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O crime de denunciação caluniosa (lei 14.110/20)

Doravante, veremos como se posicionarão a doutrina e a jurisprudência a respeito desse tema.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Atualizado às 12:03

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 18, houve publicação da lei 14.110, cujo teor confere [nova] redação ao artigo 339, do Código Penal Brasileiro, que tipifica o crime de denunciação caluniosa, nos seguintes termos: 'Dar causa a` instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente:'

Na antiga redação (lei 10.028/00), o artigo 339, CPB, tipificava o crime de denunciação caluniosa, dentre outros fatos, a quem desse causa à instauração de investigação administrativa!.  Sabendo da inocência do servidor, se alguém desse causa à investigação administrativa (rótulo que alberga várias espécies de procedimentos administrativo-disciplinares) cometia, em tese, o delito de denunciação.

Percebe-se, ante a lei 14.110/20, as investigações administrativas foram excluídas do tipo penal da denunciação caluniosa, restringindo-se, agora, ao processo administrativo disciplinar, instrumento formal de apuração de ilícitos administrativos e imposição de penalidades aos servidores públicos.

No entanto, a alteração da lei não teve o efeito desejado e nem espelha a realidade. Realmente, muitas vezes, a Administração Pública, baseada em atos administrativos gerais e impessoais de autoridades superiores, em vez de instaurar procedimento formal (processo disciplinar), opta pelo    procedimento de investigações preliminares, por meio do qual a autoridade ouvirá as pessoas envolvidas, determinará diligências, como juntada e requisição de documentos etc, a fim de apurar, de forma preliminar, a presença de elementos mínimos para a configuração de ilícito disciplinar. Trata-se de uma realidade; comum, inclusive, no âmbito do Poder Judiciário.

Com efeito, nos termos da Resolução 135, de 2011, do Conselho Nacional de Justiça, especificamente nos artigos 8º a 11,  a apuração de infrações disciplinares contra magistrados inicia-se, a rigor, por meio de investigação preliminar. Possivelmente, essa seja a realidade de outros órgãos da Administração Pública.

Como o nome sugere, na investigação preliminar, a autoridade competente deverá determinar diligências, a fim de apurar os fatos; isso porque, investigar significa realizar diligências, apurar algo, indagar, pesquisar, buscar, esquadrinhar (Caldas Aulete, Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, Vol. III, p.2790, 1958). Trata-se, portanto, de expediente administrativo tão importante quanto a sindicância ou o processo disciplinar.

Assim como estes, a investigação preliminar poderá resultar danos à imagem e à honra do servidor injustamente 'acusado' da prática de infração administrativa, além dos prejuízos à imagem da Administração Pública, decorrentes da ação do denunciante.

Não bastasse isso, a alteração do artigo 339, CPB, traz  'gravame social', pois levará, por certo, à abolitio criminis (CF, art.5º, XL, art.2º, CPB), beneficiando pessoas que praticaram infração criminal contra a Administração  Pública (CPB,  Capítulo III, Título XI).

Mas há outra inconsistência na modificação da lei penal. Com efeito, a nova redação do artigo 339, do CPB, ao mencionar 'processo administrativo disciplinar', instrumento formal de apuração de ilícitos administrativos graves, exclui, em princípio,  a sindicância, expediente administrativo que serve, em muitas legislações, tanto para a apuração inicial da infração disciplinar,  quanto para a imposição de penalidades administrativas de menor gravidade.

Assim, como exemplo, nos termos do artigo 144, da lei 8.112/90 [Estatuto do Servidor Público Federal Estatutário], da sindicância poderá resultar: arquivamento do processo; instauração de processo disciplinar; aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 dias.

Basta imaginar alguém, sabendo da inocência do servidor,  imputar-lhe a prática de infração disciplinar, da qual tenha originado a instauração de sindicância pela autoridade competente, visando à apuração dos fatos e à imposição de pena administrativa de menor gravidade, nos termos determinados na legislação...!!!!! Não haverá o crime de denunciação caluniosa, porque não houve instauração de processo disciplinar contra o servidor??? Não há incongruência nisso?

Na verdade, o 'Direito Administrativo Sancionador', assim como o Direito Penal, convivem - além da analogia in bonan partem -  com a interpretação extensiva de seus termos (Heraldo Garcia Vitta, Aspectos da Teoria Geral no Direito Administrativo, p.140 e ss, Malheiros, 2001). Dessa forma, o caso concreto possibilitará verificar se o agente cometeu a denunciação caluniosa (art.339, CPB), mesmo que tenha havido instauração de sindicância, ou de investigação preliminar prevista em norma jurídica, independentemente de ter sido instaurado o processo disciplinar contra o servidor 'acusado'. 

A sindicância e a investigação preliminar, administrativa, quando previstas no ordenamento jurídico, aproximam-se da noção ou conceito de processo administrativo disciplinar; fazem parte da mesma ratio legis. Os princípios da legalidade e o da tipicidade, típicos do Direito Penal, não impedem a interpretação extensiva dos termos utilizados nessa matéria, inclusive das normas penais incriminadoras.

Pois, o intérprete não está obrigado a seguir a 'vontade' do legislador, mas a resolver as contendas à medida do contexto jurídico em que está inserida a norma (sistema, ordenamento jurídico). Como o diz Karl Larenz, citando Binding [Handbuch des Strafrechts, I, p.456], "o fim de assinalar à interpretação não é a 'vontade do legislador' mas a vontade do Direito  que 'se exprimiu na proposição jurídica como elemento de todo o sistema jurídico." (Metodologia da Ciência do Direito, p.42, 5ªed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2009, trad. José Lamego)

Curioso notar, a Lei de Abuso de Autoridade (lei 13.869/19), no artigo 27, tipifica crime, dentre outros, quando a autoridade, 'sem justa causa', instaurar investigação administrativa; no entanto, a mesma lei exclui o tipo, no caso de instauração de sindicância ou investigação preliminar, devidamente justificada. Norma jurídica confusa, muito rigorosa, que deve ser interpretada de forma menos gravosa ao agente.

Na área eleitoral, o artigo 326-A, da lei 4.737/65, incluído pela lei 13.834/19, tipifica infração criminal para quem der causa à  investigação administrativa; inclusive, a pessoa que divulgar os fatos, por qualquer meio, estará sujeito às mesmas penas do causador da investigação indevida. Talvez porque, a Justiça Eleitoral, a par da função judicial ou judicante, detém várias atribuições de natureza administrativa (função administrativa).

Na República, forma de governo adotada no Brasil, por força do artigo 1º, "caput", da Constituição Federal, mantida em plebiscito (art.2º, ADCT), vigora o princípio da responsabilidade dos atos governamentais e das pessoas em geral. 

Não vejo sentido na alteração da lei penal, pois proporcionará dúvidas e incertezas jurídicas! Doravante, veremos como se posicionarão a doutrina e a jurisprudência a respeito desse tema.

Heraldo Garcia Vitta

VIP Heraldo Garcia Vitta

Juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Advogado e Consultor. Especialização Direito Processual Civil, Civil e Empresarial (ITE, Bauru,SP). Mestre e Doutor Direito Público (PUC-SP).

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