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O desmonte da Ancine: O problema não é somente ideológico, mas sempre foi regulatório

Percebe-se que a agência continua realizando uma regulação inchada com vistas ao retrovisor ao invés de olhar à frente.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Atualizado às 12:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Trata-se de um artigo no qual são esposados os três exemplos normativos tanto na etapa de aplicação das leis quanto na sua interpretação que demonstram o excesso praticado ante o abuso do poder regulamentar por parte da agência reguladora. O primeiro caso trata da CONDECINE REMESSA e os projetos fantasmas, o segundo da CONDECINE TÍTULO e a criação de um fato gerador tributário por via infra legal e, por fim, a odiosa retroatividade da nova regra de prestação de contas. Nesse sentido são apresentados os efeitos negativos de evasão fiscal e danos ao mercado em razão das práticas realizadas.

Introdução

Em uma das citações mais conhecidas de Martin Niemöller1 há uma descrição clara de como um comportamento passivo dos atores envolvidos em uma situação pode permitir, aos poucos, a perda total do controle da situação. E é exatamente o que ocorre no audiovisual brasileiro. Veja-se o poema de Niemöller:

Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista. 

Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata. 

Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista. 

Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu. 

Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.

Nesse diapasão, ao longo do texto serão citados três exemplos claros de como as Instruções Normativas da agência foram capazes de distorcer o conteúdo das leis a ponto de criar ilegalidades, inconstitucionalidades, grande insegurança jurídica e dar ensejo a diversas ações judiciais assoberbando o poder judiciário com questões que deveriam estar sendo devidamente reguladas pela ANCINE.

Condecine remessa e os projetos fantasmas (juridicamente inexistentes) do art. 39, x

Inicialmente, com a criação da CONDECINE REMESSA, foi sendo consolidada no âmbito da ANCINE uma "jurisprudência" que permitia "realocar" fora do prazo valores aportados em projetos audiovisuais que não haviam sido previamente aprovados (algumas vezes até inexistentes - não protocoladas) na agência nos ditames do mecanismo de incentivo fiscal constante no inciso X do art. 39 da MP 2.228-1/01.

A partir do texto legal, extrai-se que o legislador criou uma verdadeira hipótese de isenção fiscal condicionada para a CONDECINE REMESSA que funciona da seguinte maneira: com fulcro nos artigos 32, parágrafo único, e 33, §2º da MP 2.228-1/012, as programadoras estrangeiras são obrigadas a recolher 11% do valor da remessa ao exterior dos lucros decorrentes da exploração de obra cinematográfica, a título de CONDECINE - Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. No entanto, como forma de incentivar o cinema nacional, a mesma Medida Provisória, no seu art. 39, X, faculta a essas programadoras investirem 3% "em projetos de produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de longa, média e curta metragens de produção independente, de co-produção de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de produção independente, de telefilmes, minisséries, documentais, ficcionais, animações e de programas de televisão de caráter educativo e cultural, brasileiros de produção independente, aprovados pela ANCINE".

Assim, foi sendo construída uma jurisprudência baseada em uma IN (infralegal) 46/2005, que permitia, de modo ilegal, postergar o prazo decadencial da lei de 270 dias previsto no § 3º do art. 39 da MP 2.228-1/2001. Isso tudo ao arrepio do art. 111, inciso II do CTN que preconiza uma interpretação restritiva dos mecanismos de isenção fiscal. Sendo certo que o § 3º do art. 39 da MP 2.228-1/01 dispunha claramente que a verba que não fosse devidamente utilizada no prazo de 270 dias, deveria ser destinada ao Fundo Setorial do Audiovisual - FSA. O que claramente não era feito, pois os prazos ficavam flutuando em uma espécie de looping que beneficiava determinados agentes do mercado.

Esse estratagema gerava ao contribuinte uma economia tributária irregular de aproximadamente 73% do valor do tributo. Além disso, garantia uma divisão de até 49% dos direitos patrimoniais (equity) deste projeto que se tornaria mais tarde uma obra brasileira independente. Por outro lado, essa operação acarretou um enorme prejuízo a todo o mercado audiovisual que não recebia a verba indiretamente a qual deveria constituir o patrimônio do FSA para fins de publicação e divisão democrática em novos editais, sem olvidar a criação de um enorme rombo oriundo de evasão fiscal e uma burla ao mecanismo da desvinculação de receitas da união - DRU.

