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Eleição do XI não pode ser adiada indefinidamente

Neste ano atípico, a democracia está sendo posta à prova no XI de Agosto.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Atualizado às 15:01

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A pandemia causada pelo novo coronavírus tem provocado inúmeras mudanças na convivência social e no funcionamento das instituições. Atividades das mais importantes têm sido realizadas à distância, por meio virtual. Até mesmo a Assembleia Legislativa de São Paulo, a "casa do povo" no Estado, recentemente, foi proibida de realizar sessões presenciais por força de uma decisão judicial. Na Faculdade de Direito da USP, as imposições que o período de isolamento social apresenta provocaram os alunos para um debate acerca do futuro do XI de Agosto, maior e mais importante Centro Acadêmico do Brasil.

A discussão que será decidida em Assembleia no dia 29/9 coloca em contraste a posição de dois grupos. De um lado, liderados pela atual gestão do XI e apoiada por outros coletivos da Faculdade, estão os alunos que defendem o adiamento das eleições e, consequentemente, a prorrogação do atual mandato; de outro, está o grupo político auto organizado - do qual faço parte -  que exerce a gestão da Representação Discente da Faculdade, defensor da manutenção do calendário eleitoral e da realização das votações online.

Com as melhores intenções, o primeiro grupo, favorável ao adiamento, tem ressaltado as perdas inestimáveis, em termos de riqueza de participação e de debate político, que a impossibilidade da realização presencial das eleições provoca. O segundo, por sua vez, tem apontado os danos que um eventual adiamento geraria para as próprias eleições presenciais para a próxima gestão e para a legitimidade do XI em 2021.

Longe de ser uma discussão fácil, o debate coloca em pauta um antigo, mas ainda muito presente, questionamento sobre a democracia. Num contexto em que a USP é ocupada por jovens vindos das periferias e da rede pública de ensino, é indispensável discutir sobre a legitimidade de um pleito que demanda acesso à internet e recursos materiais, como um computador. 

É justamente pela seriedade da discussão que o debate deve ser calcado em evidências e fatos, resistindo sempre à tentação do apelo a truísmos. Embora seja verdade que alguns dos membros do corpo discente apresentem dificuldades de acesso, é irresponsável afirmar que qualquer um desses será excluído do pleito por impossibilidades materiais. A São Francisco, infelizmente, ainda não reflete a situação econômica do Brasil.

Logo no início da pandemia, a Representação Discente (RD), integrada pelo grupo contrário ao adiamento das eleições, realizou pesquisa com os estudantes da Faculdade acerca da dificuldade de acesso às aulas e ao ambiente acadêmico em geral. O resultado apontou para o número de 37 alunos - num universo de mais de 2.000 - que reclamavam de falta de computadores e de conexão adequada a internet.  A fim de solucionar o problema, a RD iniciou o Projeto Luiz Gama de Permanência, por meio do qual arrecadou R$ 66.000,00 com professores, antigos alunos e escritórios. Com o dinheiro, foram adquiridos computadores para todos os alunos que apontavam a falta do equipamento como limitador ao ambiente acadêmico, sendo que 27 deles já foram entregues, e a previsão de conclusão das demais entregas é para a primeira semana de outubro.

O argumento de que a participação em uma eleição online seria profundamente prejudicada também não parece fazer sentido. Faltando apenas alguns dias para a AGE do dia 29/9, o grupo da Faculdade no Facebook se tornou um verdadeiro "pátio online", na qual os dois grupos citados defendem seus argumentos. Ao considerar a métrica de acesso desses posts (ferramenta disponibilizada pelo Facebook), se percebe uma proximidade muito grande entre o engajamento online e o das eleições presenciais. Um post do dia 21/09 alcançou mais de 1700 pessoas, e foi lido por mais de 800. Basta comparar esses números com o quórum das eleições presenciais, que historicamente têm média de 1000 votantes.  

É claro que as eleições online não proporcionam o mesmo ambiente de participação política que as presenciais. Faltam o pé no chão, a mão no microfone, o sorriso na abordagem do eleitor e toda a carga significativa de ver, frente a frente, grupos que se respeitam na diferença e que manifestam livremente os seus projetos de XI de Agosto.

