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Concursos e exercício de cargo público no Brasil devem acomodar calendário religioso?

Neste artigo apresentamos uma síntese do julgamento, dos votos e buscamos traçar o perfil decisório dos Ministros que ainda faltam votar. O objetivo é verificar se há precedentes ou se há razões jurídicas já evidenciadas que permitam identificar a provável linha de entendimento dos Ministros que votarão na continuidade da sessão do STF.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Atualizado às 08:56

 (Imagem: Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Imagem: Arte Migalhas.)

1. Conciliação da liberdade religiosa e do interesse público: o placar está 5 x 3 em prol da liberdade religiosa na perspectiva dos guardadores do Sábado.

2. Explicação inicial: se você leitor não é guardador do Sábado, é importante desde já saber que os adeptos de religiões Sabatistas não desejam nenhum privilégio com a discussão jurídica que o STF vai resolver esta semana. Para quem guarda o Sábado bíblico a observância deste dia é por demais especial. É o dia de consagração incondicional a Deus e à família, com a prática de liturgias religiosas que visam orientar, instruir, educar e estimular o estudo da Bíblia Sagrada e a prática do assistencialismo. Para o religioso zeloso, a fé professada incorpora-se ao seu ser de forma tão intensa que já não há mais como separar-se sua existência do plexo de doutrinas, ritos e crenças que permanentemente se anexam à sua consciência. O ataque à sua crença repercute no âmago da consciência do religioso, causando-lhe sofrimento, a ponto de lhe ferir a alma. Privar o Sabatista da guarda do Sábado é arrancar sua alma. O que esses religiosos buscam é apenas compatibilizar seu direito de crença religiosa e guarda do Sábado com a prerrogativa de participarem de concursos públicos e ocuparem cargos públicos na Administração Pública.   

3. O tema de fundo: a questão jurídica em debate no STF decorre do RE 611874 e ARE 1099099, nos quais se busca uma solução constitucional que acomode dois interesses aparentemente conflitantes: de um lado, o interesse da Administração Pública em prover [contratar] servidor público para exercer os cargos, o que deve ser feito por concurso público, e, de outro lado, o direito fundamental de membros de diversos grupos religiosos de não serem discriminados/prejudicados em razão da crença que professam, e, no caso concreto, o direito de os guardadores do Sábado não serem forçados a renunciar sua fé para poder participar de concursos para cargos públicos e para poder exercer cargos quando as atividades forem marcadas para o dia de Sábado [pôr-do-sol de sexta-feira ao pôr-do-sol de Sábado], período sagrado para membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia, para Judeus e membros de outras entidades religiosas que têm na guarda do Sábado um dos pilares de sua doutrina.

4. O Julgamento no Supremo Tribunal Federal: Na tarde de ontem [25/11/20] o STF retomou o julgamento de dois recursos [RE 611874 e ARE 1099099] importantes sobre o tema da liberdade religiosa na perspectiva dos cidadãos que professam crença religiosa envolvendo a guarda do Sábado como dia sagrado.

Além do ministro Edson Fachin, que já havia votado no dia 18, hoje os ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia proferiram votos favoráveis à liberdade religiosa e entenderam ser inconstitucional negar a flexibilização de datas e horários de concurso público ou de expediente de servidor público quando a alteração é o meio que acomoda a liberdade religiosa alicerçada na guarda do Sábado, desde que haja razoabilidade na mudança de datas de provas em certames e/ou horário de trabalho. Assim, ao total já são 5 votos favoráveis à conciliação do interesse público e da liberdade religiosa.

5. Teses e Placar:

Ao se manifestar hoje, o ministro Alexandre de Moraes votou para fixar a seguinte tese de repercussão geral:

"Nos termos do art. 5º, VIII, da Constituição Federal, é possível a Administração Pública, inclusive durante o estagio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da alteração e não se caracterize o desvirtuamento no exercício de suas funções". 

