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A necessária visão da revisão da manutenção da prisão preventiva

A interpretação do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que afirma que o prazo de 90 dias não é peremptório não é interpretação, pois não busca extrair o sentido do texto, mas sim substituí-lo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Atualizado às 12:09

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Poucos, se algum, operadores do direito não reconhecem e respeitam o nome de Guilherme Nucci. Olhando nos planos de ensino de quando fazia faculdade, que ainda guardo, veja proeminentemente obras do ilustre doutrinador. Sua carreira e produção, tanto nos tribunais como em sala de aula, falam alto. Neste momento, me virando um pouco, vejo uma de suas obras a 2 passos de distância, na minha biblioteca de "consulta rápida", que utilizo na prática jurídica. Mas, parafraseando (com certeza erroneamente; misquoting) Streck, autores sérios são dignos de nossa discordância e do diálogo, enquanto outros devemos ignorar. Assim, discordando, apresento meus respeitos ao nobre desembargador.

Trata-se de artigo do citado professor, em 17 de novembro de 2020, intitulado "A revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva", em site.

É preciso, antes de mais nada, relembrar do que estamos falando. A questão é interpretação. Interpretação de algo, pois interpretar é verbo transitivo direto. Interpreta-se algo ou alguém. No caso, o artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, após a edição da lei 13.964/19, vulgarizado como "pacote anticrime", com toda a carga de pré-compreensão incutida nesta nomenclatura. Se interpreto algo, minha interpretação precisa ser necessariamente sobre este algo. Não posso interpretar um cachorro e compreender gato. Não posso interpretar o som de gato e compreender um balido. A interpretação de um hipotético cachorro deve, para interpretação ser, se conter ao limites da "cachorritude". Posso concluir Rottweiler, Poodle ou Bulldog. São interpretações extremamente distintas, mas ainda são cachorros. Ou posso até discutir se, interpretando cachorro, é possível concluir-se lobo. Ou posso interpretar uma ave como um Pombo ou uma Cacatua Alba. Mas eu interpretar um cachorro como papagaio me trará uma amarga surpresa quando esperar que alce voo.

Toda a verborragia do parágrafo anterior é, de maneira simplificada, a tradição extraída da hermenêutica filosófica, nas tradições de Heidegger, Gadamer, Wittgenstein e, no Brasil, Ernildo Stein e Lenio Streck. Mas não precisamos (embora devêssemos) nos aprofundar na filosofia hermenêutica ou na Crítica Hermenêutica do Direito para compreender que se saímos dos limites do texto, não estamos mais interpretando. Chamemos de superação do texto, criação normativa-jurisprudencial ou qualquer outro nome, menos interpretação. Não se trata de certo ou errado, justo ou injusto. Chamar um cachorro de gato jamais o fará miar (se o seu cachorro estiver miando, procure um veterinário com urgência).

Nucci, em seu artigo, afirma que o prazo de 90 dias não pode ser peremptório e que, ultrapassado, gera a soltura do preso. Ainda, que o prazo para reavaliar a necessidade da custódia cautelar seja soberano, que se deve buscar saber as razões do magistrado etc. Entretanto, tal (não)interpretação não pode prosperar, pois contraria diretamente o texto. Como o próprio professor afirma no parágrafo imediatamente anterior, foi incluindo o texto indicando que se a revisão não for realizada, a prisão se torna ilegal e o preso deve ser solto. E é isso que o texto diz. Certo ou errado, este é o limite da interpretação. E, como veremos mais à frente, há o que se interpretar. Mas não isto. O texto é claro: não sendo feita a revisão, a consequência ("sob pena") é a sua ilegalidade e, conforme estampado na Constituição, a prisão ilegal será imediatamente relaxada.

Fugir dos limites do texto é atribuir ao Poder Judiciário um papel de poder moderador/revisor daquele do legislativo, estabelecendo uma hierarquia entre os poderes. Se o judiciário não concordar com o texto legal, reescreve-o. Tal prática deve ser veementemente rejeitada, pois atenta contra o próprio Estado Democrático de Direito. Não há, e nem pode haver, hierarquia entre os poderes do Estado. Não compete ao judiciário revisar materialmente a produção legislativa, sob pena (e portanto consequência automática e necessária) de se judicializar a representação democrática.

