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A aplicabilidade da Lei de Propriedade Industrial em invenções geradas por inteligência artificial

O ponto central está na possibilidade de não se identificar a participação humana no ato inventivo, ou melhor, de se aferir o grau de intervenção humana na invenção e em como proteger as invenções que tenham supostamente sido criadas sem qualquer intervenção humana.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Atualizado às 08:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A reflexão sobre a Inteligência Artificial no âmbito da Propriedade Industrial ganhou especial relevância com o conhecido caso Dabus, um sistema artificialmente inteligente, criado por Stephen Thaler. Sobre esse sistema, algumas características tornaram o caso controverso. A primeira e mais alarmante está no fato de que Dabus supostamente desenvolveu duas invenções sem qualquer intervenção humana, e a segunda, que de certa forma justificaria a constatação da primeira, é que Dabus não foi desenvolvida para solucionar qualquer tarefa específica, mas para desenvolver ideias incomuns, o que seu criador alegou se dar "graças à maneira como informações de vários domínios do conhecimento são misturados em suas redes neurais". A partir dos pontos elencados, surgiu a polêmica sobre a possibilidade de patentear invenções geradas por Sistemas de Inteligência Artificial, isso porque Thaler e pesquisadores da Universidade de Surrey requereram perante os Escritórios de Patentes internacionais duas patentes de invenções criadas por Dabus apontando Thaler como requerente e titular das patentes e o Dabus como inventor. Os escritórios de patentes da União Europeia (IEP) e do Reino Unido (UKIPO)  já negaram os pedidos1, entendendo que apenas pessoa física pode ser identificada como inventora. Pois bem.

Claramente a questão não merece especial atenção no caso de sistemas de inteligência artificial que auxiliam inventores humanos. Isso porque a Lei de Propriedade Industrial (9.279 de 1996) já resolveu a situação, sendo possível que patentes contenham reivindicações independentes de softwares e sistemas que façam parte das invenções, ou seja, invenções assistidas por computadores. Portanto, o ponto central está na possibilidade de não se identificar a participação humana no ato inventivo, ou melhor, de se aferir o grau de intervenção humana na invenção e em como proteger as invenções que tenham supostamente sido criadas sem qualquer intervenção humana e cumpram com os requisitos de patenteabilidade.

Cabe inicialmente compreender de modo geral como funciona um sistema de Inteligência Artificial. Estamos falando de um software complexo, a parte lógica da máquina. O sistema de IA, diferente do software comum, é formado por um conjunto de recursos, cada qual equipado com técnicas e métodos de processamento de dados, através de fórmulas matemáticas, o que é chamado de algoritmo. É a regra lógica que determina a forma como o sistema deve se "comportar". Quando um dado novo é recebido por sistema de inteligência artificial "simples", a depender da programação, o dado será submetido a uma condição (regra lógica) exata (pergunta: qual é a cor do céu?; resposta: azul) ou sensível (variações de perguntas que chegam à mesma resposta). Em ambos os casos citados o sistema foi construído para resolver problemas específicos, utilizando-se da combinação de algoritmos com os dados de que o sistema dispunha e, para isso, utilizou de recursos básicos, como a linguística e a lógica matemática. Agora, existem os casos, como o de Dabus, nos quais o sistema é "treinado" para alcançar resultados inesperados. Para que isso aconteça, é necessário que o sistema de inteligência artificial esteja "equipado" com recursos mais sofisticados, a depender da complexidade do que se pretende alcançar, como o machine learning e o deep learning. Em termos simplistas, machine learning é um recurso acoplado ao Sistema de Inteligência Artificial, que faz a extração de dados, criando hipóteses a partir dos padrões encontrados nos dados, fazendo testes repetidos e encontrando novos e melhores resultados, sendo considerado, por conta dessa característica, uma forma aprendizado da máquina. Já o deep learning, é um desdobramento do machine learning, composto pelo que costuma ser chamado de rede neural artificial, por se assemelhar ao comportamento cerebral humano. O que a rede neural faz, basicamente, é configurar parâmetros básicos sobre os dados e treinar o computador para "aprender sozinho" através do reconhecimento de padrões em várias camadas de processamento. Veja, estamos falando de uma capacidade do sistema de perceber o que o usuário do sistema pretende falar, sua intenção, e a partir disso chegar a conclusões distintas das que estavam programadas.

