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O dependente homoafetivo na concessão do benefício de pensão por morte

A inconstitucionalidade da norma diante da omissão do Estado em não se ater a minoria social.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Atualizado às 13:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O governo comandado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro e sua equipe econômica, representada pelo ministro Paulo Roberto Nunes Guedes, apresentaram um dos mais questionáveis projetos de emenda constitucional da história brasileira, denominada PEC 06/19, no dia 20 de fevereiro de 2019.

Ainda sim, conservou-se os mesmos contornos admitidos de forma cumulativa ao benefício de pensão por morte, como a morte do Segurado; a qualidade de Segurado do de cujus no RGPS; e a qualidade de Dependente.

Não há no ordenamento jurídico previdenciário nenhuma previsão de lei dispondo exclusivamente da união homoafetiva. Não obstante, vem sendo procurado através do uso da analógica e da jurisprudência permitir que os efeitos gerados por meio do benefício de pensão por morte perpassem para o instituto da união estável em relação afetiva do mesmo sexo. Para isso, é necessário preencher os requisitos que adequam a entidade familiar.

Através da portaria MPS 513, de 09 de dezembro de 2010, foi reconhecido e determinado que os dependentes devem ser interpretados de forma a abranger a união estável do mesmo sexo.

A portaria MPS 513/10 foi de imensa repercussão, vez que não havia a obrigatoriedade de comprovar a dependência econômica. Assim, o que caracterizaria como dependente legal seria o mero reconhecimento da união estável com os documentos que demonstravam a convivência duradoura, pública e contínua.

Além disso, foi concretizado no art. 130 e art. 369 da instrução normativa 77, de 21 de janeiro de 2015:

Art. 130. De acordo com a Portaria MPS nº 513, de 9 de dezembro de 2010, publicada no DOU, de 10 de dezembro de 2010, o companheiro ou a companheira do mesmo sexo de segurado inscrito no RGPS integra o rol dos dependentes e, desde que comprovada a união estável, concorre, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I do art. 16 da Lei nº 8.213, de 1991, para óbito ou reclusão ocorridos a partir de 5 de abril de 1991, conforme o disposto no art.145 do mesmo diploma legal, revogado pela MP nº 2.187-13, de 2001.

Art. 369. Conforme Portaria MPS nº 513, de 9 de dezembro de 2010, fica garantido o direito à pensão por morte ao companheiro ou companheira do mesmo sexo, para óbitos ocorridos a partir de 5de abril de 1991, desde que atendidas todas as condições exigidas para o reconhecimento do direito a esse benefício.

Como já delineado, a lei 8.213/91 estipulou o rol de dependentes para a percepção do benefício em caso de morte do segurado, abordando a companheira ou o companheiro, que possuíam presunção absoluta, necessitando comprovar somente a existência de união estável.

Em caso de inexistência de, no mínimo, 3 (três) documentos diferentes, o decreto 3.048/99 abria amparo, judicialmente, para as provas exclusivamente testemunhais complementar a instrução probatória.

Assim, era possível a prova exclusivamente testemunhal na via administrativa, se coerente e precisa, respeitando o princípio do livre convencimento do juiz. Todavia, com o advindo da lei 13.846/19, passou a ser exigido a prova exclusivamente documental, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito.

Todavia, com o advento da MP 871/19 e a consequente lei 13.846/19 foi alterado substancialmente o entendimento, exigindo o início de prova material contemporânea dos fatos para a união estável, com período não superior a 24 (vinte e quatro) meses anteriores à data do óbito, descaracterizando a prova testemunhal, salvo ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito.

Previamente, verifica-se o endurecimento das regras para a concessão do benefício, principalmente quanto as condições voltadas para o dependente homoafetivo submetido a união estável, estabelecendo quais provas serão consideradas e diminuindo o campo comprobatório do requerente através da delimitação do prazo.

A fundamentação traçada é de que a apresentação dos documentos do rol taxativo do art. 135 da instrução normativa 77/15, reproduz os mesmos documentos requisitados para comprovar a dependência econômica referida para os dependentes de 2º e 3º classe, conforme já detalhado no art. 22 § 3º do decreto 3.048/99.

Sendo assim, o legislador tenciona somente a comprovar a dependência econômica e não a união estável existente. Logo, de forma ilegal, a lógica atual do sistema fere a presunção absoluta entabulada anteriormente à primeira classe e traz à tona a falta de segurança econômica familiar.