Não se trata de questão de inconstitucionalidade. Quando o judiciário afasta determinada norma por afronta ao texto constitucional, não se tem uma hierarquia entre os poderes, mas sim uma hierarquia entre a Constituição e a atuação dos poderes, o que é perfeitamente legítimo. Conforme apresenta Streck (2020, p. 393-394):

(...) um juiz somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses: (i) quando a lei for inconstitucional, ocasião em que deve ser aplicada a jurisdição constitucional difusa ou concentrada; (ii) quando estiver em face do critérios de antinomias; (iii) quando estiver em face de uma interpretação conforme a Constituição; (iv) quando estiver em face de uma nulidade parcial com redução de texto; (v) quando estiver em face da inconstitucionalidade com redução de texto; (vi) quando estiver em face de uma regra que se confronte com um princípio, ocasião em que a regra perde sua normatividade em face de um princípio constitucional, entendido este como um padrão (...)

Com todo o respeito ao nobre professor Nucci, não se trata de nenhum desses casos. Não há nenhuma possibilidade de se interpretar a norma que resulte na conclusão de não se tratar de prazo peremptório, pelo simples fato de que a norma assim o prevê, e a vontade solipsista do magistrado não pode se sobrepor ao texto. Interpretá-lo, sim. Afastá-lo, se inconstitucional, sim. Reescrevê-lo, pois acredita que o legislador errou, jamais. Não se trata de exegese, da interpretação literal do texto. Ou mesmo de um positivismo normativo. E sim, tenho certeza de que serei acusado de ambos. A questão é diferente. O total abandono do texto é um processo de criação normativo que pertence ao pré-positivismo. O texto legal tem que valer de algo. Deve ser interpretado, sim, mas não abandonado. O respeito às formas do processo é devido. Ou, dizendo de outras forma, é o Devido Processo Legal.

Em outras palavras, não se pode ter um filtro judicial para o conteúdo normativo. Interpretação, sim. Filtro constitucional, sempre! Filtro solipsista, seja pela consciência do julgador, sua opinião pessoal sobre o valor da lei, ou seus parâmetros morais (e, portanto, puramente pessoais), não pode ser aceito.

Se a preocupação é com "a soltura automática de presos perigosos", a resposta é simples: basta o juiz revisar a prisão com a mesma presteza com que decretou a prisão. Jamais ouvimos falar de um magistrado que esqueceu de prender. Ou que estava com excesso de processos e por isso demorou para prender. Trata-se de uma responsabilidade derivada a investidura do Estado Juiz. "Na dúvida: deixe preso" não pode ser uma resposta aceitável. Pois é isso que se está se propondo: na dúvida sobre as razões do juiz para não decidir, deixe preso. Prisão processual. Cautelar. Mas, mais importante ainda, pelo fato de que o texto aprovado em processo legislativo democrático afirma, claramente, que a não revisão implica em ilegalidade da prisão, e tal texto não é contrário à Constituição. Reconhecer sua validade é questão de supremacia constitucional.

Ainda, e finalmente, a lógica de que deve ser impetrado um Habeas Corpus que, provocando o Tribunal, resultará em um questionamento ao juiz que decretou a prisão para se justificar contraria outra parte essencial do texto legal. O parágrafo único do art. 316 é categórico ao afirmar que a revisão deve ocorrer de ofício. E, se é necessário um Habeas Corpus, então nega-se também o dever de ofício.

Faz-se urgente superar a ideia de que a prisão é a regra. Não é. Prisão é sempre a exceção. A regra é a liberdade. Toda prisão deve ser exceção, e não apenas dos esquecidos. Tantos os antigos esquecidos, como uma nova classe de esquecidos sobre os quais esta previsão normativa aponta um holofote. Como afirmou o CNJ na Resolução 213/2015, "a prisão, conforme previsão constitucional (CF, art. 5º, LXV, LXVI), é medida extrema que se aplica somente nos casos expressos em lei e quando a hipótese não comportar nenhuma das medidas cautelares alternativas".

