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A inadmissibilidade recursal como causa impeditiva da prescrição

Com a entrada em vigor da lei 13.964/2019, denominada de Pacote Anticrime, o Código Penal passa a prever nova causa impeditiva da prescrição no inciso III do artigo 116.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Atualizado às 12:28

 Imagem: Arte Migalhas.

A lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que recebeu a alcunha de Pacote Anticrime, incorporou ao ordenamento penal e processual penal brasileiro significativas mudanças, tanto pela inserção de novos institutos, a exemplo do juiz das garantias e do acordo de não persecução penal, quanto pelas alterações nos institutos preexistentes.

Nesse diapasão, importante alteração legislativa trazida pelo referido Pacote Anticrime foi a inserção do inciso III no artigo 116 do Código Penal, o qual adicionou novel causa impeditiva da prescrição para além das já existentes.

Inicialmente, imperioso destacar que a prescrição se apresenta como um refreio ao jus puniendi estatal, impondo, dessa forma, uma limitação temporal ao poder-dever de punir do Estado, de sorte que esse deve arcar com os ônus de sua inércia. Não pode o Estado dispor de ilimitado lapso temporal para punir aquele que comete um ato ilícito previsto como crime, pois o tempo é o oxigênio não só do processo, como também da punição. Ou seja, a demora do Estado em processar e impor pena àquele que comete crime desnatura a própria essência da ideia de punir, na medida em que o decorrer do tempo enfraquece a ideia da imposição de pena como retribuição ao mal causado com a prática do crime, bem como no ideário de prevenção à prática de novas infrações1.

A legislação penal brasileira prevê duas espécies de prescrição, a saber: a prescrição da pretensão punitiva e a prescrição da pretensão executória. A primeira se relaciona ao momento anterior ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ou seja, é anterior à formação do título executivo que permite ao Estado impor uma pena. Com a prescrição da pretensão punitiva, o Estado perde seu direito de punir, importando na impossibilidade de iniciar o processo criminal ou de dar continuidade a esse, caso tal já tenha sido iniciado em momento anterior. A segunda, por sua vez, concerne à perda, por parte do Estado, da possibilidade de impor uma sanção já prevista em uma sentença condenatória transitada em julgado.

Existem, todavia, algumas situações previstas pelos artigos 116 e 117 do Código Penal, que possuem o condão de, respectivamente, suspender ou de interromper o curso natural da prescrição.

As causas impeditivas, também chamadas de suspensivas, são aquelas que, com sua ocorrência, suspendem o fluxo do prazo prescricional e, uma vez solucionadas, permitem o retorno da fluência do prazo, computando-se o lapso temporal decorrido anteriormente. Já as causas interruptivas importam na cessação do prazo prescricional decorrido, o qual, a partir da ocorrência da causa interruptiva, volta a fluir do início.

A importância das causas impeditivas e interruptivas da prescrição se dá em razão dessas causarem o alargamento do prazo que o Estado possui para exercer seu jus puniendi. Existem determinadas situações que obstaculizam o Estado de prosseguir na persecução criminal, as quais não ocorrem em razão de sua inércia, de forma que o próprio Estado não pode ser penalizado por tal mora. E, justamente por importarem em um alargamento do poder estatal, as causas impeditivas e interruptivas da prescrição devem sempre serem interpretadas de forma restritiva. Segundo lição do professor e doutrinador Nélson Hungria2, "[...] a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente no caso contrário.".

Nesse diapasão, com a inclusão do inciso III ao artigo 116 do Código Penal, determinado pela lei nº 13.964/19, passou a ser prevista como causa suspensiva da prescrição a pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, quando inadmissíveis.

Faz-se mister delinear que, em que pese o teor da previsão legislativa aparentar simplicidade em uma análise prima facie, sua interpretação deve ser abordada com cautela, uma vez que pode ensejar compreensões até certo ponto equivocadas.

A literalidade do inciso III do artigo 116 do Código Penal traz a previsão da inadmissibilidade recursal como causa suspensiva da prescrição nos casos de embargos de declaração, sem especificar o grau de jurisdição que irá julgar tais embargos, ou de recursos destinados aos Tribunais Superiores, aqui compreendidos o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, em razão de serem esses os Tribunais Superiores que julgam os recursos na seara penal.

