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Entre a esperança e os riscos: a recuperação judicial como alternativa para os clubes de futebol brasileiros

Ainda que a recuperação judicial seja vista como salvação, o seu insucesso pode significar uma verdadeira "pá de cal" na vida dos clubes em dificuldades financeiras.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Atualizado às 13:19

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Após uma tentativa de captação de recursos malsucedida para a constituição de uma sociedade anônima, o Botafogo de Futebol e Regatas planeja um pedido de recuperação judicial como uma alternativa à reestruturação econômico-financeira do clube1. No entanto, o que pode, em um primeiro momento, animar o torcedor botafoguense por tomar este passo como um meio capaz de permitir a revitalização do clube, aponta, em realidade, sérios riscos jurídicos e econômicos.

A recuperação judicial como uma alternativa para os clubes brasileiros em face de suas delicadas situações financeiras é frequentemente ventilada nos bastidores. Vivendo momento difícil nesse aspecto, dirigentes do Cruzeiro Esporte Clube já expuseram que a propositura de uma ação de recuperação judicial poderá ser um caminho eficiente no projeto de revitalização do time2.

Além do mais, entre os projetos que se destinam a regulamentar a figura do "clube-empresa" no Brasil, o PL 5.082-A/16, aquele que está em estágio mais avançado por já ter sido aprovado pela Câmara dos Deputados e que aguarda a análise pelo Senado, traz, como sua principal bandeira, a possibilidade de que aqueles clubes que se converterem em sociedades empresárias passem a, imediatamente, ter legitimidade ativa para ingressar com pedido de recuperação judicial.

Introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a lei 11.101/05, a recuperação judicial é concebida como uma ação destinada a permitir que o devedor renegocie o seu passivo de modo coletivo como meio de superação de uma crise econômico-financeira. Para tal, prevê que, com o deferimento do processamento da ação, todas as execuções em face do devedor sejam suspensas por 180 dias para que, então, elabore um plano com medidas recuperatórias a ser apreciado, no curso do processo, pelos credores, que, caso aprovem o plano, terão suas obrigações extintas, tendo em seu lugar novas obrigações cujos termos estarão estipulados no plano3.

Ocorre que, para se valer deste instrumento, a própria Lei de Recuperação de Empresas e Falência prevê, em seu artigo 1º, que a recuperação judicial se aplica aos empresários individuais e às sociedades empresárias. Ademais, o caput do artigo 48 da mesma lei ainda prevê a necessidade de comprovar o exercício regular das atividades empresárias há mais de 2 anos.

Nisso, já se observam alguns entraves para a possibilidade de propositura, no atual momento, de uma ação de recuperação judicial pelos clubes de futebol brasileiro. Isto ocorre porque, entre as equipes da Série A do Campeonato Brasileiro, 19 das 20 (a exceção é o Red Bull Bragantino Futebol Ltda.) encontram-se construídas sob a forma de associação civil sem fins lucrativos, ou seja, possuem forma não empresária, o que os excluiria do campo de destinatários da lei 11.101/05.

Ocorre que os tribunais brasileiros vêm adotando posturas que contribuem para novos delineamentos do instituto da recuperação judicial, com interpretações que transcendem uma interpretação literal do texto legal, as quais aparentam ser deveras significativas para os clubes de futebol diante de uma eventual possibilidade de requererem recuperação judicial, ainda que constituídos como associações.

 O caso mais emblemático, nesse sentido, é o deferimento, pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ), do processamento da recuperação judicial da Associação Sociedade Brasileira de Instrução, em litisconsórcio com o Instituto Cândido Mendes. Objeto de recurso do Ministério Público, o conteúdo da decisão foi mantido em segundo grau pelo tribunal, permitindo que a universidade carioca, ainda que organizada como associação, se valesse da recuperação judicial4.

Na decisão em 1ª instância, a magistrada Maria da Penha Nobre Mauro, além de destacar a relevância social das atividades desempenhadas pelas associações, apontou que a feição empresarial da pessoa jurídica não fica adstrita à mera natureza jurídica do agente econômico, sendo que as associações do caso, apesar de não distribuírem resultados, exercem atividade econômica, com a gestão de uma estrutura produtiva, geradora de empregos e de riquezas, sendo útil, portanto, a extensão da recuperação judicial para preservar a atividade e estimular seu desenvolvimento.

A medida em questão é fruto de polêmicas, pois, conforme já afirmado, a lei de Recuperação de Empresas e Falência expressamente determina que os institutos ali disciplinados sejam aplicáveis apenas ao empresário e a sociedade empresária. No entanto, o artigo 47 da mesma lei, ao prever que a recuperação judicial viabilizaria a superação de crise econômico-financeira do devedor para manutenção de empregos, da produção e da própria atividade desempenhada, não tutelaria uma realidade atinente apenas a empresários e sociedades empresárias, alcançando, portanto, as associações que exerçam atividade econômica.

No entanto, o precedente do TJ/RJ, com deferimento do processamento da recuperação judicial do grupo Cândido Mendes, deve ser visto como cautela. A magistrada não levou em consideração apenas a situação de crise e a comunidade envolvida com a instituição para o deferimento, mas promoveu análise sobre a natureza da atividade exercida pela associação. Nesse caso, um eventual pedido de recuperação judicial de clube de futebol envolveria a necessidade de analisar se a atividade exercida por eles os aproxima de uma estrutura econômica produtiva, com participação relevante na economia e não dotada apenas de um caráter social.

