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Os perigos da Justiça 100% virtual

Tais perguntas ou possibilidades são muito sérias e urgem serem tomadas todas as medidas necessárias contra a concretização dessas possibilidades indesejáveis.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Atualizado às 12:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente o CNJ autorizou aos Tribunais do país a realização de todas as suas atividades de forma 100% remota, virtual ou digital (processo 0007913-62.2020.2.00.0000). Assim enfatizou o presidente do CNJ e do STF, Luiz Fux: "No futuro, os fóruns não necessitarão de espaços físicos, pois todos os serviços serão oferecidos on-line." Porém, os trabalhos do Poder Judiciário dessa forma violam importantes garantias constitucionais do cidadão.

Senão vejamos.

A CF rejeita o poder que se oculta e não tolera as decisões tomadas às escondidas; trata-se do princípio constitucional da publicidade dos atos estatais (administrativos, executivos, legislativos, policiais e judiciais) consagrado como direito e garantia fundamental do Estado Democrático de Direito.

A CF, no artigo 37, reza que "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de [...] publicidade".

E o direito à publicidade das atividades estatais está intrinsicamente ligado ao direito de informação.

A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XIV, expressamente determina que: "é assegurado a todos o acesso à informação" e, no inciso XXXIII, reza que: "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;"

E, no artigo 220, consta que "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição." E, em reforço, no artigo 216, § 2º, determina que "Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem."

E ambas garantias constitucionais (publicidade e informação) estão umbilicalmente ligadas ao dever de transparência. Nesse sentido, a Constituição Federal, no artigo 39, inciso VII, determina que a "estruturação do órgão ou entidade gestora do regime, observados os princípios relacionados com governança, controle interno e transparência;"

Por sua vez, a Lei nº 8.159 de 1991, estabeleceu as diretrizes da política nacional de arquivos públicos e privados, assegurando a todos o direito de acesso pleno a quaisquer documentos públicos. Inobstante isso, houve o Decreto Presidencial nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002, que criou o instituto do sigilo eterno ao permitir a renovação indefinida do prazo máximo de 50 anos para a não divulgação de determinados documentos. Já as Leis nº 11.111, de 5 de maio de 2005, e nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, embora devessem versar sobre a estrutura e disposição interna das informações governamentais públicas ou sigilosas, apenas delegaram essa função a ordenamentos inferiores. Por fim, a Lei Complementar 131, também conhecida como Lei da Transparência, ao acrescentar dispositivos à Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, tornou ainda mais transparentes os atos do Poder Público.

Voltando à publicidade dos atos processuais (judiciais), a Constituição Federal (artigo 93, inciso IX) prescreve que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos [...] sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;" e, em reforço, no artigo 5º, inciso LX, determina que a publicidade dos atos judiciais somente poderão ser restringidos por lei quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem.

Por sua vez, o CPC (lei 13.105/15), no artigo 8º, determina que: "Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência."

Do mesmo modo, no artigo 11, diz que "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade." E, no respectivo parágrafo único, consta que "Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público."

E, em complemento, no artigo 194, preceitua que: "Os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções."

E, no artigo 189, o CPC assim prescreve:

"Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos:

I - em que o exija o interesse público ou social;

II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes;

III - em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade;

IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo."

Deste modo, nos casos onde seja de interesse público ou social a decretação do segredo de justiça será feita para proteger a coletividade. E nas ações judiciais de Direito de Família, em respeito da intimidade e da vida privada, o segredo de justiça é aplicado. Também em respeito à intimidade, dados bancários, fiscais e envolvendo conversas estão submetidos ao segredo de justiça. Por fim, as ações judiciais que versem sobre arbitragem também possuem sigilo processual se tiverem sido processadas em segredo no Tribunal Arbitral.

De modo semelhante, o CPP - Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/1941), no artigo 792, assim estabelece:

"Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados.

§1º. Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.

§2º. As audiências, as sessões e os atos processuais, em caso de necessidade, poderão realizar-se na residência do juiz, ou em outra casa por ele especialmente designada."

Também, no artigo 485 do CPP, consta a previsão da votação do Tribunal do Júri na sala secreta; ou seja, a votação dos jurados é secreta para se assegurar o sigilo das votações. E, no Código Penal, no artigo 234-B consta a previsão de sigilo quando versar sobre crimes contra a dignidade sexual.

