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O (eterno) problema da extinção unilateral dos contratos de compra e venda de bens imóveis

Decisão da Min. Nancy Andrighi no REsp 1820330/SP parece "unificar" a solução, mas descuida no aspecto técnico da análise acerca da irretratabilidade dos contratos imobiliários.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Atualizado às 13:59

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

No último dia 1º de dezembro de 2020, a Terceira Turma do STJ concluiu o julgamento do REsp 1820330/SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, o qual tinha por objeto uma ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra duas empresas do mercado imobiliário.

A ação do MPSP questionava os contratos "padrões" dessas sociedades empresárias pedindo a declaração da abusividade das cláusulas resolutórias expressas - ou seja, as disposições contratuais que disciplinavam as consequências financeiras da extinção dos contratos por culpa dos adquirentes, decorrentes do inadimplemento do pagamento das parcelas devidas pela compra e venda - que determinavam a retenção de valores entre 50% e 70%, além de pedir a condenação dessas empresas na obrigação de fazer consistente na modificação dos seus contratos "padrões" para permitir a desistência imotivada e unilateral dos consumidores, bem como definir a limitação da retenção dos valores de restituição, em ambas as hipóteses (resolução por inadimplemento e desistência imotivada) em 20%, incluindo-se, neste montante, os valores referentes à comissão de corretagem, taxas administrativas e demais despesas com a confecção do contrato.

No julgamento, a Terceira Turma repetiu o mesmo erro que a jurisprudência brasileira, de forma geral, vem cometendo ao processar e julgar as ações que tratam de extinção de contrato de compra e venda de bens imóveis: não cuidou de distinguir, tecnicamente, o que caracteriza uma resolução culposa e o que caracteriza uma simples desistência - denominada de resilição unilateral - e, a partir da delimitação temática destes institutos, analisar a base legal que disciplina, no campo do Direito Privado, o regime jurídico de cada um dos institutos.

Assim, o acórdão proferido pela Turma utilizou, indistintamente, os termos resolução, desistência e resilição para dar-lhes a mesma consequência prática.

Em resumo, a Min. Nancy Andrighi, fazendo um apanhado cronológico dos precedentes das Turmas de Direito Privado - ou seja, da Segunda Seção - do STJ sobre o tema, definiu que a orientação mais atual em vigência no STJ é no sentido de que nos contratos firmados antes da Lei 13.786/2018, o percentual de retenção pela extinção do vínculo contratual de compra e venda de imóveis por culpa do consumidor é de 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas, adequado e suficiente para indenizar o construtor pelas despesas gerais e pelo rompimento unilateral ou pelo inadimplemento do consumidor, independentemente das circunstâncias de cada hipótese concreta.

Ao utilizar a expressão "rompimento unilateral" e dissociá-la do "inadimplemento do consumidor", a Min. Nancy Andrighi dá a entender que, tanto na desistência (resilição), quanto na resolução culposa, o contrato deve ser encerrado e a solução prática adequada e razoável, tomando em conta o prejuízo causado ao vendedor (empresa), será reter 25% (vinte e cinco por cento) dos valores até então pagos, retenção que já contemplaria as despesas administrativas associadas à operação de compra e venda, a exemplo da comissão de corretagem.

Mais uma vez, o STJ não dedicou uma só linha das razões de decisão apresentadas para aprofundar o debate no campo da desistência unilateral, fazendo o confronto entre as disposições dos artigos 473 do Código Civil, 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79, com os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, em especial os artigos 53 e 51, II e IV, deste diploma legal.

Esse aprofundamento é importante para empregar "ajustes finos" nas decisões sobre a matéria, especialmente considerando que os contratos de compra e venda de bens imóveis nos regimes de incorporação e loteamento são IRRETRATÁVEIS por força de lei (ope legis), de forma que a incidência dessas normas, que protegem o mercado imobiliário, dando segurança jurídica às operações realizadas neste segmento, não podem ser afastadas a partir de um raciocínio de revisão contratual.

De fato, o texto legal vigente não pode ser declarado abusivo à luz do CDC. No máximo, o julgador poderá:

1) considerar que o legislador revogou, ainda que tacitamente, os artigos 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79, a partir da edição do CDC, ou;

2) afastar a aplicação desses dispositivos, no caso concreto julgado, em virtude do emprego de técnica de solução do conflito aparente de normas.

