MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Refugiados e a falta de acesso à cidade: o caso parisiense

Refugiados e a falta de acesso à cidade: o caso parisiense

A fuga de um refugiado do seu país de origem é cercada pela esperança de dias melhores e expectativa de recomeço.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Atualizado às 14:54

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Nos últimos anos houve um grande aumento de pessoas deslocadas forçadamente devido a variados tipos de situações, como guerras e violações de direitos humanos. Segundo a Agência Nacional da ONU para Refugiados (ACNUR), 70,5 milhões de pessoas foram obrigadas a sair de seus lares, segundo dados registrados até o ano de 20191. No relatório Tendências Globais de 2019 da ACNUR é informado que os principais países de acolhida são Turquia, Colômbia, Paquistão, Uganda e Alemanha.

Desse número de deslocados, observa-se no relatório supracitado que 26 milhões são considerados refugiados e 2 milhões são solicitantes de refúgio, diferentemente dos deslocados internos, pois aqueles ultrapassam as fronteiras internacionais de seus países de origem para buscarem proteção. Nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, definida em Genebra, e do Protocolo de 1967, refugiados são pessoas que estão fora de seu país "e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas"2, sendo assegurada a não-discriminação e a liberdade na prática de sua religião.

A essa definição inicial, incluiu-se após a Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984, o conceito de que refugiados também são consideradas as pessoas que fugiram de seu país por motivo de violência, agressão estrangeira, conflitos e violação de direitos humanos capazes de colocarem em risco a vida, segurança e liberdade de uma pessoa.3

Paralelamente é importante destacar que no Brasil a Convenção foi internalizada, e a aprovação se deu por meio do decreto legislativo 11 de 1960. Posteriormente, por meio da lei 9.474 de 1997, ficaram estabelecidos mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados.

Então, diante dos instrumentos mencionados acima, em nível internacional, percebe-se a construção de requisitos mais amplos ao longo dos anos para fins de definição do que é considerado um refugiado. Por conseguinte, chega-se a seguinte questão quando uma pessoa se torna um refugiado: qual país processará a sua solicitação de refúgio?

O regulamento 604/2013 do Parlamento Europeu e Conselho, chamado de Regulamento de Dublin III, é a norma seguida pela União Europeia para fins de estabelecer qual Estado-Membro será responsável pelo pedido de proteção internacional. Ressalvadas as exceções previstas no regulamento, como no caso de menor não acompanhado, membro de família, vínculo familiar e título de residência/visto válido, a competência para a análise do pedido de refúgio é do país de primeira parada. O que também não impede de um Estado-membro evocar as chamadas clausulas discricionárias, previstas no regulamento, para processar o pedido mesmo sem ter competência. Caso contrário, é feita a transferência dos solicitantes de asilo para o país responsável.

Nesse sentido, haja vista a posição da França banhada pelo mediterrâneo e a procura de pessoas necessitadas de proteção internacional ser realizada muitas vezes através de transportes marítimos, o país torna-se um dos principais países de entrada de refugiados. Sem contar a Itália e Malta, países da União Europeia, que estão mais ao sul e, assim, mais próximos da conquista do refúgio.

Em que pese a disputa interna no bloco europeu para a distribuição dos refugiados de forma equânime entre os países, com tentativa de acordos, o sistema de Dublin continua a nortear a competência dos Estados.

No que diz respeito à França, país que será analisado no presente artigo, o procedimento interno pode ser brevemente apresentado da seguinte forma: i) Atendimento na estrutura de primeiro acolhimento para requerentes de asilo, em francês, structure de premier accueil des demandeurs d'asile (SPADA); ii) Análise do pedido e entrevista pelo Organismo Francês de Proteção aos Refugiados e Apátridas, Office français de protection des réfugiés et apatrides (OFPRA), que está ligado ao Tribunal nacional do Direito de Asilo, Cour nationale du droit d'asile; iii) Decisão favorável ou desfavorável, passível de recurso com assistência gratuita de advogado custeado pelo Estado.4

Durante todo o processo de requerimento, o refugiado tem direito de permanecer na França, sendo amparado nos seguintes pontos: subsídio mensal para requerentes de asilo (allocation mensuelle pour demandeur d'asile - ADA) de acordo a necessidade da família, alojamento em um centro de acolhimento para requerentes de asilo (centre d'accueil pour demandeurs d'asile - CADA), acesso ao sistema de educação francês com instrução obrigatória entre os seis e 16 anos, direito de trabalhar mediante autorização, dentre outros.

