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A permissão da doação de sangue de indivíduos da comunidade LGBTQI+ em tempos de Covid-19

Ramon de Oliveira Silva e Caroline Santos

Primeiramente será demonstrado o cabimento da ação judicial, bem como o seu trâmite e decisão.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Atualizado em 3 de dezembro de 2020 08:28

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O presente artigo possui como justificativa analisar como se deu o julgamento da ADIn 5543, que declarou a inconstitucionalidade da legislação que impede pessoas da comunidade LGBTQI+ de doarem san gue, levando em conta também o cenário apresentado em decorrência da pandemia da Covid-19.

Os bancos de sangue de hemocentros estão em crise por conta da falta de doações e também da alta demanda no tratamento da doença supracitada, de maneira que a medida foi importantíssima, por isso deve ser analisada e a apresentada a pesquisa.

Primeiramente será demonstrado o cabimento da ação judicial, bem como o seu trâmite e decisão. Posteriormente será apresentada a questão da discriminação e do preconceito, e como isso se relaciona com o julgamento do Supremo Tribunal Federal que resultou na criminalização da LTGBQI+fobia1, além de qual sanção deveria ser imposta àqueles que continuarem se recusando a realizar as coletas.

1. ADIn 5543 e a permissão da doação de sangue

O STF julgou em 8 de maio de 2020 a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5543, medida judicial cabível em casos que objetiva-se retirar do ordenamento jurídico lei ou ato normativo estadual ou federal que seja incompatível com a CF/98.

No presente caso, a pretensão da interposição se deu na premissa de declarar inconstitucional a restrição de que homens que praticassem relações sexuais com outros homens, ou até mesmo com as parceiras sexuais destes, em um prazo de até doze meses, não podiam doar sangue, por não serem considerados como aptos nos termos na Portaria 158 do Ministério da Saúde, e que possui texto semelhante na Resolução nº 34 da Anvisa, conforme se vê:

"Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer das situações abaixo:
(...)

IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes." 

A ação foi interposta pelo Partido Socialista Brasileiro em junho de 2016, sendo que seu julgamento iniciou apenas em outubro de 2017. Inicialmente, o ministro relator Edson Fachin se posicionou à favor de declarar as normas inconstitucionais por reconhecer que tal fato é discriminatório, de maneira que votaram igualmente os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux. Entretanto se teve uma interrupção, vez que o ministro Gilmar Mendes realizou um pedido de vista, de maneira que a ação ficou paralisada até então.

Porém, em dezembro do ano de 2019 foi registrado pela primeira vez na China um caso de uma nova mutação de um novo tipo de coronavírus, que antes era considerada como uma doença que tipicamente acometia animais, e passou a infectar seres humanos, recebendo a nomenclatura de Covid-19.

Com a frequente globalização e o grande fluxo de pessoas, o vírus acabou se espalhando por todos os continentes, de maneira que se passou a ter caracterizada uma pandemia.

Tendo em vista este cenário, juntamente com os crescentes números de casos da doença registrados no Brasil, se teve um forte abalo no sistema de saúde, de forma que a demanda por bolsas de sangue para serem utilizadas em tratamentos de indivíduos em situação mais agravada aumentou significativamente. Se tendo ainda um forte agravante, pois em decorrência do isolamento social e o medo de contágio, muitas pessoas pararam temporariamente de realizar as doações, o que prejudicou mais ainda os bancos de sangue.

Diante destes fatos, a ADI 5543 voltou a ser discutida pelo STF, que se deparou com um requerimento da Advocacia Geral da União para que a ação fosse rejeitada e que não houvesse ao menos a votação. Por outro lado, a Defensoria Pública da União pediu para que houvesse uma celeridade no julgamento com embasamento na pandemia da Covid-19 e na necessidade de abastecer os estoques de bolsas de sangue.

Em razão de tal emergência, foi realizado o julgamento da ação por meio do plenário virtual, sen do que os ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Dias Toffoli votaram pela inconstitucionalidade das normas discriminatórias. Contudo, votaram de maneira divergente os ministros Alexandre de Moraes, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Melo, que alegaram que apenas homossexuais e bissexuais poderiam fazer as doações sob a condição de que o sangue deveria passar por testes imunológicos, além de que a Corte deve sempre acompanhar os dados divulgados por autoridades sanitárias.

