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A deterioração da qualidade do ar e o dano imaterial coletivo: O enfoque da responsabilidade civil com relação às queimadas no Brasil

Muito embora a coivara seja hoje considerada uma prática agrícola obsoleta, muitos agentes, por razões econômicas ou mesmo deliberadamente criminosas, se aproveitam das condições provocadas pela seca para a promoção de queimadas de determinadas áreas.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Atualizado às 08:22

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Com o avanço da estiagem no final do inverno, registra-se, ano a ano, um aumento considerável no número de queimadas em diversas localidades das regiões norte, centro-oeste e sudeste. De acordo com o INPE, em 2019, 318 mil km² foram consumidos pelo fogo no Brasil, um aumento de 86% em relação ao ano de 2018. E, ao que tudo indica, os registros de 2020 devem superar o último balanço.

Se é verdade que alguma parte desses incêndios tem causas naturais, oriundas do aumento sazonal de temperatura e das próprias características de determinados biomas (como o cerrado), também o é que a outra - e considerável - parte tem origem humana. Nesse sentido, muito embora a coivara seja hoje considerada uma prática agrícola obsoleta, muitos agentes, por razões econômicas ou mesmo deliberadamente criminosas, se aproveitam das condições provocadas pela seca para a promoção de queimadas de determinadas áreas.

O primeiro grave desdobramento desse fenômeno é o vilipêndio de áreas naturais de valor inestimável. Não há como se calcular o prejuízo ecológico da degeneração de ecossistemas como o pantaneiro e o amazônico, cuja recomposição pode ser, quando não impossível, bastante inviável. Nesse caso, na esfera da responsabilidade civil, é indiscutível que, em se demonstrando o liame entre a conduta perpetrada e o dano percebido, o agente degradador deve responder integralmente pelo prejuízo ambiental causado, em suas dimensões material e imaterial.

No entanto, há outra consequência nítida desse fenômeno ingrato. Com a explosão do número dos focos de queimada, a qualidade do ar fica severamente prejudicada, causando desde desconfortos à população que vive nas áreas mais afetadas até o risco de agravamento de doenças respiratórias. Trata-se, a bem da verdade, da perda da qualidade de vida da comunidade em geral, ainda que temporária. E é aqui que repousa o ponto central deste artigo: caberia condenação à indenização por dano imaterial ao agente poluidor em razão da fumaça gerada e da piora da qualidade do ar da população das áreas afetadas?

Para tanto, antes de tudo, é preciso entender a dimensão abstrata do dano extrapatrimonal ambiental e seus reflexos na prática. Nesse aspecto, cumpre referir que, sem prejuízo de reparações individuais, eventuais lesões ao meio ambiente ecologicamente equilibrado têm o condão de gerar prejuízos imateriais à toda coletividade, a quem, em última análise, pertence o patrimônio ambiental. Isso explica por que, nesses casos, os prejuízos extrapatrimoniais ambientais estão tão atrelados à ideia de danos coletivos.

José Augusto Delgado esclarece que o meio ambiente também se caracteriza pelas suas dimensões imateriais e incorpóreas, cujo conjunto constitui direito da coletividade, de modo que ela, como unidade, pode sofrer dano moral uma vez percebida "a dor física ou psicológica coletiva, situações que determinam degradação ambiental geradora de mal-estar e ofensa aos sentimentos de cidadania".1 No âmbito jurisprudencial, confirmando tal orientação, o STJ tem posicionamento pacificado quanto à possibilidade de condenação por danos morais coletivos quando constatado prática ilícita que viole valores e interesses de uma coletividade.2

No que concerne às queimadas, parece correto entender que, muito além das lesões aos ecossistemas atingidos, a perda da qualidade do ar nas comunidades afetadas frustra o direito das pessoas que nela residem. E, em determinadas regiões, tamanho é o volume de incêndios ambientais que alguns locais passam a se assemelhar a cenários de filmes de terror, com névoas de fuligem pairando sobre a cidade, dando-lhe um aspecto triste e desolador. É evidente que a alteração da qualidade do ar de determinadas localidades macula a coletividade ali inserida, acarretando a perda do bem estar geral, além do agravamento de problemas de saúde.