Uma vez concedido o asilo, o refugiado deve assinar o Contrato de Integração Republicana, contrat d'intégration républicaine (CIR) e terá o cartão de residência por dez anos, podendo ser renovado. Ainda, tem o direito à chamada formação cívica de quatro dias para fins de conhecimento do sistema organizacional da França, ao aprendizado da língua francesa, à orientação profissional para adentrar ao mercado de trabalho e a um acompanhamento para facilitar a integração na nova realidade.

Apesar dos direitos garantidos aos solicitantes de refúgio, a situação vivenciada por eles na França é diversa. Não há acomodações suficientes para os refugiados, principalmente na capital francesa que oferece condições precárias de vida. O que faz com que os requentes e até mesmo as pessoas já com status de refugiado vivam na rua, sem encontrar o amparo do Estado garantido pela própria legislação francesa. Dessa forma, acampamentos improvisados são formados abrigando centenas de pessoas em estado de vulnerabilidade. Ficam sob ameaça de força policial, intempéries climáticas e doenças, agravadas também pela pandemia do novo coronavírus.

Nesse sentido pode ser destacado o acampamento que estava localizado ao redor do Stade de France, em Saint-Denis, norte de Paris. Havia mais de 2.000 migrantes em situação de rua, entre eles refugiados e requerentes, segundo as informações divulgadas por entidades não governamentais. A partir de forte força policial, com a existência inclusive de gás lacrimogênio na operação, as pessoas foram destinadas aos centros de acolhimento e ginásios no dia 17 de novembro de 2020.5

A operação que foi acompanhada por organizações, sendo duramente criticada pela presença de violência e por uma solução paliativa que não resolve efetivamente a situação dos refugiados. Os movimentos sociais declararam se tratar de uma tentativa de esconder a realidade dessas pessoas em lugares afastados da capital, tornando-os invisíveis. Dificultando, ainda, o recebimento de ajuda humanitária de voluntários da área médica e doação de alimentos, por exemplo. Por outro lado, o Ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, publicou um tweet, no mesmo dia 17, agradecendo aos agentes policiais pela evacuação de 2000 pessoas do acampamento "ilícito" onde pessoas viviam em condições sanitárias deploráveis.

Diante da situação enfrentada, cujos direitos fundamentais não são na prática garantidos, não há que se falar em acesso à cidade. Se os refugiados sequer têm acesso aos direitos básicos inerentes à sobrevivência humana, eles ficam automaticamente isolados do direito coletivo ao acesso ao espaço público. Não usufruem de forma equitativa da cidade, dos espaços sociais, políticos, culturais, ficando à margem da sociedade.

Os refugiados são obrigados a saírem de seus países por variados motivos e encontram na Cidade Luz um novo ambiente de luta pela sobrevivência. As autoridades francesas precisam construir um plano para o devido assentamento dos refugiados, dando condições dignas para todos construírem uma vida nova, com novas possibilidades.

Deve ser revertida a omissão de política de moradia na capital francesa, ao invés de dispersarem os sem-teto por meio de força policial. Talvez assim possam dar início a uma integração social com o justo acesso ao que a capital francesa pode oferecer de melhor aos compatriotas, o que se sabe que está muito além de bomba e operação policial.

----------

1 Relatório Tendências Globais de 2019 da ACNUR. Disponível aqui.
2 Artigo e 1° e seguintes da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Disponível aqui.
3 Declaração de Cartagena sobre refugiados. Disponível aqui.
4 Guide du demandeur d'asile en France. Disponível aqui.
5 A operação ganhou noticiários na França, podendo destacar a matéria do jornal Le Monde disponível aqui.

----------

 *Thuany de Moura Costa Vargas Lopes é doutoranda em Direito Público pela Université de Tours/França. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). MBA Executivo em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Advogada.

 

t

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca