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A chance de mais um passo para a boa regulação do uso de aditivos em cigarros no país

A população brasileira está, há oito anos, diante de disputas judiciais provocadas pela indústria do tabaco, que envolvem os interesses comerciais desse setor versus o interesse público/saúde pública.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Atualizado em 18 de setembro de 2020 11:06

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O Sinditabaco Bahia tenta reverter derrota sofrida no STF para, mais uma vez, suscitar a invalidade da norma que regula o uso de aditivos em cigarros no Brasil.

Um recurso para uniformização de jurisprudência sobre este tema (IAC - Incidente de Assunção de Competência) foi proposto pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e será julgado no próximo dia 22 de setembro, na 3ª seção do Tribunal Regional Federal da 1ª região.

A pretensão do sindicato da indústria do tabaco implica na já conhecida tentativa esvaziar poderes legais da autoridade reguladora sanitária brasileira, em total inversão do objetivo constitucional da saúde pública, justo para disseminar o tabagismo entre crianças e jovens. Os aditivos vedados dão, a cigarros, cheiro e gosto de guloseimas.

Há oito anos, a ANVISA concluiu um procedimento administrativo aberto e democrático, acompanhado de consulta pública sobre a regulação do uso de aditivos em produtos de tabaco, o qual contou com a ampla participação da sociedade civil e do setor regulado, e editou a Resolução da Diretoria Colegiada - RDC 14/2012.

A norma (do tipo soft law) dispõe em caráter aberto e não permanente sobre os aditivos que, por hora, não podem ser utilizados em produtos de tabaco (art. 6º), salvo evidência científica em contrário, bem como aqueles permitidos (art. 7º). O resolutivo possibilita às fabricantes o requerimento, a qualquer tempo, para rever o uso dos aditivos proibidos, desde que mediante justificativa técnica plausível (§ 2º, art. 7º).

Referida norma não inviabiliza a produção nem o comércio de cigarros no país. O sindicato incapaz de mostrar evidências técnicas que admitam o uso dos aditivos, apela para a conhecida narrativa do abismo econômico. Sem aditivos, quebrariam. Desde 2012, porém, enquanto poucas tabageiras tenham liminares afastando a vedação, não há registro de nenhuma planta fabril fechada por este motivo.

Ou seja, a proibição da resolução não é genérica ao uso de aditivos e tampouco aos produtos de tabaco. Por muitos anos, os cigarros foram fabricados sem nenhum aditivo. O percentual de aditivos por peso de cigarros só aumentou a partir dos anos 1990 e, atualmente, os cigarros comercializados nos EUA contêm menos de 10% de aditivo por peso.

No Brasil, sob a égide da contestada RDC, aditivos são permitidos, obviamente com restrições. É o caso do uso de açúcar para recompor perdas durante o processo de cura das folhas de tabaco. Mas, alheias à autoridade sanitária brasileira, a maior parte das empresas e suas entidades sindicais judicializaram a resolução sob a retórica de que a agência reguladora não pode regular. Entre dezenas de medidas judiciais, algumas liminares foram deferidas e as maiores fabricantes de cigarros no país seguem sem cumprir a RDC 14/2012.

Por isso é que estão disponíveis no mercado cigarros com sabores de menta, cravo, melancia, dentre outros, que são aditivos usados para mascarar a irritação e o sabor desagradável do tabaco. Aumentam a sua atratividade e palatabilidade sob a química dissimulação, de forma a enganar a torpeza do primeiro trago entre crianças e adolescentes.

Essa estratégia de negócio perversa da indústria do tabaco tem produzido resultados deletérios à saúde pública no Brasil. Pesquisa da Fiocruz/UFRJ/INCA - 2012 com estudantes entre 13 e 15 anos de idade revela que quase 60% preferem cigarro com sabor. Além disso, o comércio de cigarros produz externalidades negativas para o país, que tem prejuízo anual de R$ 56,9 bilhões com o tabagismo (R$ 39,4 bilhões são gastos com despesas médicas e R$ 17,5 bilhões com custos indiretos pela perda de produtividade, por incapacitação ou morte prematura)1.

A regulação do uso de aditivos em produtos de tabaco é medida prevista na Convenção Quadro para o Controle do Tabaco - decreto 5.658/2006, e, portanto, fruto do consenso científico, sintetizado em nota técnica sobre Aditivos em Cigarros, do Instituto Nacional do Câncer - INCA/Ministério da Saúde, disponível na internet. 

A população brasileira está, há oito anos, diante de disputas judiciais provocadas pela indústria do tabaco, que envolvem os interesses comerciais desse setor versus o interesse público/saúde pública (prevenção da iniciação por crianças e adolescentes).

Perante o STF, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) chegou até a questionar o próprio sistema regulatório sanitário do país para invalidar a RDC 14/2012, e garantir os interesses comerciais de fabricantes de cigarros. Perdeu, é fato, mas tem obrigado ministros e ministras da suprema corte do país a se debruçarem sobre o assunto por mais de seis anos.

Em 2018, o plenário do STF julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela CNI - ADI 4.874. Por maioria, manteve válida a autorização da lei para que a ANVISA proíba produtos nocivos à saúde. Pelo empate na improcedência da declaração de inconstitucionalidade da RDC 14/2012, não foi concedido efeito vinculante exclusivamente neste ponto da decisão.

Com isso, seguem em tramitação as ações já existentes na Justiça Federal da 1ª região, e algumas outras foram propostas por empresas de tabaco, todas com o objetivo de invalidar a RDC 14/2012.

O julgamento designado para o dia 22 de setembro deve pôr fim a este debate, adotando-se a moderna ferramenta do IAC, incidente processual de notória eficiência para o sistema de justiça, afinal, concentra julgamento conjunto de demandas que (sem alcance de volume multitudinário) avolumam-se na Corte Regional.

A apelação que capiteneia o caso da apelação eleita no IAC foi interposta contra sentença que julgou procedente a ação do Sinditabaco Bahia, no final de 2013, sob o fundamento de que os artigos 6º e 7º, da RDC 14/2012 seriam ilegais e que a ANVISA não teria autorização legal para a sua edição.

Ocorre que o debate jurídico sobre o entendimento da sentença recorrida já foi superado pelo STF, no julgamento da ADI 4874, como consta de forma resumida no item 8, da ementa da respectiva decisão:

A competência específica da ANVISA para regulamentar os produtos que envolvam risco à saúde (art. 8º, § 1º, X, da lei 9.782/1999) necessariamente inclui a competência para definir, por meio de critérios técnicos e de segurança, os ingredientes que podem e não podem ser usados na fabricação de tais produtos. Daí o suporte legal à RDC 14/2012, no que proíbe a adição, nos produtos fumígenos derivados do tabaco, de compostos ou substâncias destinados a aumentar a sua atratividade.

Este trecho da decisão é vinculante, isto é, deve ser respeitado e observado pelas instâncias ordinárias da Justiça no julgamento de casos análogos, para garantir a autoridade da decisão proferida pela suprema corte. Em tempos de atenção especial à saúde pública, espera-se que o Regional Federal da 1ª região mantenha rígida a elementar competência legal do Agente Sanitário Nacional para permitir a circulação de produtos e serviços no país, retendo-se apenas os excessos comprovadamente nocivos à população.

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1 "Carga de doença atribuível ao uso do tabaco no Brasil e potencial no impacto no aumento de preços por meio de impostos" - INCA, FIOCRUZ, Organização Panamericana de Saúde.

Maio de 2017. Disponível aqui.

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*Adriana Carvalho é diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde.

*Walter José Faiad de Moura é advogado sócio do escritório WMAA Advogados.

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