Por mais semelhante à inteligência humana, me parece evidente que a rede neural, forma mais sofisticada da inteligência artificial, está limitada ao seu alcance de dados e regras lógicas embutidas. Sabemos que o sistema pode ser programado para buscar dados públicos, o que ampliaria sua "capacidade intelectual", mas e os dados e símbolos que estão "armazenados" na intimidade das mentes humanas? As máquinas teriam de alguma forma que ser constantemente alimentadas com novos dados para que pudessem desenvolver o "raciocínio". Isso significa que, para adquirir formas "cada vez mais humanas", homens variados precisariam fornecer os dados privados para a máquina.

Umas das teorias mais difundidas na modernidade sobre a inteligência humana, e que se assemelha aos recursos embutidos no sistema de inteligência artificial, é a do psicólogo Howard Gardner, que defende as "inteligências múltiplas" do ser humano. Para Gardner, não seria possível falar em uma inteligência única para explicar o processo intelectual dos seres humanos, mas em um conjunto de inteligências. Esse complexo é constituído pelas inteligências lógico-matemática, linguística, musical, espacial, corporal cenestésica, intrapessoal, interpessoal, naturalista e existencial. Gardner defende não ser possível quantificar a inteligência humana, sendo apenas passível afirmar que certas pessoas possuem uma ou outra inteligência mais desenvolvida que outras. A questão que me chama atenção dentro deste enfoque é a ideia de que cada inteligência humana se desenvolve em um processo, processo este que está relacionado à forma como cada pessoa interpreta e internaliza situações vividas em seu meio (cultural, familiar, espacial, etc). Por sua vez, existe um intercâmbio de informações entre essas inteligências, gerando modelos mentais variados. Veja, é um processo porque está em constante mudança. Nesse contexto, poderíamos de certa forma aferir que um sistema de inteligência artificial pode apresentar certas inteligências de forma mais rápida, eficiente ou funcional do que os seres humanos, principalmente se considerarmos a capacidade de memorizar e comparar dados, encontrar padrões, fazer milhares de testes repetidos de hipóteses e utilizar conclusões para tomar decisões. No entanto, em minha opinião, a principal distinção entre o intelecto do homem e o sistema de inteligência artificial é a criatividade. Para Ghiselin (1952), criatividade "é o processo de mudança, de desenvolvimento, de evolução na organização da vida subjetiva". Segundo Flieger (1978), é quando "manipulamos símbolos ou objetos externos para produzir um evento incomum para nós ou para nosso meio". Portanto, a peculiaridade está na capacidade de interpretar e gerar símbolos a partir de características da personalidade do homem, que é resultante de um modelo mental singular.

Ao entender que Dabus (o sistema de inteligência artificial) tinha gerado invenções novas sem qualquer intervenção humana, Thaler definiu o desenvolvimento das ideias incomuns como a "parte mental do ato inventivo". Estaria ele se referindo à parte lógica do raciocínio humano? Não existe lógica na criatividade, porque seu processo é resultado da personalidade humana.

O que poderia tornar a "selfie do macaco" um ato inventivo? Será que a criatividade do Naruto estaria envolvida na escolha dos pontos a serem fotografados? Ou ele apenas apertou um botão?

É neste aspecto, a meu ver, que mora a intervenção humana em qualquer invenção que se diga ter sido criada por um sistema de inteligência artificial. Como vimos, o sistema só pode "criar" dentro dos limites de dados e algoritmos que lhe foram imputados. Quem faz a escolha de quais dados utilizar na construção do sistema é o homem que o "alimenta". Independentemente do resultado gerado pela máquina, aquele que cria e faz a manutenção do sistema está fazendo uma seleção, influenciada por sua criatividade singular.