No caso do vídeo por demanda ocorreu fato bem similar, como se verá a seguir.

Condecine título e a criação de fato gerador tributário para o vod por instrução normativa

A leitura do dispositivo legal que trata da CONDECINE TÍTULO demanda de um pouco mais de atenção ao leitor apressado, pois o mesmo não se esgota somente no texto do art. 32 da MP 2.228-1/01.

Assim, quando o art. 33 da MP 2.228-1/01 trata dos segmentos de mercado os quais a CONDECINE TÍTULO será devida, acaba descrevendo não somente o elemento quantitativo tributário, mas também se referindo ao próprio fato gerador do tributo (hipótese de incidência). Portanto, caso haja a ocorrência de qualquer um dos verbos descritos nos incisos do art. 32 da MP 2.228-1/01 em situações em que os mesmos não estejam inseridos em quaisquer dos segmentos de mercado descritos no art. 33 da MP 2.228-1/01, não incidirá o tributo3.

Por isso, entende-se aqui que a CONDECINE TÍTULO é eivada de fato gerador complexo, justamente pela necessidade de realizar um cotejo entre os arts. 32 e 33 da MP 2.228-1/01 para aferição da efetiva incidência do tributo, amoldando a hipótese de incidência ao caso concreto mediante a verificação do segmento de mercado em que ocorreu o fato imponível tributário.

Portanto, quando a Instrução Normativa da ANCINE - por exemplo, no caso da IN 95/2011 -, a ANCINE "cria" equivocadamente um segmento de mercado de "vídeo por demanda" para ser supostamente enquadrado na alínea "e" do inciso I do art. 33 da MP 2.228-1/2001 que trata de "outros mercados", termina fabricando artificialmente e, por vias transversas, uma nova hipótese de incidência tributária que não figurava originalmente na lei. Ou seja, a agência "fabrica" um fato gerador abstrato por instrumento infralegal violando o disposto no art. 149, parágrafo 4º da Constituição Federal, bem como o art. 150, inciso I.

Segundo QUEIROZ4, a norma de produção normativa é aquela cujo antecedente descreve uma específica situação de fato (de ocorrência possível), que se caracteriza por apresentar os requisitos necessários para que outra norma passe a pertencer (a ter validade - criação ou modificação) ou deixe de pertencer (revogação) ao sistema jurídico, e cujo consequente apresenta uma estrutura relacional, composta por variáveis, que simboliza a norma jurídica a ser criada, modificada ou revogada. Sendo certo que em relação à norma produzida, a norma de produção normativa detém hierarquia superior.

Nesse sentido, quando a norma produzida (ou dispositivo) não atende os requisitos essenciais, quais sejam: sujeito competente, declaração prescritiva e procedimento. Não se cria, modifica ou se extingue outra norma jurídica.

Ante o exposto, fica mais aparente a incongruência dos atos normativos infralegais da ANCINE com o disposto no art. 149, § 4º e art. 150, I da CF. O que denota evidente inconstitucionalidade na hipótese.

Isso tudo sem falar nos efeitos danosos ao mercado de se instituir um tributo que não observa o princípio da capacidade contributiva em um ambiente potencialmente infinito como o do vídeo por demanda, o que destrói novos modelos de negócios como o long tail e cria barreiras de entrada indesejadas5.

odiosa retroatividade das prestações de contas de mais de quinze anos atrás

Publicada em 25 de setembro de 2019 no Diário Oficial da União, a IN 150 da ANCINE fixou novos procedimentos para apresentação e análise de prestações de contas, e revogou as INs 124 e 125.

Assim, com o fito de atender a uma recomendação do Tribunal de Contas da União - TCU, uma das novidades da IN 150 foi o término das análises por amostragem e a extinção da metodologia "Ancine+Simples", criticada pelo Tribunal em relatório de auditoria. Portanto, a IN 150 determina que serão analisadas as prestações de contas de todos os projetos audiovisuais, tanto da lei do Audiovisual quanto do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA, com a verificação dos documentos comprobatórios das despesas realizadas.

Até aí, está perfeito o entendimento que já vinha sido preparado ao longo dos anos de 2018 e 2019 pelas áreas técnicas competentes. Até porque o trabalho circunscrito na elaboração de uma nova instrução normativa demanda tempo. E é fruto das tratativas com o TCU que fez exigências com relação à agência no tocante à prestação de contas.