Nesta segunda hipótese, todavia, o julgador deverá analisar a antinomia - o conflito, a contradição legal - entre os textos dos dispositivos da Lei de Incorporações, da Lei de Loteamentos e do CDC, a partir do emprego do artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro - LINDb.

Nesse contexto, respeitando as posições em contrário, penso que a par do artigo 2º, § 2º, da LINDb, os artigos 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79 devem prevalecer, diante da especialidade das legislações mencionadas, em relação ao artigo 51, II e IV, do CDC, que se encontra em uma Lei Geral de Consumo, pelo menos quando confrontada com os diplomas imobiliários.

E assim concluo pela simples constatação de que a análise da especialidade de um ato normativo passa pelo referencial adotado.

A princípio, no âmbito do Direito Privado, ao se discutir relações contratuais civis, temos no Código Civil uma lei geral. Dessa forma, quando comparamos à legislação codificada civil, temos que a Lei de Loteamentos e a Lei de Incorporações Imobiliárias e o CDC se qualificam como leis especiais: as primeiras são leis especiais imobiliárias, que se destinam a reger as relações contratuais civis que tenham por objeto loteamentos, desmembramentos e incorporações; a segunda, uma lei especial consumerista, regendo as relações contratuais civis de consumo.

Contudo, quando comparamos essas legislações especiais entre si, precisamos verificar dentre tais documentos legislativos qual tem o maior grau de abstração e generalidade. E, nessa perspectiva, é fácil notarmos que o CDC se revela como uma Lei Geral de Consumo, pois pretende disciplinar toda e qualquer relação civil contratual consumerista. Já as Leis de Loteamento e Incorporação Imobiliária se limitam a disciplinar as relações contratuais civis de consumo que tenham por objeto a aquisição de unidades loteadas, desmembradas ou integrantes de incorporações imobiliárias.

Dessa forma, consigo facilmente concluir que: sendo o CDC uma lei especial e anterior em relação ao CC/02, mas geral e posterior em relação às leis imobiliárias, nos termos do artigo 2.º, § 2.º, da LINDb, suas normas não revogam nem modificam às normas extraídas das Leis de Loteamento e Incorporação Imobiliária, e aplicam-se apenas no que não for incompatível com as disposições originárias das leis 4591/64 e 6.766/79.

Mas, afinal, qual, portanto, a solução que proponho como divisor de águas no julgamento de ações que visem discutir extinção de contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis, irretratáveis por força de lei?

Pois bem:

a) se a pretensão for de simples desistência, deverá ser julgada improcedente;

b) se a pretensão for de resolução culposa, e tenha sido de iniciativa do vendedor, deverá ser julgada conforme a súmula 543 do STJ, admitindo-se, aqui, que a retenção seja dimensionada conforme sugere a jurisprudência da Segunda Seção: retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores;

c) para ações rescisórias de iniciativa do consumidor que tenham como causa de pedir a alegação de que não possuem mais condições de pagar as parcelas e que, por isso, já se encontram inadimplentes, o contrato poderá ser resolvido não por inadimplemento, mas, sim, por onerosidade excessiva a partir do artigo 478 do CC, hipótese na qual o julgador deverá ter o cuidado de aferir se o consumidor fez prova concreta de sua condição de insuportabilidade financeira (art. 373, I, CPC) e, ainda, permitir que o vendedor possa redimensionar as prestações contratuais - desde seja razoavelmente possível, conforme condições do consumidor adquirente - e reestabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, evitando, com isso, a resolução, o que está autorizado pelo artigo 479 do CC, e se alinha, inclusive, ao princípio da conservação dos negócios jurídicos.

Com as soluções acima propostas - as quais são extremamente simples - as decisões proferidas em ações desse gênero ganharão maior técnica e juridicidade, saindo do que aprendi a denominar "julgamento conforme o CDC" para aplicar concretamente as normas de Direito Privado que disciplinam os regimes de extinção contratual admitidos pela legislação civilista.

Arthur César Dantas Silva

Arthur César Dantas Silva

Advogado militante na área de Direito Imobiliário, Consumidor e Tributário. Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - IBET.

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