Porém, ressalta-se que todo sangue que é doado é rigorosamente testado, independentemente de quem seja o doador, para que a transfusão ocorra de maneira segura sem que se tenha a presença de doenças que podem ser transmitidas pelo sangue. Salienta-se que a testagem se da por meio da realização de testes sorológicos e do NAT (Teste de Ácido Nucleico), que é capaz de detectar possíveis vírus antes mesmo de sua positivação no organismo da pessoa infectada.

Com isso, se tem evidenciado que o discurso dos ministros que alegaram que o material coletado de homossexuais e bissexuais deveria passar por uma série de exames é totalmente refutável, pois sempre de tem uma rígida testagem não importando quem seja o doador. Sendo que o voto continua sendo discriminatório, pois foram excluídos as travestis, transsexuais, pansexuais e demais nomenclaturas que englobam dentro da comunidade LGBTQI+, de forma que aqueles que compõe o órgão responsável pela defesa da Constituição da República Federativa do Brasil de 1998 estão indo contra a mesma, que prevê:

"Art. 3. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;

III  - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." 

Ademais, segundo a All Out Brasil2, estima-se atualmente que cerca de 18 (dezoito) milhões de litros de sangue são desperdiçados anualmente apenas por conta da restrição impostas pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde, sendo que uma bolsa de sangue que possui 450ml (quatrocentos e cinquenta mililitros) pode salvar até quatro vidas.

Destarte, segundo os dados apresentados, poderiam ser salvas por ano cerca de 160 (cento e sessenta) milhões de vidas apenas com sangue de pessoas da comunidade LGBTQI+. Porém, o que se encontra são bancos de sangue com estoques cada vez mais baixos, o que poderia ser evitado há muito tempo caso o preconceito não fosse um obstáculo.

Ressalta-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal produz efeitos desde a sua publicação no Diário Oficial da União. Porém, ainda podem ser encontradas algumas restrições em hemocentros, pois ainda são necessárias as modificações da portaria do Ministério da Saúde e da resolução da Anvisa, além de que é preciso haver diretrizes dentro das empresas que realizam a coleta do sangue.

Contudo, já se tem uma orientação do Ministério da Saúde, e pelo menos no Estado de Goiás, a Hemorrede Pública de Goiás, que atende os hospitais públicos do estado e os contratados pelo Sistema único de Saúde (SUS), já está coletando normalmente o sangue de pessoas homossexuais.

2. A questão do racismo e o julgamento do mandado de injunção 4733

No que diz respeito a restrição de doação de sangue de indivíduos da comunidade LGBTQI+, afere-se que esta se dava totalmente por conta de fatores discriminatórios, pois o fundamento para tal impedimento era de que essas pessoas seriam mais suscetíveis a se contaminarem com doenças sexualmente transmissíveis.

Isto se deu em decorrência de que nos anos 80, quando se teve a descoberta da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e do vírus HIV (Vírus da Imunodeficiência Humana), a população LGBTQI+ foi uma das mais atingidas, de forma que milhares morreram por complicações causadas pela doença.

Entretanto, isso foi há cerca de 40 (quarenta anos) atrás, de maneira que atualmente o cenário é totalmente outro, não se tendo mais essa alta disseminação apenas dentro da comunidade LGBTQI+ como no passado, sendo que pessoas heterossexuais que praticam relações sexuais com outros desta mesma sexualidade e que são cisgêneros, também podem possuir a doença.

Em relação ao preconceito, deve-se mencionar uma outra ação que envolveu a comunidade LGBTQI+, que foi o Mandado de Injunção 4733, impetrado pela AGBLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) em 10 de junho de 2012, que objetivava a declaração de mora inconstitucional do Congresso Nacional por não editar nenhum texto legislativo que impunha punição contra atos homofóbicos e transfóbicos.

Ainda, a medida judicial requereu, dentre outros pedidos, que fosse determinado o enquadramento da homofobia e da transfobia na Lei nº 7.716 de 5 de janeiro de 1998 (Lei de Racismo). Sendo que esse pedido foi acolhido no julgamento que ocorreu em 13 de junho de 2020, de forma que se teve a criminalização da homotransfobia.