Por mais que a evolução da indústria esportiva contribua para a visualização da exploração do futebol como uma atividade econômica, geradora de riquezas e empregos, e digna de ser preservada, não há uma jurisprudência consolidada quanto a aplicação da Lei de Recuperação de Empresas e Falência a pessoas jurídicas não empresárias. A decisão do TJ/RJ ainda é um julgado isolado e apegado às peculiaridades da atividade desenvolvida pelas associações que propuseram a ação.

Além deste óbice, é preciso rememorar que a lei 11.101/05 ainda exige a comprovação de dois anos de exercício da atividade empresária, requisito que seria mitigado pelo já mencionado "PL do 'Clube-Empresa'" (PL 5.082-A/16) que permitiria o pleito do pedido com a mera conversão para sociedade empresária, independentemente do tempo de exercício de atividade nessas condições.

Este requisito também foi objeto de recentes discussões nos Judiciário. O STJ, em caso envolvendo a recuperação judicial de produtores rurais, já se inclinou no sentido de que os dois anos previstos em lei não diriam respeito à constituição como empresário, mas sim ao exercício da atividade5, o que também pode ser favorável a um eventual processamento de recuperação judicial de um clube que almeje e proponha a ação logo após se tornar uma sociedade empresária, independentemente da aprovação do PL nº 5.082-A/2016.

Os novos posicionamentos adotados pelos tribunais podem ser capazes de contribuir para a introdução da realidade da recuperação judicial aos clubes de futebol brasileiro, viabilizando a reestruturação administrativa e financeira desses. Entretanto, ainda há um risco muito grande em se admitir o processamento da recuperação judicial de tais associações sob o atual cenário, justamente porque as posições aqui apontadas são objeto de divergência tanto na doutrina como na própria jurisprudência.

Até por isso, o próprio Botafogo, dentro do seu interesse em propor uma ação de recuperação judicial, demonstra parcimônia antes de tomar qualquer atitude nesse sentido. Apesar da imprensa noticiar que mover um processo análogo ao caso da Universidade Cândido Mendes seria uma das alternativas, os dirigentes botafoguenses também observam os movimentos legislativos tanto em relação à regulamentação do "clube-empresa" como também sobre a reforma da Lei nº 11.101/2005, em pauta no Congresso, para visualizar o que pode extrair em seu benefício.

Para além das questões jurídicas, a realidade é que um processo de recuperação judicial revela problemáticas mais complexas, como, por exemplo, as incertezas em relação ao financiamento durante a recuperação judicial6 ou mesmo o fato de o ingresso no regime recuperatório não ser sinônimo de um "choque de gestão" digno de elevar o patamar do clube de forma imediata.

A recuperação judicial exige cautela e um tratamento adequado para uma harmoniosa estruturação do plano, de modo que as novas obrigações assumidas pelo clube devam ser factíveis, especialmente porque o regime recuperatório não é "eterno" e a própria lei dispõe, em seu artigo 61, que todas obrigações assumidas no plano deverão ser cumpridas em até dois anos da data em que fora concedida a recuperação judicial. Nesse cenário, o descumprimento de qualquer uma delas acarretará a convolação da recuperação em falência, conforme o artigo 73 da Lei de Recuperação de Empresas e Falência,  o que significa a liquidação de todos os ativos do clube e a necessidade de iniciar os seus passos nas competições do zero (ou seja, dos níveis de divisão mais baixo).

O próprio projeto de elaboração do plano não é simples e exige que os clubes o pensem de modo propício e condizente com as peculiaridades de suas atividades. Mais do que isso, como apontado, é preciso que o plano seja elaborado de modo eficiente para que, realmente, se efetue uma reestruturação e não seja utilizado apenas como um meio de procrastinar as obrigações com os credores, sob pena de que, caso mal elaborado, acarrete na falência do clube e em um duro golpe sobre suas atividades.

Não obstante, ainda que seja deferido o processamento da recuperação judicial e que todas as execuções em face do clube sejam suspensas por cento e oitenta dias, cabe a indagação se tais suspensões também ocorrerão em âmbito das disputas desportivas (casos na Câmara Nacional de Resolução de Disputas em âmbito nacional ou no Players' Status Committee, Dispute Resolution Chamber, Tribunal Arbitral do Esporte em âmbito internacional), ficando o clube suscetível a punições desportivas, como proibição de registro de novos atletas e, até mesmo, perda de pontos, como ocorreu com o Cruzeiro.

Entre tantas complexidades, ainda que a recuperação judicial seja vista como salvação, o seu insucesso pode significar uma verdadeira "pá de cal" na vida dos clubes em dificuldades financeiras.

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1- Disponível aqui.

2- Disponível em: aqui.

3- SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência - Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. 3ª ed., Almedina: São Paulo, 2018.

4- Processo nº 00093754-90.2020.8.19.0001, em trâmite perante a 5ª Vara Empresarial da Capital, e Agravo de Instrumento nº 0031515-53.2020.8.19.0000, julgado pela 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

5- Nesse sentido, REsp nº 1.800.032/MT.

6- Entre os objetos de discussão na reforma da Lei nº 11.101/2005, está o desenvolvimento de meios legais aptos a incentivar e definir regras mais claras acerca do financiamento daquelas empresas em recuperação judicial. O atual regime conta com alguns desestímulos a esta prática, tanto que a companhia aérea Latam Brasil ingressou na recuperação judicial do grupo nos Estados Unidos justamente pelo ordenamento jurídico brasileiro não oferecer fontes de financiamento como o norte-americano oferece (Latam Brasil entra no processo de recuperação judicial do grupo nos EUA).

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*Daniel Falcão é advogado e Cientista Social. Doutor e Mestre em Direito do Estado e Graduado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

*Leonardo Belloti é advogado. Mestrando em Direito Desportivo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

*Camilo Jreige é graduando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).

*Felipe Ferreira é graduando da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

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