Portanto, o agente promotor de queimadas poderia, a priori, mesmo que o incêndio não atinja ecossistemas relevantes, ser responsabilizado pela reparação do dano imaterial originado de sua conduta poluidora. Com efeito, suas ações, em maior ou menor medida, têm o condão de afetar, com considerável repercussão social, a qualidade de vida das pessoas das comunidades próximas aos incêndios. Seguindo essa linha, por exemplo, um indivíduo que promove a queimada de um terreno baldio, ou de uma parte de propriedade rural sua (mesmo que alheia às áreas de preservação permanente ou de notável interesse ambiental), poderia, em épocas de restrição de queimadas, ser responsabilizado por esse ato.

Sobre o tema, o TJ/SP, na ocasião do julgamento do recurso de apelação do processo 0001738-88.2004.8.26.0614, assentou o dever de indenizar de indústria sucroalcooleira, sob o entendimento de que a queimada da palha da cana de açúcar "reclama incidência do princípio da prevenção, pois não há incerteza, mas absoluta convicção de que ela causa mal generalizado e deve ser extirpada como prática" (trecho do voto). E o ponto que merece ser sublinhado na referida decisão é o reconhecimento do ar como bem apto a ser tutelado de forma autônoma - já que, em última análise, os reflexos mais significativos da queima da palha desvelam-se na sua qualidade.3

Uma dificuldade concreta, no entanto, reside no estabelecimento do nexo causal entre cada fato e a poluição geral do ar. Se é claro que, nas épocas de proibição de queimadas, essa atividade é nociva e danosa, a precisão da extensão de cada evento mostra-se uma tarefa um pouco mais complexa. Quanto contribui à degradação da qualidade do ar um sujeito que realiza a "limpeza" de um pequeno terreno urbano, mediante uma queimada controlada? Como saber se esse agente efetivamente contribuiu para a efetiva piora do ar, ou se ele é apenas um "grão de areia" dentre milhares de focos de incêndio? Em determinados casos, é altamente complicado precisar qual a sua parcela de contribuição para a concreção do dano - que é a deterioração concreta e factual da qualidade do ar de determinada localidade.

É evidente que, mesmo com toda a tecnologia de que dispomos, é impossível a aferição da exata contribuição de cada queimada na alteração da qualidade do ar. Especialmente considerando que se está diante de um dano imaterial, a fixação de eventuais indenizações deve, mais do que nunca, observar patamares de razoabilidade e proporcionalidade, não se ignorando as suas facetas pedagógica e dissuasória.

O ar compõe o arcabouço dos bens ambientais tutelados juridicamente e, mesmo com o aumento significativo das queimadas em certas regiões do Brasil com o passar dos anos (e do inexorável redesenho do cenário desolador, com a fumaça repousando sobre as pessoas), ainda é proporcionalmente ínfimo o número de casos no Judiciário envolvendo essas situações concretas. Em outras palavras, a despeito do alto número de casos, pouco se vê a fixação de danos imateriais ambientais decorrentes da degradação do ar provocada pelas queimadas.

Considerando que a responsabilidade civil deve ser vista não mais apenas como meio de reparação de danos, mas como um mecanismo de contenção de comportamentos, já passou da hora de uma resposta institucional incisiva - com a reparação dos danos e, paralelamente, a repreensão ao agente poluidor.

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1 DELGADO, José Augusto. Responsabilidade civil por dano moral ambiental. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva. Brasília, Superior Tribunal de Justiça, v. 19, n. 1, p. 81-153, jan./jun. 2008.

2 Vide REsp 1.586.515/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 29/5/18; REsp 1.517.973/PE, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 1º/2/18; REsp 1.487.046/MT, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 16/5/17; EREsp 1.367.923/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe 15/3/17.

3 Não há dúvidas de que o ar é elemento a ser tutelado dentre os bens que compõem o patrimônio ambiental. Nesse ponto, a experiência europeia mostra aspectos muito interessantes e pioneiros sobre a proteção do ar em matéria legislativa. No âmbito comunitário, em 2008, foi editada a Diretiva 2008/50/CE, relativa à qualidade do ar ambiente e a um ar mais limpo na Europa, contendo o regramento completo sobre o assunto, de maneira a implementar, de fato, uma agenda antipoluente no bloco.

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t*Gabriel Alice Martins Costa Velho é advogado graduado em Direito pela PUC/RS. Pós-graduado em Contratos, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário pela PUC/RS e alumni da Universidad de León (Espanha).

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