Observe-se que o legislador utilizou a inadmissibilidade recursal como critério para a suspensão da prescrição, não trazendo à baila a ideia de deferimento ou indeferimento recursal.

Ao tratar sobre o tema, Guilherme de Souza Nucci3 explicou-o a partir do seguinte exemplo:

[...] prolatado o acórdão, fixando a pena de menor de 21 anos (prazo prescricional conta-se pela metade) em quatro anos de reclusão (prescrição em oito anos, mas computada pela metade, ou seja, quatro anos: art. 109, IV, c.c. art. 115, CP). Ingressa recurso especial, dirigido ao STJ. Esse recurso é definitivamente negado após cinco anos. A prescrição poderia ter acontecido sob a égide da lei anterior (mais de quatro anos se passaram entre a decisão do Tribunal do Estado e do Superior Tribunal de Justiça); porém, com a nova redação ao art. 116, III, a prescrição ficou suspensa desde a interposição do recurso especial até a sua integral finalização; logo, não prescreveu e o agente deverá cumprir a sua pena. (grifo nosso)

Data maxima venia, faz-se necessário cuidado para que não haja uma equivocada interpretação da ratio legis. A admissibilidade recursal ocorre em momento anterior ao julgamento do mérito, de forma tal que não cabe falar em suspensão da prescrição após negação definitiva do recurso. Tampouco é necessário aguardar a integral finalização do recurso interposto perante os Tribunais Superiores para verificar a ocorrência da causa suspensiva prevista pelo inciso III do artigo 116 do Código Penal.

Consoante entendimento passível de ser extraído do supracitado excerto doutrinário, uma vez interposto o recurso especial perante o Superior Tribunal de Justiça, a prescrição ficaria suspensa desde a interposição do recurso até sua integral finalização. Ocorre, contudo, que tal interpretação não pode, sob nenhuma hipótese, ser extraída do texto legal, uma vez que com a mera admissibilidade do recurso especial não há que se falar em causa suspensiva da prescrição, pouco importando quando ocorrerá a integral finalização do recurso.

Nesse ponto, é de irrefutável monta que se realize a necessária distinção conceitual entre o juízo de admissibilidade recursal e o juízo de mérito do recurso. No caso do juízo de admissibilidade, temos uma análise prévia, a qual antecede a análise meritória, possuindo o escopo de verificar a ocorrência dos requisitos objetivos e subjetivos4 de admissibilidade do recurso. Verificando-se a presença de tais requisitos, o recurso será conhecido, permitindo ao órgão revisor se debruçar sobre o mérito. Dessa maneira, Alexandre Câmara5, ao tratar da temática supramencionada dentro da teoria geral dos recursos, afirma que:

O juízo de admissibilidade é preliminar ao juízo de mérito. E que fique claro que se emprega o termo preliminar, aqui, no seu sentido mais preciso. Quer-se dizer, então, que o juízo de admissibilidade é necessariamente prévio ao juízo de mérito e, dependendo do resultado a que se chegue em sua apreciação, não será possível passar-se ao exame do mérito do recurso. Este só poderá ser apreciado se o juízo de admissibilidade tiver sido positivo, isto é, se o recurso for reputado admissível. Quando um recurso é admissível diz-se que ele será conhecido.

Observa-se, portanto, que somente com o não conhecimento dos embargos de declaração ou dos recursos aos Tribunais Superiores é que terá lugar a causa suspensiva prevista no inciso III do artigo 116 do Código Penal.

Ademais, importante destacar ainda que, com exceção dos embargos de declaração que são julgados pelo mesmo órgão que proferiu a decisão embargada, nos demais recursos o juízo de admissibilidade é duplo, feito tanto pelo órgão a quo (aquele que proferiu a decisão alvo do recurso), quanto pelo órgão ad quem (o tribunal que irá julgar o recurso). À análise feita pelo órgão a quo acerca dos requisitos necessários para conhecimento do recurso dá-se o nome de juízo de prelibação.