Deve-se questionar a desigualdade de tratamento entre o cônjuge e o companheiro, vez que ambos gozam, teoricamente, da presunção absoluta e concorrem em igualdade de condições, mas a circunstância exigidas administrativamente e judicialmente para a concessão do benefício de pensão por morte diverge devido a comprovação da dependência econômica.

É válido destacar que o referido rol de documentos que destinasse a comprovar a união estável através da dependência econômica, está arrolado somente na instrução normativa 77/15, editada pela presidência do INSS com o objetivo de estabelecer as rotinas e uniformizar o reconhecimento de direito dos beneficiários, sendo norma infralegal.

Remetendo-se brevemente ao Direito Constitucional, é fundamental respeitar a hierarquia das normas, sendo denominado doutrinariamente como pirâmide de Kelsen.

Inicialmente, no topo da pirâmide, temos a Constituição Federal (CRFB/88), como superior a todas as outras. É expressa a determinação da Constituição Federal (CRFB/88), por meio do art. 226 § 3º, em proteger a União Estável como entidade familiar e equiparar os direitos ao casamento civil. Consequentemente, tem-se as Emendas Constitucionais e os Tratados Internacionais que tratam de Direitos Humanos.

No segundo pilar, estão situadas as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos, as resoluções legislativas, os tratados internacionais em geral e os decretos autônomos. Posiciona-se, assim, a lei 8.213/91, que não abarca em momento algum a exigência de três provas documentais para concessão do benefício de pensão por morte.

Já no terceiro pilar, encontra-se por fim, as normas infralegais. Dessa forma, não há como a instrução normativa 77/15 impor novas obrigações aos segurados e tampouco, sobrepor alguma discriminação entre União Estável e casamento civil, diante da proteção da Constituição Federal (CRFB/88) e da lei 8.213/91.

Com efeito, constata-se a incompatibilidade da norma à união estável homoafetiva. O novo regulamento exige início de prova material contemporânea aos fatos e descaracteriza completamente a prova testemunhal.

Anteriormente, a maior flexibilidade para o dependente homossexual demonstrar sua convivência com o de cujus era extremamente eficiente e justo, visto que diante da repressão da sociedade por décadas, não era habitual a publicidade da relação e era incomum oficializar por escritura pública.

Assim, evidenciar a união estável homoafetiva por meio de diversas provas, incluindo a prova testemunhal, acarretava a proteção do Estado as relações legítimas e, consequentemente, o reflexo dos direitos e deveres. A administração pública e, se necessário, o Poder Judiciário, deveria corroborar a amplitude das provas instituídas no processo para constatar a união estável homoafetiva, sem discriminação ou desigualdade de tratamento.

A dificuldade de produzir provas é reflexo direto do preconceito embutido pela sociedade ao determinar o que é a entidade familiar. Dessa forma, é estabelecido barreiras imensuráveis quanto a restrição da liberdade individual e do livre desenvolvimento da personalidade, fazendo com que o casal homoafetivo não expresse socialmente e abertamente sua relação, descaracterizando, conforme atual regramento, a união estável.

Dentre os documentos anteriormente aceitos estavam, por exemplo, a prova testemunhal do vizinho, da família, de amigos que presenciavam a relação homoafetiva, aclarando o direito ao benefício, diante da prova testemunhal robusta e convincente.

Destarte, corrobora que há tarifação sobre as modalidades de provas da união estável, determinando a prova material superior a todas as outras, não deixando qualquer valoração por critério intrínseco do julgador, cerceando o princípio do livre convencimento do juiz e o princípio da verdade legal.

O art. 16 § 5º da lei 13.846/19 tem o propósito de modificar o entendimento já pacificado nos Tribunais de Justiça. Antes, a orientação jurisprudencial aplicada determinava o princípio de inexistência de hierarquia entre as provas para comprovação de união estável, sem distinção a aplicação da união estável homoafetiva, cabendo ao julgador aplicar as restrições, conforme o Acórdão do Estado da Bahia.¹

Deste modo, em diversos casos concretos a prova testemunhal clarificava ou reforçava pontos pendentes que acarretava a concessão do direito a percepção do benefício na qualidade de companheiro por ausência de prova material. Sendo diferente, como estipulado pela lei 13.846/19, o direito previdenciário não cumpre com sua função de ser um direito social.

