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Cortes superiores, seus precedentes persuasivos e fundamentação das decisões judiciais

Breve análise sobre a divergente interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça ao artigo 489, § 1º, VI, do código de processo civil.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Atualizado às 09:31

Passados cinco anos desde a promulgação do Código de Processo Civil em vigor, não é mais novidade que uma de suas maiores intenções (mens legislatoris) foi implementar em nossa cultura judiciária o respeito aos precedentes, assim o fazendo com o objetivo de tornar a atividade jurisdicional mais coerente, estável e previsível na integração do direito positivado em nossa legislação, elevando a deferência ao precedente ao patamar de condição essencial à concretização dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da igualdade no processo.

Disposições como as do artigo 926 (dever de uniformização da jurisprudência), 927, IV (dever de se observar o enunciado de súmulas sem efeitos vinculantes do Supremo Tribunal Federal - em matéria constitucional - e do Superior Tribunal de Justiça - em matéria infraconstitucional), as do artigo 1.043 (viabilidade dos embargos de divergência em sede de recurso especial e  de recurso extraordinário) e as do artigo 489, § 1º, VI (dever de fundamentação, sempre que o julgador "deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte"), pareciam indicar que mesmo os precedentes persuasivos, especialmente aqueles oriundos das nossas Cortes Superiores, estariam aptos a exercer inequívoco poder de influência na formação das decisões judiciais.

A expectativa de concretização dessa premissa decorre diretamente do papel atualmente desempenhado pelas Cortes Superiores em nosso sistema, que vai muito além do mero controle de legalidade/constitucionalidade das decisões oriundas das instâncias ordinárias (função repressiva), alcançando, em sua essência, o papel de orientar e integrar a aplicação do direito visando à solução dos casos futuros (função proativa).

Ocorre que, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1698774/RS (processo em segredo de justiça, realizar busca pelo número de registro: 2017/0173928-2), a 3ª Turma do STJ decidiu que juízes e tribunais não estão obrigados a justificarem a não aplicação de precedente persuasivo e/ou súmula sem efeito vinculante invocados pelas partes, o que afirmou por entender que a abrangência do artigo 489, § 1º, VI, do CPC, "deve levar em consideração que o dever de fundamentação analítica do julgador, no que se refere à obrigatoriedade de demonstrar a existência de distinção ou de superação, limita-se às súmulas e aos precedentes de natureza vinculante, mas não às súmulas e aos precedentes apenas persuasivos."

Entretanto, a questão ainda não é pacífica, uma vez que a 2ª Turma daquela mesma Corte decidiu em sentido diametralmente oposto nos autos do AgInt no AREsp 871076/GO, em que o Eminente Relator, Ministro Mauro Campbell Marques, adotou as seguintes razões de decidir:

"(...) a existência de precedentes persuasivos autoriza, na forma do art. 927, IV, do CPC/2015 c/c a Súmula 568/STJ que: 'O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema'. Tal a eficácia mínima dos precedentes persuasivos que vinculam horizontalmente, por seus fundamentos determinantes, os ministros relatores de determinado órgão colegiado à jurisprudência nele formada, atendendo às exigências de uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência, conforme o art. 926, do CPC/2015.

Sendo assim, o recurso somente é viável se houver a possibilidade de distinção em relação ao precedente firmado ou superação do entendimento fixado no precedente (seja vinculante, seja persuasivo) através do enfrentamento de seus fundamentos determinantes (...)".

Ao nosso modesto sentir, parece mais correta a solução dada pela 2ª Turma à essa questão, afinal, deixar de aplicar o artigo 489, § 1º, VI, do CPC nessa hipótese específica (invocação de precedente persuasivo e/ou súmula sem efeito vinculante, mesmo quando oriundos das Cortes Superiores), atenta diretamente contra o dever de unidade, coerência e estabilidade dos pronunciamentos judiciais, especialmente quando considerado o já abordado papel desempenhado por essas Cortes em nosso sistema.

Data venia, embora a rotina forense queira nos induzir a entendimento contrário, não se pode encarar com naturalidade que as instâncias ordinárias, sem qualquer fundamentação, continuem dando à determinada questão jurídica tratamento diverso do que foi dado pelas Cortes Superiores em casos análogos anteriormente julgados, ainda que no bojo de precedente persuasivo, como, por exemplo, seriam aqueles oriundos do julgamento de embargos de divergência, já que, a rigor, esse tipo de precedente não está listado entre os incisos do artigo 927 do CPC.