No entanto, pior do que realizar uma eleição online é não realizar eleição alguma. Pior do que eleger uma chapa sem os rituais que já viraram patrimônios históricos da Sanfran é prolongar um mandato - também por meio de deliberação online - em metade de sua duração, e, em virtude da redução do mandato da gestão eleita para  2021, esvaziar de sentido o futuro pleito presencial. Nesse sentido, buscando fortalecer a democracia na Sanfran e a importância das eleições para o XI, é preciso pensar não só nas consequências de se realizar uma eleição online, mas também nas consequências de se adiar o pleito, inclusive para a própria importância da votação presencial. Eu espero que a vacina para a Covid-19 venha o quanto antes, mas não podemos arriscar que uma demora na solução da crise seja barreira para o mais importante rito da vida política do XI de Agosto. A decisão que os estudantes tomarão no dia 29 de setembro não se resumirá a evitar ou não uma eleição online; ela terá impactos no médio prazo muito mais relevantes do que parte do movimento estudantil faz crer, a começar pela outorga indireta de um mandato adicional de, no mínimo, seis meses - o que por si só já constituiria uma grave consequência ao rito eleitoral franciscano.

Além disso, se a deliberação verdadeiramente democrática exige confronto de ideias e profundidade argumentativa, as eleições para o XI, se adiadas, sofrerão uma perda inestimável. Ao fim do ano, a turma 189, que se encontra em seu último período da graduação, deixará a Faculdade e automaticamente perderá o direito de votar para o C.A. Com isso, a Sanfran não contará com mais de 400 dos seus mais experientes eleitores, que acumularam cinco anos de vivência da política franciscana e preservam uma memória institucional fundamental para a franqueza do debate público. Privados do direito de votar e fora do ambiente de convívio mais intenso da Faculdade, os graduados não conseguirão fiscalizar as narrativas e relembrar problemas históricos do XI com a mesma veemência.

A democracia é uma estrutura complexa. Ela não se resume aos atos de votar e ser votado. A legitimidade e o poder que ela confere aos escolhidos por seus pares para representá-los politicamente são proporcionais à paridade de armas dos envolvidos na disputa eleitoral, ao respeito mútuo e à tolerância que eles demonstram nos confrontos de narrativas e propostas. A democracia não tem sua existência dada pelo que dizem as instituições; ela é construída a cada dia pelo reforço do consenso em torno de sua inegociabilidade, pelo constante "concordar em discordar". A democracia deliberativa, termo definido por Jürgen Habermas, pressupõe uma série de postulados teórico-normativos que têm como fundamento a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva, e a substância do debate público é um componente essencial de sua caracterização.

Contudo, a democracia deliberativa não é nada sem o procedimento, e não é nada sem o voto. Ele concretiza a igualdade de cada um dos envolvidos nos processos deliberativos e autoriza os mais votados a exercerem, provisoriamente, o poder que sua comunidade investiu nas instituições. No XI de Agosto, as eleições ocorrem em outubro - sempre em outubro. Com isso, cada turma da graduação pode votar cinco vezes ao longo de sua passagem pelas Arcadas e cada Diretoria eleita tem o direito de representar os estudantes por um ano inteiro, para executar suas propostas e liderar politicamente o corpo estudantil da Faculdade.

Neste ano atípico, a democracia está sendo posta à prova no XI de Agosto. A defesa do adiamento das eleições corresponde à defesa da extensão do mandato dos atuais dirigentes, sendo que a duração dessa extensão é tão certa quanto a data em que será concluída a vacinação em massa contra a Covid-19. Afinal, para que as eleições presenciais ocorram como sempre, nenhum estudante pode ser excluído por não ter o luxo de poder se arriscar pelas Arcadas de máscara para assistir aos debates e discutir no pátio.

Por isso, não é possível defender o adiamento sem considerar os problemas que esse próprio adiamento gera, como se não houvesse risco de aumentar o déficit democrático das eleições. É ponto pacífico que as eleições online não têm a estatura de uma eleição presencial, mas a escolha que será feita na AGE do dia 29 não se resume a isso. Ela não se resume a mudar o formato da eleição. Ela envolve adiar uma eleição. Ela envolve prorrogar um mandato e reduzir outro. Ela envolve excluir uma turma do processo eleitoral. E essa escolha, apesar de suas severas consequências, será feita justamente pela via online, por meio de assembleia geral, com horários reduzidos se comparados à tradicional janela de votação das eleições para o XI de Agosto.

É fato que a democracia não se resume a palavras bonitas. Ela é feita de participação e de voto. Assim, na AGE do dia 29, a Sanfran decidirá se vai praticar a democracia em outubro como sempre - embora com as limitações impostas pela pandemia -, ou se vai abdicar dela até o ano que vem.

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*Gabriel Belém é representante Discente da Congregação da FDUSP.

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