Ocorre, entretanto, que uma regra publicada em 2019 não deve produzir efeitos para trás com o fito de atingir projetos que foram entregues há mais de quinze anos atrás.

A esse respeito, o artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é claro ao dispor que "a revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas".

Na mesma toada, há a previsão contida no art. 146 do CTN (no âmbito tributário) e ao art. 2º, parágrafo único, XIII da lei 9.784/99, que veda a aplicação retroativa de nova interpretação administrativa. Ainda no mesmo sentido, o artigo 14 do CPC.

Frise-se, que a Administração Pública está sujeita aos prazos prescricionais descritos no art. 1º da lei 9.873/99, que estabelece o prazo de prescrição para o exercício da ação punitiva pela Administração Pública Federal. Além do prazo de três anos referente à prescrição intercorrente.

Portanto, não é descomedido afirmar que ao construir uma norma em determinado contexto com fundamento em uma regulação específica é completamente diferente de realizar a tarefa interpretativa com base em novas premissas regulamentares. É óbvio que a aplicação concreta, em respeito ao princípio da segurança jurídica, deve se projetar para o futuro e não retroagir ao momento da edição da norma interpretada. Justamente por isso que se aplica o brocardo Tempus regit actum.

No RE 636.886, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese nº 899, em repercussão geral, aduzindo que "é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas". Segundo o relator, Alexandre de Moraes, "a regra de prescritibilidade no Direito brasileiro é exigência dos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, o qual, em seu sentido material, deve garantir efetiva e real proteção contra o exercício do arbítrio, com a imposição de restrições substanciais ao poder do Estado em relação à liberdade e à propriedade individuais, entre as quais a impossibilidade de permanência infinita do poder persecutório do Estado".

Portanto, trata-se de mais uma medida infundada da ANCINE que pode acarretar em inúmeros processos judiciais, estressando o mercado e aumentando a insegurança jurídica.

Conclusão

Ante o exposto, diante da quantidade de extrapolações do poder normativo perpetrados pela ANCINE, a famigerada "pirâmide normativa hierárquica" de Kelsen, cuja terminologia e ilustração foram cunhadas posteriormente por Adolf Merckel parece estar representada com a base invertida. De modo que as Instruções Normativas da ANCINE estariam indevidamente acima da Constituição Federal ao invés de constarem abaixo das leis.

O que acarreta uma insegurança jurídica para o mercado enorme, enfraquecendo o setor e, por conseguinte, o órgão regulador. E isso se reflete no atraso para a regulação do VOD no Brasil e na possibilidade de implementação de melhorias futuras para o setor, bem como para a produção brasileira independente.

Diante disso, percebe-se que a agência continua realizando uma regulação inchada com vistas ao retrovisor ao invés de olhar à frente. Não é à toa que no templo do deus Apolo em Delfos está talhada a frase "Méden Ágan", ou seja, "Nada em excesso".

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1- Bentley, James. Martin Niemöller: 1892-1984. NY: Macmillan Free Press, 1984.

2- Art. 32, parágrafo único.  A CONDECINE também incidirá sobre o pagamento, o crédito, o emprego, a remessa ou a entrega, aos produtores, distribuidores ou intermediários no exterior, de importâncias relativas a rendimento decorrente da exploração de obras cinematográficas e videofonográficas ou por sua aquisição ou importação, a preço fixo.
Art. 33, § 2º. Na hipótese do parágrafo único do art. 32, a CONDECINE será determinada mediante a aplicação de alíquota de onze por cento sobre as importâncias ali referidas.

3- Nesse mesmo sentido: MARANHÃO JUNIOR. Magno de Aguiar. A cobrança de Condecine Título no VoD pode quebrar o mercado de vídeo por demanda no Brasil. Revista Jusbrasil. Disponível em: . Acesso em: 20 de setembro de 2019.

4- QUEIROZ. Luís César Souza de. Sujeição Passiva Tributária. GZ Editora. 3ª edição. Rio de Janeiro. 2017. Pág. 68.

5- MARANHÃO JUNIOR. Magno de Aguiar. Op. Cit.

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*Magno de Aguiar Maranhão Junior é professor de instituições de Direito Público e Privado da FTESM. Especialista em Regulação da Agência Nacional do Cinema - ANCINE, mestrando em Finanças, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ.

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