Existem outras previsões legais especiais, como por exemplo, o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), que, pelos mesmos motivos, determinam o segredo de Justiça:

"Art. 143. E vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.

Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome."

Deste modo, a publicidade dos atos estatais é restringida pela inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (CF, art. 5º, inciso X) e, especialmente, pela dignidade da pessoa humana (fundamento da República - CF, art. 1º, inciso III); bem como pela prevalência de outro interesse público ou coletivo.

Em síntese, a regra geral é que todos os atos estatais devem ser públicos (terem publicidade, notoriedade, acessibilidade e transparência) e, somente quando a defesa da intimidade, da vida privada ou da dignidade da pessoa humana ou o interesse social o exigirem, através de lei (não por portaria, decreto, resolução, despacho, decisão judicial...) a publicidade poderá ser restringida (limitar a presença, participação, acesso, consulta ou conhecimento) aos membros do Poder Judiciário, às partes envolvidas ou interessadas e aos seus respectivos advogados (ou defensores públicos ou do Ministério Público) ou somente a estes. Desta forma, qualquer pessoa pode ir ao Fórum assistir à realização de uma audiência (ver interrogatórios, oitiva de testemunhas, debates, etc.) ou de qualquer ato processual, ressalvadas as exceções de segredo de justiça. É a fiscalização popular sobre os atos do Poder Judiciário; um verdadeiro e democrático controle popular externo da atividade jurisdicional. Portanto, a publicidade dos atos processuais é importante para o cidadão, na medida em que permite o controle dos atos judiciais por qualquer indivíduo integrante da sociedade porque "Todo o poder emana do povo" (CF, art. 1º, parágrafo único), "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural" (CF, art. 5º, inciso LXXIII) e "Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União" (CF, art. 74, § 2º).

Finalmente o "x" da questão. No mínimo, como será possível saber se realmente o juiz estará trabalhando? Nas instalações físicas é possível a qualquer um verificar isso olhando seu gabinete; mas da forma remota ele poderá estar curtindo um viagem pela Europa ao invés de estar trabalhando. Ou será que colocarão tornozeleiras eletrônicas ou microchips subcutâneos para rastrearem e saberem em tempo real onde os magistrados estarão? Duvido que façam isso!

Considerando que o magistrado ao invés de estar no seu gabinete (sala) no prédio (instalação física) do fórum onde, em regra, qualquer cidadão possui acesso (permissão de entrar e presenciar o que acontece) ou ver quem entra e quem sai; ele vai estar trabalhando na sua residência. Oras, quantas pessoas sabem onde os juízes moram? Quantas pessoas conseguem entrar na residência de um juiz? Advogo há mais de 20 anos e até hoje não sei o endereço residencial de nenhum magistrado e, muito menos, frequentei a casa de algum juiz. Os juízes irão divulgar seus endereços residenciais e autorizar a entrada de qualquer pessoa em suas casas? Aposto que não! E quem garante que o juiz vai estar fazendo isso da residência dele? E se o juiz estiver "trabalhando" enquanto passeia com a família pela Europa ou pela China? E se o magistrado estiver prolatando a sentença da casa de uma das partes no processo ou enquanto recebe algumas visitas com presentes? Quais pessoas estarão na presença do juiz enquanto ele está trabalhando? Quem consegue visualizar e acompanhar tudo o que acontece no ambiente onde o juiz está trabalhando para poder ver ou saber se alguém o está influenciando, seduzindo, intimidando, corrompendo, ameaçando ou subornando? Até mesmo uma câmera com visualização de 360º da sala onde ele estiver não será suficiente porque pode existir no cômodo ao lado pessoas com maletas cheias de dólares ou com armas de fogo apontadas para sua família enquanto aguardam uma decisão favorável.

E como será possível fiscalizar se a testemunha não está recebendo orientações em tempo real ou lendo um texto sobre o que responder ao magistrado durante a oitiva virtual?

Enfim, como infelizmente vivemos em uma sociedade corrupta, onde recentemente ficou notório a todos que algumas pessoas não possuem nenhum escrúpulo ou freio moral para se enriquecerem facilmente, tais perguntas ou possibilidades são muito sérias e urgem serem tomadas todas as medidas necessárias contra a concretização dessas possibilidades indesejáveis.

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*Márcio Adriano Caravina é advogado.

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