se viu obrigada a comprovar que havia desenvolvido a peça por conta própria, sendo detentora, portanto, da propriedade intelectual dele e, consequentemente, da exclusividade em utilizá-la nas corridas.

Em defesa contra as acusações da Renault, a Racing Point não desmentiu que o carro era realmente inspirado no modelo de 2019 da Mercedes. No entanto, ressalvou que não houve cópia, mas sim um desenvolvimento dentro dos parâmetros estabelecidos pela FIA, sendo que a inspiração não é ilegal dado que o componente foi desenhado e desenvolvido em processo criador próprio da Racing Point, inexistindo violação à propriedade intelectual no caso, tanto que recorreram da sanção aplicada.

Os recursos no processo não ficaram apenas restritos à equipe prejudicada: Ferrari, McLaren, Williams e a própria Renault demonstraram intenção em recorrer também ao órgão dirigente da Fórmula-1 sob o argumento que a penalidade foi branda e requerendo uma punição mais severa à Racing Point, que conta com o mexicano Sergio Perez e o canadense Lance Stroll entre seus pilotos, levantando maiores polêmicas ocorridas para o caso.

A saída encontrada pela entidade máxima do automobilismo mundial para compor tantos interesses e divergências em relação ao caso foi alterar as regras para a temporada 2021. O novo regramento destina-se a evitar "engenharia reversa" para evitar que as construtoras copiem um veículo de sucesso da antiga temporada, com o regulamento passando a prever expressamente quais peças poderão ser reaproveitadas e quais não poderão, o que contribuiu para que todas as construtoras (inclusive a Racing Point) retirassem seus recursos e acatassem a decisão inicialmente proferida pela FIA.

De toda forma, a discussão envolvendo a Racing Point e, até mesmo, sobre o regulamento da Fórmula 1 mostra um embate que vai muito além das ultrapassagens na pista e diz respeito ao sistema de propriedade intelectual na categoria, principalmente no que tange a proteção efetiva das inovações desenvolvidas, o qual parte de pressupostos e desafios diferentes aos visualizados convencionalmente neste ramo do direito.

Não é segredo para ninguém que o trabalho de engenheiros nos bastidores para o desenvolvimento dos carros é fundamental para um bom desempenho nas pistas. Ajustes e tecnologias apresentadas a partir desse empenho podem significar a conquista de segundos preciosos nas pistas capazes de decidir grandes prêmios e campeonatos. No entanto, apesar dessa corrida fora do asfalto para a obtenção de inovações decisivas para a competição, raramente as disputas envolvendo a proteção desse produto e/ou processo de conhecimento capazes de gerar a vantagem competitiva acabam se tornando processos judiciais como a do caso da Racing Point.

Em outros segmentos, é bastante comum que uma criação inovadora que oferece uma superioridade do descobridor com relação aos seus concorrentes, tenha como consequência a obtenção de uma patente para a proteção dessa inovação, justamente porque a lógica geral sobre a patente e sobre o sistema de propriedade intelectual é conferir um direito de exclusividade sobre a exploração comercial de uma criação.

Inclusive, disputas judiciais surgem com a finalidade de assegurar essa exclusividade, ganhando destaque, principalmente, aquelas envolvendo a tecnologia, como, por exemplo, recente processo judicial movido pela Shanghai Zhihen contra a Apple por entenderem que o sistema de assistência de voz presente nos smartphones utilizados pela companhia norte-americana viola a patente obtido pelos chineses de um assistente muito semelhante1.

Surge, então, um questionamento: observado o "Caso Racing Point", não seria mais prático, tanto para as construtoras envolvidas como para a análise da FIA, que a Mercedes patenteasse o duto de freio e garantisse, definitivamente, a exclusividade sobre a utilização do modelo desse componente?

A resposta a esse questionamento é mais complexa do que um "sim ou não", porque está inserido dentro das peculiaridades do sistema de propriedade intelectual presente na Fórmula 1.

Nele, o primeiro ponto a ser observado é até que ponto é interessante para a própria Fórmula 1 e para as construtoras verem a exclusividade ser garantida junto de uma ampla vantagem competitiva pelo inventor. Para a competição, é interessante a existência da maior quantidade possível de carros em condições de disputar o primeiro lugar como um meio de valorização da própria categoria, dado que, em um cenário de equilíbrio entre os participantes, há maior atenção do público e, consequentemente, um maior interesse de investidores nesse mercado diante da imprevisibilidade da competição. É o chamado princípio pro competitione.

Uma hipotética situação de uma construtora obter uma patente e a consequente exclusividade sobre determinado componente e, de modo irrestrito, não permitir que nenhuma outra o utilize, pode provocar um desinteresse nos demais em continuar na disputa, o que geraria um duro golpe na categoria. Além de que, a própria forma como a FIA estrutura seus grupos de trabalhos em torno da Fórmula 1, permite que as equipes que não tenham acesso a esse componente simplesmente se unam para banir a utilização dessa peça. 

Não interessa, portanto, a proteção à propriedade intelectual na Fórmula 1 com o propósito em assegurar a exclusividade da exploração de determinado componente pelos impactos gerados no âmbito esportivo e comercial. A FIA, como entidade reguladora e responsável por dirimir as controvérsias relacionadas às disputas nas pistas, deve ter em mente não proteger os produtos e os processos de conhecimento com a via de fornecer uma exclusividade da exploração da invenção pelo inventor, mas procurar um equilíbrio entre garantias mínimas ao processo inventivo e à própria competição, tornando o regramento e análises de caso dessa seara inseridos nesse segmento bastante particulares.

Outra razão da não utilização dos instrumentos convencionais relativos à propriedade intelectual, como a patente, é que o processo envolvendo a sua obtenção contrasta com o dinamismo do esporte. Apesar da proteção global de patentes haver evoluído substancialmente com o advento do Tratado de Cooperação de Patentes (PCT), observa-se que este fixa um prazo de 18 meses para a publicação do pedido de patente. A publicação é essencial para o depositante do pedido o opor contra terceiros e requerer indenizações ou outras medidas destinadas a assegurar a proteção. Com isso, um invento de um componente no dia de hoje por uma construtora e o imediato depósito do pedido de patente dele não têm o condão de, desde já, ser efetivo na proteção à invenção.

Com todas essas peculiaridades e desafios, a FIA precisa adaptar as regras. É um desafio bastante próprio, que demanda, como bem aponta o caso envolvendo a Racing Point, uma análise casuística. Entre garantir e proteger o processo inventivo, a FIA tem a tarefa de compor os interesses das construtoras e assegurar um produto interessante para aspectos comerciais com a promoção de disputas equilibradas. Nessa lógica, o problema da Racing Point não foi utilizar um duto de freio igual ao desenvolvido pela Mercedes, mas, sim, em ter o utilizado sem empreender qualquer esforço inventivo para agregar o componente.

A corrida por inovação na Fórmula 1 é, e deve ser aberta a todas as construtoras e não ser limitada a quem chega primeiro. No entanto, há limites para tal, não bastando simplesmente aplicar a inovação que se mostrou eficiente, mas trabalhar sobre ela na sua própria realidade.

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1 Disponível clicando aqui.

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t*Daniel Falcão é advogado e Cientista Social. Doutor e mestre em Direito do Estado. Graduado em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).




t*Leonardo Franco Belloti é advogado. Mestrando em Direito Desportivo pela PUC/SP. Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).




t*Camilo Jreige é graduando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).




t*Felipe Ferreira é graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

 

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