De igual modo, também não podemos assentir que um juiz ou tribunal deixe de considerar, sem qualquer fundamentação, o enunciado das inúmeras súmulas sem efeitos vinculantes publicadas pelo Supremo Tribunal Federal (em matéria constitucional) e pelo Superior Tribunal de Justiça (em matéria infraconstitucional), afinal, esse entendimento contraria frontalmente a expressa previsão do artigo 927, IV, do CPC.

Com efeito, a importância da construção jurisprudencial dessas Cortes é tamanha que levou o Supremo Tribunal Federal a se pronunciar sobre a chamada comunicabilidade entre as vias difusa e concentrada do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, consignando "que a declaração de constitucionalidade, em sede de recurso extraordinário [ou seja, controle incidental, de efeito inter partes/não vinculante], faz manifestamente improcedentes as ações diretas de inconstitucionalidade que tenham o mesmo objeto" (STF, AR 2340/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 23/09/2016).

Nesse mesmo sentido se pronunciou o Pretório Excelso no julgamento do AgRg na ADIN 4071/DF, ocasião na qual o Eminente Relator, o saudoso Ministro Menezes Direito, afirmou que "a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma cuja constitucionalidade foi expressamente declarada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, ainda que em recurso extraordinário (...) somente pode ser considerada manifestamente improcedente", uma vez que "a estabilidade das decisões da Suprema Corte constitui uma inequívoca exigência da segurança jurídica, não havendo supor, a não ser excepcionalmente, que uma orientação firmada com declaração de constitucionalidade pudesse ser alterada por pouco tempo depois".

Daí porque defendemos que as Cortes Superiores do nosso país precisam assumir e fazer respeitar o relevante papel que desempenham em nosso sistema de justiça, o que afirmamos não como quem quer criticar decisões judiciais por mera desconformidade com seus interesses particulares e/ou políticos. Pelo contrário: a nossa crítica - respeitosa, repita-se - é sistêmica.

Inclusive, Luiz Guilherme Marinoni já nos alertava para isso, muitos anos antes de o atual código de processo civil ser promulgado¹. Vejamos:

"(...) O que realmente deve ter significado é a contradição de o juiz decidir questões iguais de forma diferente ou decidir de forma distinta da do tribunal que lhe é superior. O juiz que contraria a sua própria decisão, sem a devida justificativa, está muito longe do exercício de qualquer liberdade, estando muito mais perto da prática de um ato de insanidade. Enquanto isto, o juiz que contraria a posição do tribunal, ciente de que a este cabe a última palavra, pratica ato que, ao atentar contra a lógica do sistema, significa desprezo ao Poder Judiciário e desconsideração para com os usuários do serviço jurisdicional.

(...) Muitas decisões do juiz de 1º grau de jurisdição e do tribunal deixam de tomar em consideração os próprios precedentes invocados pelos advogados, o que, além de significar ausência de respeito ao tribunal a quem a Constituição atribuiu o dever de definir a interpretação da lei federal, representa, no mínimo, violação do dever constitucional de fundamentação. A circunstância de os juízes e os tribunais não demonstrarem as razões para a não aplicação dos precedentes do Superior Tribunal de Justiça elimina a possibilidade de ser ver neles qualquer efeito."¹

Em verdade, cada uma das mais de 100 milhões de ações em trâmite no judiciário brasileiro precisa ser encarada como uma efetiva oportunidade de integração e estabilização do direito nelas controvertido. Admitir que decisões judiciais deixem de considerar, sem qualquer fundamentação, entendimento já firmado pelas Cortes Superiores sobre determinada matéria, ainda que no bojo de precedentes persuasivos e de súmulas sem efeitos vinculantes, acaba surtindo o efeito de inequívoco estímulo à litigiosidade aventureira e à interposição de recursos fadados à rejeição.

Daí porque urge de necessidade a pacificação dessa questão pelo Superior Tribunal de Justiça, ao menos para que esclareça que os precedentes persuasivos oriundos das Cortes Superiores, bem como suas súmulas sem efeitos vinculantes, publicadas no âmbito de suas competências constitucionais, devem sim ser objeto de manifestação dos julgadores, sempre que estes optem por não os considerar.

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1 MARINONI, Luís Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Disponível em clique aqui; acesso em 8/10/20, às 11:25.

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*Diego da Silva é bacharel em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduado em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Coordenador do Contencioso Cível da Procuradoria Geral do Município de Duque de Caxias/RJ.

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