Igualmente, com critérios mais explícitos, o ministro Roberto Barroso apresentou a seguinte tese de repercussão geral:

"No RE 611874: A liberdade religiosa constitui direito fundamental e deve ser respeitada pelo Estado na maior extensão possível, como natural, pode ela tem de ser ponderada com outros direitos fundamentais ou com interesses estatais constitucionalmente relevantes. A ponderação, sempre que possível, deve envolver concessões recíprocas entre os interesses legítimos em tensão, de modo a preservar o máximo possível de cada um deles.

À vista de tais premissas, fixo a seguinte tese: Candidato em concurso público, tem direito, por motivo de crença religiosa, a realizar etapas do certame em datas e horários distintos dos previstos no edital, desde que a solução de acomodação religiosa: (1) não crie um ônus desproporcional à Administração Pública; (2) não interfira na isonomia entre os participantes do concurso público."

"No ARE n. 1099099: É dever do Administrador Público considerar alternativas razoáveis para servidor em estágio probatório, cumprir deveres funcionais que importem em violação de sua crença religiosa e de que isso não crie um ônus desproporcional para a administração pública. Nos casos em que a Administração Pública recursa a solução de acomodação religiosa, deverá justificar a decisão em regular processo administrativo."

Os votos das Ministras Rosa Weber e Carmem Lúcia encamparam as teses acima citadas.

PLACAR ATÉ 25/11/20

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Concursos públicos e o exercício de cargo devem acomodar calendários religiosos?

A Constituição Federal protege a guarda do Sábado?

Antes da suspensão do julgamento em 25/11, o ministro Luiz Fux [Presidente do STF] disse não ver coerência no voto do ministro Ricardo Lewandowski, pois apesar de afirmar que não há direito subjetivo a designação de data/horário alternativo, mesmo assim proveu os recursos em julgamento e respeitou a liberdade de crença. A partir daí se instalou uma discussão sobreposta e diversos Ministros se manifestaram. O ministro Roberto Barroso salientou que o voto do ministro Lewandowski não era distante do seu, pois para Barroso o direito do candidato à data alternativa dependeria da não criação de ônus desproporcional à Administração Pública, respeitada a isonomia entre os participantes do concurso público. O ministro Alexandre de Moraes reiterou a tese que propôs e em seguida o ministro Gilmar Mendes citou um exemplo para ilustrar seu entendimento: "imaginemos um médico que é funcionário público. Poderá deixar de trabalhar?"

Em seguida o julgamento foi suspenso e continuará em 26/11/2020, iniciando pelo voto do ministro Gilmar Mendes.

6. Nossas considerações e prognóstico de votação dos demais ministros

Faltam votar os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Luiz Fux.

Provável posição do ministro Gilmar Mendes:

É altamente provável que o ministro Gilmar Mendes apresente voto contrário e assente que concursos públicos e o exercício de cargo público não devem acomodar calendários religiosos. Ele já votou assim no processo STA 389, julgado em 2009. Nesse caso anterior, tratava-se de liminar para alterar a data da prova do ENEM em 2009 e a ação era movida Centro de Educação Religiosa Judaica, que pedia que a prova não fosse no Sábado. Na ocasião, o ministro Gilmar entendeu não ser possível mudar a data da prova e fez um destaque interessante sobre a solução administrativa que a Igreja Adventista buscou diretamente com o Ministério da Educação, no que se estabeleceu a possibilidade de confinamento de candidatos durante o Sábado e que iniciariam a prova apenas depois do pôr-do-sol. Assim, penso que o ministro Gilmar manterá seu entendimento anterior e que seu voto de hoje [26/11] trará protestos contra o que ele entende ser abuso da liberdade religiosa.  