Entretanto, algumas dúvidas surgiram, como por exemplo se com o enquadramento na lei 7.716, atitudes homotransfócias seriam uma forma de racismo. Para responder tal questionamento, extrai-se o seguinte trecho do julgamento do STF 82.424:

"O Plenário do Tribunal, partindo da premissa de que não há subdivisões biológicas na espécie humana, entendeu que a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político -social. Desse processo, origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Para a construção da definição jurídicoconstitucional do termo 'racismo', o Tribunal concluiu que é necessário, por meio da interpretação teleológica e sistêmica da Constituição, conjugar fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram a sua formação e aplicação."

Ainda, se tem o seguinte entendimento do autor Guilherme Sousa Nucci:

O que fez o STF àquela época (2003)? Analogia? Interpretação extensiva? Nada disso. Redefiniu o termo racismo à luza da modernidade. E se um grupo religioso pode ser segregado, por ser minoritário, isso é racismo. Logo, imprescritível. Na exata medida em que não há mais 'raças' entre seres humanos. Há apenas a raça humana. A busca divisão de raças caiu por terra; tornou-se um conceito nitidamente ultrapassado. Algo que os antipositivistas, tão cultos, deveriam saber.

Isto posto, verifica-se que a prática de atos discriminatórios contra a comunidade LGBTQI+ são uma forma de racismo, de forma que, além de a legislação atual que impede a doação de sangue ser in constitucional, laboratórios ou hemocentros ou seus funcionários que se recusarem a receber ou descartar bolsas de sangue de indivíduos LGBTQI+, antes mesmo que seja feita a testagem, deveriam responder pelo crime de racismo nos termos da Lei nº 7.716, pois tal medida é extremamente preconceituosa.

Conclusão

O preconceito persegue a comunidade LGBTQI+ há anos, contudo, todos podem ser afetados por isso, como é no caso da restrição da doação das bolsas de sangue, pois milhões de vidas podem ser salva com o sangue que é "desperdiçado". Sendo que hemocentros que poderiam estar com estoques cheios, na realidade encontram-se precisando urgentemente de doações.

A pandemia da Covid-19 agravou ainda mais a situação que já era crítica, e só assim, com um número alto de mortes, que os julgadores da medida judicial interposta para declaração da inconstitucionalidade das restrições resolveram aprovar as doações.

É lamentável o fato de que se fez necessário algo tão grave para que tal posicionamento fosse adotado. Porém, por outro lado, é exemplar o fato de que o preconceito foi deixado de lado e que muitas vidas ainda poderão ser salvas caso se tenha um aumento de número de doações de sangue, o que deveria ser seguido também por outros países e ser aplicado em diversas outras situação cotidianas.

Por fim, conforme demonstrado, o impedimento é uma forma de discriminação à luz da Constituição Federativa da República do Brasil de 1988, e ademais, racismo conforme julgamentos do Supremo Tribunal Federal, de forma que aqueles que insistirem em não coletar o sangue de pessoas LGBTQI+ deveriam incorrer na lei 7.716, pois tal fato é crime.

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1- Aversão à indivíduos que compõem a comunidade LGBTQI+.

2- Organização sem fins lucrativos, sendo um movimento global em defesa dos direitos LGBTQI+.

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CARDINALI, Daniel Carvalho. A Judicialização dos Direitos LGBT no STF: Limites, possibilidades e consequências. 1. ed. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2018.

GASDA, Élio. Homossexuais podem doar sangue: solidariedade venceu o preconceito. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago 2020.

OLIVEIRA, Joana. Em decisão história, STF derruba restrição de doação de sangue por homossexuais. El País, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago 2020.

SILVA, Ramon de Oliveira. Processo De Criminalização Da LGBTQI+fobia: Uma Análise à Luz Da Violência Simbólica de Pierre Bourdieu e o Ativismo do Poder Judiciário. Goiânia, 2020.

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 *Ramon Oliveira é graduando em Direito, pela PUC Goiás; Monitor da disciplina Direito Civil VII (Direito de Sucessões) e pesquisador na temática LGBTQI+;






 *Caroline Santos
é advogada especialista em Direito Médico e da Saúde. Conselheira da OAB/GO (2016/2021); Presidente da Comissão de Direito Médico, Sanitário e Defesa da Saúde (CDMS) da OAB/GO; Doutora em Biotecnologia e Biodiversidades pela Universidade Federal de Goiás; Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO; Especialista em Direito Público pela Uni-Anhanguera.

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