Portanto, a competência para determinar e apreciar da prova deveria ser mantida ao julgador, justificando o seu convencimento quanto a veracidade das alegações e indicando discriminadamente quais elementos comprobatórios foram relevantes, garantindo a segurança jurídica do dependente.

Além disso, é determinado tempo hábil não superior a 24 (vinte e quatro) meses, a contar da data do óbito do segurado, para comprovar a união estável.

Ora, atualmente entende-se que a união estável surge de modo livre e espontâneo pela convivência duradoura entre indivíduos com o objetivo de compartilhar a vida em comum, independente do sexo.

Contudo, o legislador ignorou a complexidade da produção de provas de casais homoafetivos diante da discriminação e falta de publicidade.

A publicidade se externa pela notoriedade da sociedade, contudo, os casais homoafetivos vivem à espreita, com enormes dificuldades de assumir sua orientação sexual para os diversos grupos sociais, especialmente a família. A tendência de evitar e até mesmo impedir a convivência é visualizada na maioria das histórias homoafetivas.

Verifica-se nos casos concretos a dificuldade de comprovar, no período ínfimo de 24 (vinte e quatro) meses, a relação pública com o objetivo de constituir família, principalmente pela falta de preparo quanto aos infortúnios da vida. Ainda, é notória e indiscutível a falta de credibilidade do homoafetivo de requerer o benefício, diante do tabu estabelecido pelos antigos costumes, resultando na negativa de direitos aos relacionamentos afetivos.

Apesar de haver a evolução mínima da sociedade ao reconhecimento público das relações homoafetivas, o preconceito ainda persiste. Diferentemente da facilidade de casais heterossexuais comprovarem a união estável, uma vez convivem publicamente como marido e mulher, acompanha-se a duração por todo o âmbito familiar e é mais nítido a constituição de família.

Isto posto e discriminado a problemática da inserção de um novo parágrafo às regras do benefício de pensão por morte e os entraves para os dependentes submetidos a união estável comprovar a dependência econômica, principalmente, aos homossexuais, resta claro o dever do reconhecimento judicial as entrelinhas da legislação e os reflexos condicionados a ela, independentemente de qualquer discriminação.

A análise do art. 16 § 5º da lei 13.846/19 à luz dos princípios constitucionais

A evolução histórica de aceitação social e de reconhecimento jurídico das relações homoafetivas foram recentes. É de extrema importância os pequenos passos dados contra a discriminação e o preconceito, principalmente, no âmbito jurídico.

O que se busca, efetivamente, é a não omissão do Estado diante das mais claras relações de afeto, validando os atos através da transposição da letra da lei a todos, sem interferir diretamente na escolha da orientação sexual e nem suprimindo direitos como consequências de condições subjetivas de cada indivíduo. Não obstante, a forma como constitui-se a entidade familiar não deve ser respaldada aos indivíduos que integram, e sim, ao afeto e a finalidade ali encontrada.

A Constituição Federal (CRFB/88), em seu art. 1º, inciso III, assegura o princípio da dignidade da pessoa humana que constitui a base da comunidade familiar, proporcionando o livre desenvolvimento da personalidade. Todavia, insta questionar até onde o livre desenvolvimento da personalidade pode gerar efeitos jurídicos previdenciários de extrema importância na vida do cidadão.

A discriminação e rejeição social é notória devido ao livre desenvolvimento da personalidade, reproduzindo principalmente quando tratamos de benefício requerido administrativamente, ainda mais quando se depara com visões enraizadas de que família é formada somente pela união de homem e mulher.

A possibilidade de o legislador amparar o homoafetivo no preenchimento dos requisitos, foi desconsiderada através da lei 13.846/19, vez que suprimiu a prova testemunhal.

Respaldando as análises administrativas do INSS nas espécies de gêneros introduzidas na sociedade, é válido concretizar o princípio da igualdade, em que todas as pessoas merecem igual tratamento, respeito e consideração. Sendo assim, merece destaque a forma como é desconsiderado a presunção absoluta da 1º classe ao casal submetido a união estável.

O ideal seria discorrer somente à algum documento que constata-se, de forma clara e concisa, a existência de um vínculo afetivo, duradouro, público e contínuo, como se casados fossem, independente do sexo. Por outro lado, poderia determinar que todas as classes gozassem de presunção relativa, cerceando maiores injustiças e o possível enriquecimento sem causa do interessado, esquivando-se de fraudes.