O parágrafo único afirma ser dever do órgão emissor da decisão. Os órgãos do Poder Judiciário são belamente elencados no artigo 92 da Constituição. Sobre o significado de órgão emissor, pouco ou nada há o que interpretar. Porém, há um ponto problemático que é sobre o natural fluxo de competência. Ou, em linguagem vulgar, ao "dono" da prisão. Não do decreto, mas da prisão, no aqui e agora.

O texto subentende que quem decretou a prisão será para sempre o dono. Se a prisão foi decretada em um plantão judiciário, é o juiz plantonista que será o responsável, vez que decretou a prisão, mesmo se o custodiado já tiver tido seu processo iniciado, julgado e se encontra em grau recursal no STF (ad extremis). Com o preso em situação de execução provisória da pena. E este é um problema. Sério. Mais sério do que isso, somente um "preso sem dono", com o perdão da palavra. É o preso que, hoje, apesar da previsão legal de revisão, não a tem pois o juiz que a decretou afirma não ser mais de sua competência, o tribunal estadual afirma também já não ser mais competente, e o Superior Tribunal de Justiça se recusa a fazê-lo, alegando não ser sua atribuição.

Concordamos com Nucci com sua afirmação de que

Sob outro aspecto, quando a prisão preventiva for decretada em primeiro grau, ocorrendo a sentença condenatória e havendo recurso dirigido ao tribunal estadual ou regional, o magistrado prolator da decisão cessou a sua atividade jurisdicional. Não lhe cabe mais emitir juízos no processo, que, ademais, nem mais acompanha. Exigir que ele faça a tal revisão da prisão cautelar a cada 90 dias, quando nem mais o processo está na Vara, mas no Tribunal, cuidar-se-ia de pura formalidade. O magistrado poderia repetir automaticamente a decisão (pró-forma), sem ter novos elementos em suas mãos.

Entretanto, não podemos concordar com a conclusão alcançada pelo nobilíssimo professor de que, saindo o processo da competência originária do juiz prolator do decreto prisional, a norma não deveria ser aplicada. Tal conclusão não apenas nega vigência à lei federal (lembrando, aqui, do art. 105, III, "a" da Constituição), mas nega a garantia constitucional que se busca resguardar: que a prisão é a exceção. A ausência de limite de tempo legal para a prisão preventiva não significa que esta não tem limite, mas apenas que o limite é de outra natureza. E se o limite são circunstâncias concretas, deve-se, de ofício, periodicamente ser revisada quando a existência de tais circunstâncias que, excepcionalmente, autorizam a medida extrema, ultima ratio, do cerceamento não-penal, não fundado na culpa, mas sim em um juízo de periculosidade (ou, mais assustadoramente, de interesse... da instrução). Exigir a revisão da fundamentação para o cerceamento continuado da liberdade de um ser humano não é uma formalidade inócua. Ou, pelo menos, não deveria ser.

A solução se apresenta da seguinte forma. A competência para a revisão é do órgão que por último de manifestou no processo (já solucionando, assim, os limbos que aparecem enquanto o processo viaja, por rotas longas e tortuosas, entre os tribunais). E este órgão deve requerer as informações necessárias para esta decisão, seja para o juiz que originariamente decretou a prisão (que pode ter sido até mesmo um juiz plantonista), seja o órgão a quo, seja o juiz de piso. E, caso a resposta ao requerimento de informações não for devidamente fundamentado, revogar a prisão, pois não mais se justifica, vez que também deve-se rejeitar a tradição de "se está preso, mantenha-se preso".

Se chegamos ao ponto de que não mais se sabe o motivo da prisão, se não se é mais capaz de fundamentar a manutenção da prisão, esta não mais se justifica e, assim, deve ser revogada. Antes de tornar-se ilegal, quando enseja relaxamento.

O que não se pode aceitar são presos, sob custódia do Estado, mas sem estarem sob custódia de um órgão judiciário que seja responsável por sua prisão. Não se trata de uma questão de formalidade mas, além de uma questão constitucional, é uma questão de humanidade.

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NUCCI, Guilherme de Souza. A revisão da necessidade de manutenção da prisão preventiva. Acesso em: 30 nov. 2020.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.

Rodrigo Pedroso Barbosa

Rodrigo Pedroso Barbosa

Mestre em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, autor e advogado criminalista.

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