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Quo Vadis?

Episódios recentes no Judiciário expõem a constatação simples: bacharéis em Direito, além de terem estudado pouco na faculdade, não possuem bons modos.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Atualizado às 21:10

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Episódios recentes no Judiciário expõem a constatação simples: bacharéis em Direito, além de terem estudado pouco na faculdade, não possuem bons modos. Nestas últimas semanas, o que vimos se denomina grosseria, para dizer o mínimo. Algumas pessoas acreditam que ser formal e gentil seria desnecessário, em especial quanto ascendem nos cargos públicos.

Para o infortúnio da Justiça, pode-se fazer lista de desembargadores neste país que não sabem se comportar com a dignidade própria do cargo: falam alto, de maneira ríspida, com vocabulário impróprio, numa manifestação recorrente de autoridade - desculpem-me, autoridade em decadência, exatamente, em razão do não saberem agir como deveriam. 

O povo respeita magistrados que se conduzem de modo recatado e agem com parcimônia. Admiram-se juízes que se manifestam de forma ponderada, equidistante. Estes não precisam levantar a voz. A autoridade sobressai com simples olhar nas audiências e julgamentos, afinal, podem exercer o poder que a lei lhes confere.

Lamento dizer, mas, escolhida a carreira, exige-se postura adequada. O mesmo vale para promotores de Justiça, Defensores Públicos, delegados de Polícia e advogados. Vou me dedicar aos últimos, dada a vergonha de alguns da profissão, passados quase trinta anos de intensa atividade na advocacia.

De plano, vamos pôr fim ao ridículo. Essa mania de se fingir de bem sucedido para se dizer bom advogado não tem o menor sentido lógico, ou de realidade. Alguns profissionais até podem formar patrimônio na advocacia, porém, devem ser comedidos, em especial, os criminalistas. Imagine o médico oncologista que se vangloria com a riqueza, para se raciocinar na linha do absurdo. Pergunte-se, então: pode se exibir aos outros quem vivencia casos onde há prisão de indivíduos? Aquele que enxerga as mazelas do processo criminal?  Quem vê injustiças num país de alto encarceramento e de discurso punitivista?

Na verdade, bom advogado cuida dos clientes, estuda os casos, preocupa-se com o processo judicial e dá seu máximo para chegar ao melhor resultado nas Cortes. E, vamos ser honestos, advogados que digladiam em causas complexas encaram muitas derrotas. A má compreensão da Justiça Criminal quanto aos direitos individuais fere tanto o réu injustiçado como o respectivo defensor, o qual não aceita a Constituição e as leis serem postas de lado. Não há alegrias, existe perseverança para se empurrar a máquina judiciária à decisão mais justa.

Ora, quem trabalha com a tragédia, a morte, a emoção, a violência, a desconsideração à privacidade, o dano à reputação, o prejuízo gerado pela fraude, os interesses públicos desprezados, não pode sair por aí a se gabar da suposta fortuna, nem publicizar hábitos ou hobbies sofisticados. Até pode aproveitar a vida, como melhor lhe aprouver, mas sempre, sempre com discrição.

Nas audiências, o advogado jamais se apresenta arrogante. Melhor falar com jeito cortês mesmo quando questiona a testemunha mentirosa, discorda do promotor público arbitrário, ou interroga o acusado no exercício da assistência da acusação. O sistema adversarial, adotado pela legislação processual penal consoante a tradição norte-americana, exige advogado bem preparado, não prepotente. Em suma, esqueça os filmes e as séries de televisão, estude o método e se prepare para o ato judicial.   

 Ao observar esses fatos que ocorreram neste ano, lembro da lição de Luís António Verney, iluminista português, que no século XVIII já notava as deficiências da formação jurídica e a afetação desmedida dos bacharéis. Inacreditável, no mundo contemporâneo, continuarmos a sofrer com esses desvios de conduta, graças a pessoas que não entenderam a missão do judiciário, do ministério público, nem conseguiram refletir no íntimo o que a advocacia significa para quem padece com o injusto, com o ilegal, com a pretensão não acolhida, ou insatisfeita.  

Enfim, caso venha a encontrar alguém com tais más características, repita dentro si as frases de Álvaro de Campos: "Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?" (Poema em linha reta).

(*artigo dedicado ao Desembargador Julio César Viseu Júnior, uma das pessoas mais cordiais e educadas que conheci na magistratura)

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t*Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo é advogado. Mestre e doutor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-doutor no Ius Gentium Conimbrigae (Universidade de Coimbra). Sócio do escritório Moraes Pitombo Advogados.

 

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