Ainda, é evidente a falta de estabilidade das relações jurídicas homoafetivas, resultando na incerteza jurídica, uma vez que tal união não carece de regramento jurídico específico, resultando em aplicação analógica em casa caso concreto. É extremamente necessário proteger a entidade familiar em todos os seus aspectos e evoluir historicamente com a realidade vivenciada.

De acordo com a Maria Berenice Dias (2010, p.7):

Não se pode falar em homossexualidade sem pensar em afeto. Enquanto a lei não acompanha a evolução social, a mudança de mentalidade, ninguém tem o direito de fechar os olhos, assumindo postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade. Os aplicadores do Direito não podem ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais e religiosas. É necessário mudar valores, abrir espaços para novas discussões, revolver princípios, dogmas e preconceitos.

Não há como mensurar todas as consequências da vivência dos casais homoafetivos no âmbito jurídico, mas é possível demonstrar no âmbito previdenciário, a dificuldade em conquistar direitos que para outros, é tão simples e livre de discriminação. É de suma importância a proteção especial do Estado e efetiva aplicação das normas a realidade.

Por fim, deve-se ter a autenticidade de pôr em prática a Constituição Federal (CRFB/88) e os referidos princípios constitucionais, para ser possível visualizar a equiparação dos homoafetivos no âmbito previdenciário.

Conclusão

Ato contínuo aos requisitos apresentados, é de suma importância refletir a omissão do Estado as classes marginalizadas, principalmente, quando se refere ao amparo social por parte da Previdência Social, que poderá acarretar sérios riscos aos dependentes do segurado falecido, violando diretamente os princípios constitucionais.

Após longas batalhas, merece reconhecimento os pequenos avanços ao desenvolvimento do conceito de entidade familiar e os direitos admitidos (sempre existentes) do companheiro homoafetivo. Ainda, recapitular a devida obediência a pirâmide de Kelsen, norteando as aplicações e interpretações da lei através da premissa maior, qual seja, a Constituição Federal (CRFB/88).

Ainda, é visível a relevância da prova de dependência econômica para a concessão do benefício de pensão por morte, especialmente, quando aplicáveis aos dependentes de 1º classe, como a união estável de casais homoafetivos, mesmo que disponham (teoricamente) da presunção absoluta.

É imprescindível cessar com a discriminação jurídica aos homoafetivos e equilibrar os pontos que merecem maiores considerações. Não há necessidade de comprovar o vínculo econômico, há necessidade de comprovar o vínculo afetivo existente entre o possível dependente e o segurado falecido. A insegurança jurídica permanece contínua, mesmo com a proteção constitucional a entidade familiar.

A descaracterização da prova testemunhal, particularmente aos homoafetivos, é inibir os meios de produção de prova e cercear o princípio do livre convencimento do juiz. É de extrema eficácia permanecer com o uso de todos os meios de provas admitidos na legislação, seja por documentos comprobatórios ou por prova testemunhal, ocasionando na abertura e oportunidade ao dependente convencer e provar sua necessidade.

A notória situação de vulnerabilidade dos homoafetivos ocasiona a repressão ao livre desenvolvimento da personalidade, impedindo-os de expressar livremente suas relações afetivas publicamente. Como consequência, gera enormes entraves na produção de provas em determinado período de tempo.

Destarte, é inadiável a elaboração de projetos de leis que garantam, exclusivamente, aos homoafetivos, a proteção da afetividade familiar e a proteção para fins de direito previdenciário, incluindo-os em parâmetros idênticos ao do heterossexual, sem provocar injustiças quanto a aplicação descontextualizada da lei.

É necessário contemplar todas as condições e circunstâncias que levam o dependente do segurado falecido a produzir ou não as provas solicitadas, não sendo válido restringi-las. Portanto, a inconstitucionalidade do art. 16 § 5º da lei 8.213/91, faz jus a reforma, viabilizando a todos, sem exceção, o livre direito a concessão do benefício de pensão por morte, respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade e o princípio da segurança jurídica.

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 *Julia Montalvão Andrade é graduanda em Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC. Assistente Jurídica na área previdenciária no escritório de advocacia CFA.

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