Interpretando desta forma, nos resta pensar que, se existe a influência de um homem na programação, mas a máquina gera resultados em certo grau independentes, como poderiam esses resultados, quando inovadores, serem protegidos pela Propriedade Intelectual?

No caso de Dabus, como vimos, Thaler foi indicado como titular da patente, enquanto Dabus (o sistema) ganhou qualidade de inventor. A este respeito, vale investigar como lidam as diferentes legislações com essa concepção.

A Lei de Patentes do Reino Unido (Patents Act 1977) exige que a identidade dos inventores individuais seja divulgada e usa no §7º (3) o termo "inventor real", in terms: " In this Act "inventor" in relation to an invention means the actual deviser of the invention and "joint inventor" shall be construed accordingly".

A Convenção Europeia de Patentes exige que o requerimento de patente indique o nome, sobrenome e endereço do inventor (Art. 81, Regra 19(1) do European Patent Convention).

A legislação dos EUA - United States Code, 35- Patents, §100 (f) - define que: "The term "inventor" means the individual or, if a joint invention, the individuals collectively who invente dor Discovery the subject matter of the invention".

Já a legislação brasileira, no Art. 6º, § 4º, da Lei de Propriedade Industrial (9.279/96), regula que o inventor seja nomeado e qualificado, podendo requerer a não divulgação de sua nomeação. O nome novamente é citado no Art. 39. O Art. 12 fala no "consentimento do inventor" (II) e na "declaração do inventor" (parágrafo único). A declaração novamente é citada no § 5º do Art. 16 e o consentimento no Art. 42. Nome, consentimento e declaração são qualidades exclusivamente humanas.

Parece evidente, da forma como as legislações se posicionam, que a qualidade de inventor está atrelada à pessoa humana. Por outro lado, nenhuma legislação permite ou proíbe explicitamente que sistema de Inteligência Artificial seja inventor.

O que seriam, então, de fato, os direitos conferidos ao inventor pela Lei de Propriedade Industrial brasileira (9.279/96)?

Os direitos sucessórios, de cessão, autorização, transferência,  licença e patrimoniais estão relacionados sempre à pessoa do titular da patente, que pode ser uma pessoa física ou jurídica (com exceção das relações de emprego). Portanto, qual seria o impasse legal em conferir a um  sistema de inteligência artificial a qualidade de inventor?

A situação é excepcional quando os Direitos de Propriedade Industrial estão relacionados aos Contratos de Trabalho. Nesse caso vale citar os dizeres da Juíza Caroline Somesom Tauk2:

"A previsão legal de que o inventor seja nomeado e qualificado lhe confere um direito extrapatrimonial e visa preservar o autor da invenção, que nem sempre é o mesmo que o titular da patente. Por sua vez, o titular adquire o direito de pedir a patente por ser, por exemplo, o empregador, a quem cabem os direitos patrimoniais. Segundo os professores Denis Borges Barbosa e Pedro Marcos Nunes Barbosa, "a paternidade/maternidade (o interesse de ser reconhecido como autor do invento) é direito personalíssimo" - BARBOSA, Pedro Marcos Nunes; BARBOSA, Denis Borges. O Código da propriedade industrial conforme os tribunais. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2017, p. 49-50 - , o que leva à conclusão, a princípio, de que o direito deve pertencer a uma pessoa."

Dessa forma, em regra, o art. 6º da LPI confere ao autor da invenção o direito de requerer a patente e ter os direitos advindos de sua concessão, salvo os casos em que houver um Contrato de Trabalho envolvido na pesquisa, caso em que deverão ser observadas as disposições dos artigos 88 e 89 da LPI.

