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Concorrência e inovação no mercado de capitais: o sandbox regulatório da CVM

A ideia por trás desta estrutura, que já vinha sendo adotada em outros países, é dispensar, ainda que parcialmente, a adequação regulatória na condução de certas atividades.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Atualizado às 16:10

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Com o intuito de equilibrar os propósitos institucionais de proteção de investidores e desenvolvimento do mercado, atribuídos à Comissão de Valores Mobiliários ("CVM") pela lei 6.385/76, a autarquia aprovou a Instrução CVM 626, de 15 de maio de 2020, a qual trata do ambiente regulatório experimental (também referenciado como sandbox regulatório) e que entrou em vigor em junho deste ano.

Partindo do pressuposto que, inseridos em um ambiente regulatório ordinário, certos modelos de negócio não teriam condições de prosperar em função do custo de se aplicar os comandos impostos pela autoridade, a ideia por trás desta estrutura, que já vinha sendo adotada em outros países, é dispensar, ainda que parcialmente, a adequação regulatória na condução de certas atividades.

Um mercado como o de valores mobiliários pode ser visto como marcado por barreiras à entrada oriundas de duas fontes distintas. A primeira é a regulação e se materializa pelo custo de adequação, tendo a sua existência justificada por motivos de política pública e, no caso, prevenção ao risco sistêmico. Já a segunda fonte advém da pressão concorrencial de agentes já estabelecidos, seja ela "artificial", decorrente de infrações à ordem econômica e, portanto, cuja repressão é de competência do CADE, ou consequência de eficiências, as quais não devem ser combatidas, senão organicamente pelos próprios concorrentes.

O que se busca com o ambiente regulatório experimental é, então, reduzir os obstáculos impostos por esta fonte estatal, de modo que serviços os quais, do contrário, não poderiam ser postos em prática, possam ser ofertados e validados pelos consumidores com base na superação temporária de barreiras à entrada provenientes das eficiências de cada agente.

A importância dada ao componente concorrencial, inclusive, foi explicitamente endereçada nas finalidades do ambiente regulatório experimental da CVM, as quais, além do estímulo à inovação e da colheita de insumos para o redesenho do aparato regulatório, consistem na promoção do "aumento da competição" e da inclusão financeira.

Nesse sentido, almeja-se a entrada de novos agentes para promoção da concorrência, não restringindo os participantes quanto ao porte, experiência ou consolidação no mercado de valores mobiliários. Ainda que limite o número de participantes do sandbox, por motivos de monitoramento, o texto é bastante amplo quanto aos sujeitos que poderiam participar do ambiente regulatório experimental, admitindo, inclusive, estrangeiros (priorizando, em contrapartida, atividades com enfoque no mercado brasileiro).

Os proponentes, estando livres de qualquer inabilitação ou impedimento, devem ser pessoas jurídicas com capacidade técnica e financeira para implementar o modelo de negócio sugerido por elas e para aplicar mecanismos de proteção de dados e prevenção a atividades ilícitas. Eles também terão obrigação (e, em certa medida, a oportunidade) de descrever seu modelo de negócio à CVM, sugerir quais exigências regulatórias devem ser dispensadas e apresentar garantias dos potenciais danos que sua atividade possa gerar.

Além dos componentes que cercam o proponente, para a decisão de autorização será levado em conta o próprio modelo de negócio proposto, o qual, compreendido dentro da competência regulatória da CVM, deve ser inovador. Esta qualidade é um instrumento que possibilita aos concorrentes conquistar espaço com base na eficiência, reduzindo custos, aumentando a oferta e, a depender do caso, a demanda.

O conceito positivado pode ser visto sob duas facetas: uma objetiva, que demanda uma validação preliminar do modelo, o qual não poderá ser meramente conceitual; e outra subjetiva, com que se procurou relacionar a novidade ao mercado a ser implementada.

Nesta faceta, portanto, o modelo de negócios deve ofertar um serviço novo ou aplicar tecnologia inovadora a serviço já existente. Admite-se, também, que o uso inovador de uma tecnologia ou novo arranjo de serviço caia na definição de inovação.

Restringindo um pouco mais o conceito, uma das contribuições fruto da audiência pública realizada pela autarquia previu que ganhos de eficiência, redução de custos ou ampliação do acesso a serviços seriam condições imprescindíveis ao modelo de negócio inovador. Ademais, qualidades como relevância da inovação, magnitude do bem-estar do consumidor gerado e o potencial para inclusão financeira foram colocadas como critérios de preferência na análise das propostas de modelos de negócio inovadores.

A despeito das características delineadas, o conceito permaneceu abrangente, o que demonstra que o texto normativo atribuiu certa discricionariedade para a decisão da CVM quanto à admissão de propostas, em especial no que tange à escolha do modelo de negócio cuja inovação melhor serve aos propósitos almejados. Neste ponto, é importante destacar que o ambiente regulatório experimental pode eventualmente criar distorções que priorizam modelos os quais se provariam ineficientes uma vez implementados ou que relegam propostas que poderiam se mostrar mais eficientes. Logo, vislumbra-se a infeliz possibilidade - claramente indesejada pela autarquia e pela política pública brasileira - de o sandbox aplicado seletivamente aos escolhidos gerar paradoxalmente barreiras à entrada de outros agentes econômicos não contemplados pela CVM em sua seleção.

Nesse sentido, foi bem a autarquia ao criar o Comitê de Sandbox, grupo formado por servidores escolhidos da própria CVM, com responsabilidade específica para cuidar das atividades concernentes ao ambiente regulatório experimental, desde a análise das propostas (preservada a competência decisória do Colegiado) até o monitoramento de sua aplicação.

Recomenda-se, no entanto, que seja dada atenção especial às questões aqui levantadas, considerando-as no momento de seleção dos integrantes do Comitê, garantindo que possuam experiência e conhecimento técnico para endereçá-las, bem como na condução de suas atividades de admissibilidade e monitoramento dos modelos de negócios inovadores, de modo que a promoção da concorrência, enquanto finalidade do ambiente regulatório experimental, seja alcançada.

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*Gustavo Flausino Coelho é sócio do Coelho Vasques Advogados e professor de Direito Empresarial e Direito da Concorrência (IBMEC). Doutor e Mestre em Direito Empresarial (UERJ) e graduado em Direito (UFRJ). Coordenador da pós-graduação em Advocacia Empresarial (CEPED UERJ). Vice-Presidente da Comissão de Direito da Concorrência da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ).

*Thales Castanheira é graduando em Direito (UFRJ) e pesquisador do Grupo de Pesquisa de Direito da Concorrência (GPDC/UERJ).

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