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A prática da vulgarmente denominada "rachadinha" configura crime?

A "rachadinha", como vulgarmente se faz conhecida, encontra a sua configuração quando o legítimo detentor do poder discricionário de nomear, escolhe determinada pessoa para exercer uma função vinculada ao exercício de um cargo de confiança, dela passando a receber uma parcela ou fração dos seus vencimentos.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Atualizado às 08:17

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Não são poucos os crimes que adornam nossa legislação criminal que se tornam mais conhecidos por suas alcunhas populares do que por sua própria tipificação. Assim ocorre, por exemplo, com as expressões "caixa dois", "suborno", "assalto", "pedofilia", "homofobia", "vigarice", termos populares que correspondem a delitos que possuem "nomen juris", mas que de tão técnicos, acabam se evadindo à preferência popular, que segue nomeando tais delitos por seus apelidos mais conhecidos.

É o que acontece com a tal "rachadinha" que representa uma prática consuetudinária (consuetudo contra lege), sobretudo nas mais diversas esferas do Poder Legislativo, não sendo difícil ouvir dizer de sua ocorrência em Câmaras Municipais, em Assembleias Legislativas, ou mesmo nas mais altas casas legislativas federais.

A "rachadinha", como vulgarmente se faz conhecida, encontra a sua configuração quando o legítimo detentor do poder discricionário de nomear, escolhe determinada pessoa para exercer uma função vinculada ao exercício de um cargo de confiança, dela passando a receber uma parcela ou fração dos seus vencimentos, como se se cuidasse de um preço ou de um encargo, para manter vigentes os efeitos diretos e reflexos do ato de nomeação.

Não há dúvida de que se trata de um comportamento grave, antissocial, atentatório à moralidade administrativa e extremamente reprovável, vez que convola os mais relevantes espaços de defesa da cidadania em verdadeiros balcões de negócio, ao arrepio do dever de probidade que deve nortear a forma de proceder de todos os agentes públicos, e com maior rigor, dos mandatários eleitos diretamente pelo povo.

Contudo, e a despeito de sua inequívoca característica de conduta abjeta e contrária ao interesse público e ao bem comum, não parece haver univocidade quando se trata de reconhecê-la como um crime, ou mesmo como um ilícito típico dentro de nosso ordenamento jurídico.

Verificam-se assim, ao menos, cinco correntes. A primeira delas, está a afirmar que a prática da "rachadinha" se apresenta como uma das modalidades de peculato (art. 312, "caput", CP), mesmo o delito denominado doutrinariamente de "peculato-desvio", na medida em que faz sobressair o caráter de apropriação salarial de assessores, que se descortinam como vítimas, ou sujeitos passivos secundários, uma vez que todas as modalidades de peculato possuem como sujeito passivo principal a própria Administração Pública.

A segunda corrente sustenta que tal conduta se amolda ao crime de concussão, onde o núcleo do tipo do crime previsto no art. 316 do Código Penal aponta para o verbo "exigir", sendo certo que o detentor do poder de nomear culmina por determinar a entrega de parcela do salário de seus colaboradores todos os meses, ou de forma reiterada, daí decorrendo, inclusive, a possibilidade de configuração de crime continuado, nos moldes do disposto no art. 71 do citado diploma legal.

A terceira corrente defende a tese de que a famigerada "rachadinha" encontra subsunção no crime de corrupção passiva, uma vez considerado o fato de que no iter comportamental do agente do crime, não se há falar propriamente em exigência, mas sim em uma forma mais branda de requerimento, conformada ao ato de "solicitar", sendo tal conduta uma das descortinadas e presentes no núcleo do tipo do crime do art. 317 do CP, mesmo aquele que se classifica como infração penal de conduta múltipla ou de conteúdo variado.

A quarta corrente, por sua vez, entende sequer haver crime, conquanto reconheça na conduta da "rachadinha", um gravíssimo atentado à moralidade administrativa, razão pela qual recomenda buscar adequado enquadramento a um dos dispositivos da lei 8.429/92, onde se situam os ilícitos de improbidade administrativa.  

E há ainda a quinta corrente, absolutamente minoritária e por demais libertária, que não vê sequer ilicitude em tal conduta, crendo haver na hipótese em comento, tão somente um mero "acordo entre particulares", autorizado pelos princípios próprios do direito privado, sobretudo os que apontam para a liberdade negocial e para a autonomia da vontade; ainda em consonância com tal posicionamento, o salário do servidor não é público, mas privado, daí decorrendo o direito do funcionário de livremente dispor sobre o seu patrimônio e como bem lhe aprouver.

Segundo o nosso sentir, a prática da tal "rachadinha" se aperfeiçoa ao crime de peculato, na modalidade "peculato-desvio", crime este cujo preceito secundário prevê uma pena que vai de 2 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão, sobretudo quando o parlamentar, dolosamente, se apropria indevidamente dos vencimentos de seus colaboradores ou de seus assessores.

Não se podendo falar em "bis in idem", haja vista a autonomia dos ramos jurídicos postos em confronto (Direito Administrativo e Direito Penal), essa mesma conduta haverá de admitir, em tese, a responsabilização do agente público (e eventualmente até mesmo do não agente que tenha concorrido para o ilícito) igualmente e adicionalmente pelo delito de improbidade administrativa, como tal previsto no art. 9°, inciso I da lei 8.429/921, ato este que deve importar em enriquecimento ilícito. 

Além da pena privativa de liberdade própria do crime de peculato, no caso do ilícito de improbidade administrativa, o parlamentar pode ser sancionado com a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, com a medida de ressarcimento integral do dano, com a perda de sua função pública, com a suspensão de seus direitos políticos de 8 (oito) a 10 (dez) anos, com o pagamento de multa de até 3 (três) vezes o valor do acréscimo patrimonial, com a vedação de contratar com a Administração Pública ou de perceber benefícios ou incentivos creditícios ou fiscais, mesmo que por meio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 (dez) anos.

De toda sorte, processos dessa natureza costumam ser raros, e a condescendência daquele que em parte se enxerga favorecido pela especial circunstância de sua nomeação "ad nutum", dificulta a comprovação do crime, restando assim esparsas condenações2, até mesmo por improbidade administrativa.

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1 Referido dispositivo legal assim dispõe: "Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1º desta Lei, e notadamente: I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público".

2 Segundo a edição de 23/1/19 da "Revista Época", um dos casos em que se observou a edição de decreto condenatório "...foi o do ex-vereador de Fortaleza Leonelzinho Alencar (PROS), que foi acusado de usar a rachadinha até para pagar a pensão alimentícia da ex-mulher. Ele foicondenado a 11 anos de prisão em novembro, mas pode recorrer em liberdade. Segundo o Tribunal de Justiça do Ceará, a 18ª Vara Criminal ainda aguarda as contrarrazões recursais da defesa do ex-vereador para remeter o processo à segunda instância. Leonelzinho (...) é acusado de desviar R$ 20 mil por mês dos salários dos funcionários e usar a rachadinha não só para alimentar um caixa dois de campanhas eleitorais, mas também para comprar carros, imóveis e até para dar uma mesada para os pais. No processo, o ex-vereador afirmou que as acusações foram feitas sem provas, de maneira "injuriosa".

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t*Vander Ferreira de Andrade é advogado Criminalista. Especialista, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Professor universitário e de pós-graduação. Autor de diversas obras jurídicas. Exerce a função de pró-reitor de Administração e Planeamento do Centro Universitário Fundação Santo André.

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