Não cabe, portanto, se fossemos falar em um Sistemas de Inteligência Artificial como inventor, falar em Contrato de Trabalho entre titular e inventor. Isso porque, o inventor, enquanto máquina, não está na qualidade de ser empregado. No entanto, poderia haver Contrato de Trabalho que envolvesse os direitos patrimoniais decorrentes da titularidade da Patente, por exemplo, um programador contratado por uma empresa privada para desenvolver um Sistema dotado de IA, caso no qual o a titularidade se resolve pelo artigo 88, salvo se houver disposição contratual que atribua participação econômica do programador em possíveis futuras invenções geradas por esse Sistema de IA. Nesse cenário, vale uma ressalva ao fato de que esse tipo se inovação (que envolve sistemas de inteligência artificial) vem sendo feita cada vez mais em colaboração, contando com diversos participantes. Nesse sentido, vejo se aplicarem perfeitamente os acordos privados. A propriedade, nesse contexto pertencente ao titular da patente, poderia ser acordada entre programadores, usuários de sistemas de Inteligência Artificial, Investidores e Empresas, na esfera privada. No mesmo sentido, devem se resolver as responsabilidades.

Veja. Está em questão o sopesamento de dois princípios constitucionais: a livre concorrência e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Conceder a exclusividade de exploração de um invento a uma pessoa física ou jurídica é uma exceção ao direito de livre concorrência que tem como finalidade possibilitar que o investimento financeiro feito pelo titular da patente quando da pesquisa e desenvolvimento da invenção, possa retornar por meio do privilégio conferido durante a validade da patente. Como medida de equilíbrio dos direitos envolvidos, obriga-se que a invenção seja integralmente levada a público, o que possibilita que os concorrentes possam utilizar do relatório descritivo do invento para buscar melhorias ou desenvolver novas invenções, distintas do Estado da Técnica. A publicação é, portanto, mais uma forma de prover o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Portanto, não fornecer a possibilidade de proteção para os inventos gerados por sistemas de inteligência artificial seria não torná-los públicos e isso sim poderia ser um impasse ao desenvolvimento do país e claro, deixar a tecnologia sofisticada nas mãos de grandes empresas, gerando um desequilíbrio concorrencial.

Cabe, portanto, analisar a necessidade de adaptar a legislação vigente para que seja possível conferir ao sistema de inteligência artificial a qualidade de inventor, se for o caso.

Concluindo, um ser humano poderia criar diversos algoritmos, gerar um sistema complexo de redes neurais, dotado de recursos sofisticados e ainda mais rápidos e eficientes que o ser humano. Mas, não existe até o momento qualquer indício de que o sistema possa ir além das possibilidades que lhe foram imputadas (acesso a dados e algoritmos). Portanto, arrisco dizer que a invenção jamais será totalmente gerada pela inteligência artificial. Ainda, repriso a questão da criatividade, característica a meu ver inerente à personalidade, à capacidade que o homem tem de expressar na coisa a sua persona, a escolha entre um elemento ou outro que é feita com base em um olhar de mundo pessoal. A transferência da personalidade para a invenção é a parcela criativa do ato inventivo.

A solução, portanto, seria que a lei condicionasse a qualidade de inventor da máquina à titularidade e depósito feito por uma pessoa humana. A última é, portanto, a quem estão relacionados os Direitos sucessórios, de cessão, autorização, transferência, licença, patrimoniais e de consentimento. A titularidade, por sua vez, poderá ser acordada na esfera privada. O Dr. Pedro Marcos Nunes Barbosa sugere que a titularidade seja conferida àquele que propicie o resultado econômico mais efetivo3. O titular sim precisa de incentivo por meio da exclusividade para que siga investindo em pesquisas. Agora, impedir que inventos que cumprem com os requisitos de patenteabilidade não sejam protegidos por terem como inventor um sistema de inteligência artificial, isso sim seria um impasse ao desenvolvimento tecnológico e econômico do país, ao passo que, apontar uma pessoa como inventora que não o seja, contraria o Direito.

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1 EP 18 275 163. (Clique aqui)  e EP 18 275 174 (Clique aqui)

2 Tauk, Caroline, A Era Das Máquinas Criativas: A Proteção Patentária De Invenções Geradas Por Sistemas De Inteligência Artificial (The Era of Creative Machines: Patent Protection for Inventions Generated by Artificial Intelligence Systems) (March 14, 2020). Available at SSRN: Clique aqui

3 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes; BARBOSA, Denis Borges. Op.cit. p.995

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 *Giovanna Silveira Franco é colaboradora do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.

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