Provável posição do ministro Marco Aurélio:

Não tenho dúvida de que ele votará favorável à possibilidade de acomodação da liberdade religiosa. No já citado processo STA 389, julgado em 2009, o ministro Marco Aurélio assentou que a regra do confinamento configura violação à isonomia, pois expõe o candidato Sabatista a uma jornada exaustiva de reclusão durante todo o dia e até o pôr-do-sol, e só então é que iniciarão a prova. Na visão do Decano do STF, seria um ônus e prejuízo aos candidatos, pois enquanto os confinados estariam exaustos ao final do dia e ao iniciar a prova, os demais estariam descansados, bem alimentados e com condições de absoluta normalidade para executar a prova.

Provável posição do ministro Luiz Fux:

Sua Excelência é Judeu e tal circunstância em nada esvazia sua imparcialidade. Na verdade, a ascendência judaica de Fux indica que Sua Excelência bem compreende a tensão entre a necessidade de eficiência da Administração Pública e o direito de crença relativo à guarda do Sábado na ótica da possibilidade de o cidadão Sabatista poder participar ativamente nas decisões de seu país por meio do exercício de cargos públicos.

Minha conclusão, portanto, é no sentido de que Gilmar votará contra, mas Marco Aurélio e Fux votarão favorável, e o resultado será 7 x 4 para afirmar que concursos públicos e o exercício do cargo devem acomodar calendários religiosos, com base nos critérios fixadas nas teses de Moraes e Barroso. Apesar do prognóstico favorável, o debate no STF é muito restrito. Existem muitos temas que não foram abordados, como o direito do trabalhador CLT à guarda do sábado, o direito do Advogado de ter suspensa ou transferida audiência marcada para sexta-feira às 18h no inverno [pôr-do-sol ocorre nessa época antes das 18h]. Também entendo ser muito raso invocar exemplos extremos como fez ontem o ministro Gilmar Mendes, quando citou a questão do médico, no que entendeu Gilmar que pararia de trabalhar em razão do Sábado. A atenta visualização da sustentação oral do Dr. Luigi Braga, Procurador da ANAJURE e Advogado Geral da Divisão Sul Americana da Igreja Adventista do Sétimo Dia, de pronto fulmina essa equivocada percepção do ministro Gilmar, pois as dezenas de hospitais Adventistas no mundo não fecham suas portas e não deixam de salvar vidas no dia de Sábado, até porque, na concepção Adventista, "é lícito fazer o bem no dia de Sábado" [Mateus 12:12]. O exemplo em questão é descolado da realidade concreta. De todo modo, o debate é uma oportunidade de reflexão e busca de aprimoramentos. E vale o alerta: "O preço da liberdade é a eterna vigilância." (Thomas Jefferson)    

Disclaimer final: as constatações basearam-se nos votos e manifestações orais dos ministros, disponíveis no canal da TV Justiça no Youtube. As opiniões que externei aqui decorrem de estudos que realizei e não são verdades absolutas. Não tive nem de longe a pretensão de exaurir o tema, senão apenas resumir o "estado da arte". 

Hoje [26/11] conheceremos as dimensões e delimitações da liberdade religiosa no Brasil.

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t*Wilson Knoner Campos é advogado pós-graduado em Jurisdição Federal, Direito Penal e Criminologia, Direito Penal Econômico e Direito Médico. Professor no Instituto Brasileiro de Direito, Conformidade e Normas Internacionais - IBDCNI; Presidente da Comissão de Direito da Saúde da OAB/SC; Membro da "Health Law Section" [Comissão de Direito da Saúde] da "American Bar Association" dos Estados Unidos; Vice-presidente da Comissão de Investigação Defensiva do Instituto dos Advogados de Santa Catarina - IASC; Cursos no exterior: Bioethics: The Law, Medicine, and Ethics of Reproductive Technologies and Genetics (Harvard, 2018); Terrorism and Counterterrorism: Comparing Theory and Practice (Universiteit Leiden, 2016); International Criminal Law (Case Western Reserve University, 2016). Advogado sócio da Bertol Sociedade Advogados [SC e SP].

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