Cabe anotar que o juízo de prelibação é provisório, não possuindo caráter vinculante, o que permite, portanto, que o órgão ad quem profira nova decisão em sentido contrário, não conhecendo do recurso. Pacelli6 pontua que o juízo de prelibação funciona apenas como um filtro face à pertinência e ao cabimento do recurso, não possuindo caráter de vinculação, visto que a competência para julgamento do recurso é do tribunal de hierarquia superior, motivo pelo qual esse não poderia estar vinculado a qualquer decisão do órgão a quo.

Justamente em razão do duplo juízo de admissibilidade recursal pode surgir determinada situação específica, a qual enseja o surgimento dos seguintes questionamentos: caso o órgão a quo profira um juízo de prelibação positivo e o recurso seja encaminhado ao órgão ad quem, o qual entenda pelo não conhecimento do recurso em razão da ausência de requisitos recursais essenciais, o prazo prescricional deverá ser considerado suspenso desde a interposição do recurso perante o juízo a quo? E nos casos em que a prescrição ocorrer antes mesmo do órgão ad quem realizar o juízo de admissibilidade?

No que concerne ao primeiro questionamento, entendemos que, em razão da determinação contida no inciso III do artigo 116 do Código Penal, caso o órgão ad quem entenda pelo não conhecimento do recurso, não restará outra alternativa a não ser considerar suspenso o prazo prescricional pelo lapso temporal que compreende desde a interposição do recurso até a decisão proferida pelo tribunal denegando o recurso, em razão do caráter provisório do juízo de prelibação proferido pelo órgão a quo.

Por outro lado, quando a prescrição ocorrer antes da análise do juízo de admissibilidade recursal pelo órgão ad quem, não sobrará outra alternativa ao tribunal a não ser o reconhecimento da prescrição, com a consequente decretação da extinção da punibilidade, sobretudo por se tratar de matéria de ordem pública, a qual deve ser conhecida de ofício pelo julgador. Não poderá o órgão ad quem proferir decisão não conhecendo do recurso e considerar suspenso o curso do prazo prescricional, a fim de evitar que se opere a prescrição, uma vez que o juízo de prelibação, mesmo possuindo caráter provisório conforme já mencionado, é uma decisão dotada de validade e eficácia, a qual, por conseguinte, produz seus efeitos no mundo fático.

Assim sendo, caso a prescrição ocorra antes da análise dos requisitos de admissibilidade pelo órgão ad quem, não se poderá aplicar a causa suspensiva ora em comento.

Logo, face às breves considerações trazidas, podemos concluir que a redação do inciso III do artigo 116 do Código Penal é clara quanto ao momento em que se considera suspenso o curso do prazo prescricional, não sendo possível extrair interpretação no sentido de ser necessária a integral finalização do recurso ou dos embargos de declaração. Além disso, é necessária compreensão no sentido de expungir a aplicação da causa suspensiva supracitada nas situações em que a prescrição tenha ocorrido anteriormente ao julgamento da admissibilidade recursal pelo órgão ad quem, mesmo que esse entenda ser caso de não conhecimento do recurso, tendo em vista ser a prescrição matéria de ordem pública.

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1- A legislação brasileira, por intermédio do artigo 59 do Código Penal, adotou a teoria mista ou unificadora da pena, na qual a imposição de pena deve ser suficiente para a reprovação e a prevenção do crime.

2- HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. v. I, t. I, p. 86.

3- NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote Anticrime Comentado: Lei 13.964, de 24.12.2019. 1. ed. p. 18-19.

4- Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (Curso de direito processual penal. 12. ed. rev. e atual. p. 1345-1354), colocam como requisitos objetivos: a previsão legal, a observância das formalidades legais, a tempestividade, a adequação, a inexistência de fatos impeditivos e a motivação. Já como requisitos subjetivos, pontuam os seguintes: o interesse recursal e a legitimidade para recorrer.

5- CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 3. ed. p. 425.

6- PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev., atual. e ampl. p. 413.

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*Gabriel Mattos Maimeri é advogado Criminalista. Especialista em Ciências Criminais. Secretário Geral Adjunto da Comissão da Advocacia Criminal e Política Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Espírito Santo.

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