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O fim do ano civil e o confisco das contribuições previdenciárias

A ignorância deste cenário pode acarretar, por exemplo, na perda da qualidade de segurado(a) do trabalhador que ficará socialmente desprotegido, juntamente com quem o remunera.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Atualizado em 26 de novembro de 2020 10:35

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Dos desafiadores temas nascidos da reforma da previdência, através da EC 103/19, a contribuição previdenciária dos empregados, empregados domésticos e - especialmente, pela instabilidade de suas remunerações - os trabalhadores intermitentes e avulsos, é dos que causa maior inquietude. É que antes da sua promulgação, ainda que o somatório de remunerações auferidas no período de 1 (um) mês não superasse o piso salarial destas categorias, surtiam-se os efeitos previdenciários quistos.

Agora, o parágrafo 14º do artigo 195, da CF/88, exclui este cômputo para fins de tempo de contribuição sob a seguinte redação: "O segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições."

Dispõe, ainda, a emenda, que "os ajustes de complementação ou agrupamento de contribuições previstos nos incisos I, II e III do caput somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil."

Note-se que a disposição da lei maior apenas prevê que o período de recolhimento inferior ao piso salarial não será contabilizado para efeito de tempo de contribuição, nada mencionando a respeito da carência e da qualidade de segurado que o antidemocrático decreto 10.410/20 e portaria 450/20 cuidaram de incluir, extrapolando, e muito, o seu limite interpretativo.

Daí que a ignorância deste cenário pode acarretar, por exemplo, na perda da qualidade de segurado(a) do trabalhador que ficará socialmente desprotegido, juntamente com quem o remunera.

No sistema de transportes marítimos, por exemplo, a ausência de cobertura social adequada, em especial no cenário atual, conduz ao legitimo interesse dos órgãos Gestores de Mão de Obra (OGMO), operadores portuários e demais envolvidos em abordar o conteúdo com a urgência que o debate requer, eis que  os acertos devem ser realizados dentro do mesmo ano civil, ou seja, ainda em 2020.

A inação tornará inservível o recolhimento inferior ao salário base operado pelo OGMO, que nada mais é o que a utilização de tributo com efeito de confisco (combatido pela Carta Política de 1988, em seu artigo 150, Inciso IV), já que o recolhimento sobre a remuneração é obrigatório, no entanto, não será considerado para nenhuma finalidade.

Simultaneamente, sabe-se que o sistema previdenciário é norteado princípio da solidariedade que, em linhas gerais, pode ser definido como o dever coletivo da sociedade financiar a seguridade social, porém, a compulsoriedade de recolhimento de contribuição social sobre remuneração NÃO percebida pelo trabalhador, fere, entrementes, o princípio da capacidade contributiva, da equidade da participação do custeio e distorce a  finalidade social do sistema de seguro social.

Paradoxalmente, o princípio da solidariedade pode também ser utilizado em favor dos segurados uma vez que não se trata apenas de um dever fundamental contributivo, com viés puramente economicista que transforma a experiência previdenciária em descompasso com o projeto de Direito Social estruturado da Constituição da república (GNATA, 2014, p. 88).

Em outra ocasião, já se posicionou o excelso STF: "a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial." (RE 593.068, rel. min. Roberto Barroso, DJU 10/10/18).

Por sua vez, o STJ: "não se afigura razoável que o Segurado verta contribuições que podem ser simplesmente descartadas pela Autarquia Previdenciária." (REsp 1.554.596/SC, rel. min. Napoleão Nunes Mai Filho, DJU 11/12/19).

Entrementes, o cenário jurisprudencial sobre a matéria ainda é hipotético, posto que os debates ganharão força a partir do ano de 2021, em que a Autarquia Previdenciária, ignorando a disposição constitucional, indeferirá benefícios das mais diversas ordens face a ausência de realização de agrupamentos e complementos pelos desinformados e hipossuficientes  segurados no ano de 2020.

Ao que parece, a redução do risco do desabrigo previdenciário é, fundamentalmente,  a execução de programas de educação previdenciária em favor dos trabalhadores que possuem remuneração variáveis e proporcionais,  de modo à combater  a maximização da contribuição em detrimento do trabalho que, indiscutivelmente, instiga a informalidade dos menos favorecidos, numa política previdenciária cada vez mais excludente em que o interesse arrecadatório extrapola o limite do poder de tributar.

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Clique aqui

GNATA, Noa Piatã Bassfeld. Solidaridade Social Previdenciária - Interpretação Constitucional e Eficácia Concreta. São Paulo: LTR, 2014.

SERAU Junior, Marco Aurélio. 4ª Edição. Seguridade Social e Direitos Fundamentais, Curitiba: Juruá, 2020.

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 *Marília Lira de Farias é advogada previdenciária, sócia no escritório Farias e Coelho Advogados.

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