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Princípio da intervenção mínima da LLE: aportes constitucionais e hermenêuticos

O conflito entre a liberdade individual e o interesse coletivo é o mais renitente e antigo que as ciências humanas já se debruçou, havendo inúmeros embates que ao fundo se percebe que não passam de outra face do embate, por que não dizer, eterno, entre a liberdade individual e o interesse público.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Atualizado às 09:26

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução 

O conflito entre a liberdade individual e o interesse coletivo é o mais renitente e antigo que as ciências humanas já se debruçou, havendo inúmeros embates que ao fundo se percebe que não passam de outra face do embate, por que não dizer, eterno, entre a liberdade individual e o interesse público.

Com a entrada em vigor da lei 13.874/2019, batizada de Lei da Liberdade Econômica (LLE), um "novo" conflito desta jaez surge: entre o princípio da intervenção mínima e o da função social dos contratos.

Talvez, salvo melhor juízo, seja no direito constitucional e na hermenêutica jurídica, lugares habituais dos constantes conflitos entre princípios jurídicos igualmente relevantes, que encontraremos as respostas (sempre precárias e mutáveis) que precisaremos para os próximos anos. Desta forma, serve o presente para colacionar alguns humildes aportes para a problemática posta.

Aportes constitucionais 

A relação entre o direito privado e a constituição passou ( e está passando) por constantes reformulações. Conforme se depreende da didática de Carlos Eduardo de Oliveira1, podemos concluir que a divergência surge quando é questionado se a incidência de princípios constitucionais, pode ou não interferir na ratio essendi do direito privado, reduto da liberdade do cidadão, a exemplo da liberdade de contratar.

Entretanto, s.m.j, referido impasse parte do pressuposto que as normas constitucionais são necessariamente intervencionistas, o que não nos parece ser correto.

A bem da verdade, as constituições modernas (como a nossa), em sua maioria, são compostas por um complexo arranjo de princípios ( não valores) , por vezes (aparentemente) incompatíveis, o que as classificam como ecléticas.

Além do mais, a influência da constituição nas normas do ordenamento jurídico, não se deu exclusivamente eficácia horizontal dos direitos fundamentais (em abandono a doutrina do state action), mas especialmente pelo reconhecimento de que a constituição é o único eixo gravitacional que as normas jurídicas privadas ou não, devem se sujeitar.

A supremacia da constituição, bem como sua eficácia irradiante, são elementares em nosso sistema jurídico e que o torna coeso, sendo estes elementos ainda indispensáveis, pela ausência de teorias diversas, com base teórica suficiente para testagem.

Assim, não é a interferência constitucional que pode afetar o direito privado e por consequência a economia, mas a sua leitura miópe, pois em inúmeros preceitos a constituição possui um ideal intervencionista (Ex. igualdade substancial, traduzida como equilíbrio contratual no CC)  e em outros, um viés liberal ( Ex. direito geral de liberdade e proteção da confiança, traduzidos na ordem privada como autonomia privada e boa-fé objetiva, respectivamente).

Vale dizer, ainda que de fato as normas constitucionais devem ser intermediadas politicamente para ingressarem na ordem privada, não podemos (mais) olvidar que a constituição, igualmente é em prol da não- intervenção em inúmeros dispositivos, que dão guarida ao novel princípio da intervenção mínima, que com a LLE, é apenas (necessariamente) revitalizado (e especializado), haja vista a excessiva valorização dos ideais sociais da constituição ( por vezes interpretados de forma ad hoc), que por sua vez não perdem credibilidade, pela coexistência constitucional.

Em suma, incorre em contradição performativa o intérprete que afirma ( implicitamente ou não) o caráter necessariamente intervencionista de princípios constitucionais, pois os direitos fundamentais, em sua origem (1ª dimensão) e atualmente, são primordialmente cláusulas restritivas do poder estatal, em prol da liberdade e responsabilidade do cidadão.

Segue alguns exemplos, de que a constituição, igualmente, é um reduto de liberdades. A começar pelo direito geral de liberdade, previsto no caput do Art. 5º da CF/88. Referido direito representa a norma geral da não intervenção, adotada por  nós na vertente de John Stuart Mill, que articulou o princípio do dano em On Liberty, onde argumentou que "o único propósito pelo qual o poder pode ser exercido com razão sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros".

Além do mais, temos o princípio constitucional implícito2 da subsidiariedade, que decorre da livre iniciativa e da propriedade privada ( Art. 170, caput e Inc. II e  da CF/88), que prega não só pelo respeito à liberdade econômica, mas pela preferência por ela3, dado o ganho ( coletivo, inclusive) que ela naturalmente traz, conforme reconhecido no parágrafo único do Art. 49-A do CC.

Por fim, talvez com a vigência da LLE, seja o momento de atribuirmos a cláusula do devido processo legal substantivo ( Art. 5º, Inc. LIV da CF/88) o significado que a Suprema Corte Americana já proporcionou no passado (p. ex. Fletcher vs Peck - 1810)), posto que a indevida interferência estatal no âmbito negocial, por vezes deságua em uma privação de bens( imateriais ou não), sem a observância das práticas mercado, que em regra pregam pela manutenção do pacta sunt servanda.

Aportes hermenêuticos 

Partindo para o conflito entre o princípio da intervenção mínima e a função social à luz da hermenêutica, é importante frisar que a doutrina se dedicou ao tema no corrente ano, se dividiu, entre os que chamam a função social de "utopia socializante"4 e os que chamam a intervenção mínima de um preceito "retórico e ideológico"5.

Pois bem. Conforme bem delineado por Anderson Schreiber6 e  pedindo todas as venias, referida polarização doutrinária, em que pese possa ser valiosa, não esclarece como se dará solução, ainda que de forma apriorística, do conflito entre tais princípios, ambos constitucionalmente positivados, o que causa uma insegurança jurídica, desnecessária em tempos que tais princípios serão colocados à prova, pelos inúmeros contratos judicializados por decorrência da pandemia.

Referida discussão se dá pela confusão de toda compreensível, entre valores e princípios, que nos faz esquecer que em uma ordem jurídica eclética e democrática, descabe afirmar a prevalência, ou melhor, a preferência de um sobre os outros. A norma é a norma, gostemos dela ou não.

Sobre a diferença entre princípios e valores, leciona Streck7, que se admitíssemos a sinonímia, estaremos (estamos) abrindo as comportas para que o intérprete escolhesse qual aplicar, de acordo com sua preferência, ignorando o filtro democrático do direito, realizado pelo legislador, que delimita e unifica os valores que compartilhamos.

Em outras palavras, não é dado ao intérprete dar o sentido que quiser ao princípio, ou escolher o que prefere, é preciso, à luz dos preceitos da hermenêutica, achar uma solução para os conflitos.

Em direito, no atual estado da arte, o conflito entre princípios é fortemente influenciado pelo particularismo moral, que defende a inexistência de de prevalência apriorística entre um princípio sobre o outro (ao revés da polarização doutrinária mencionada). Trata-se do postulado da proporcionalidade, elaborado por Robert Alexy8.

Dito isso, é fato que não se pode permitir uma prevalência apriorística de um princípio contratual em detrimento do outro, haja vista a sua coexistência normativa, bem como a própria natureza de princípio (os da LLE, inclusive), o que nos remete à sua aplicação conforme as possibilidades fáticas e jurídicas9.

Assim, o caput e o parágrafo único do Art. 421 do CC, merecem uma interpretação conforme a constituição, para que seja expurgada qualquer conclusão de que há a prevalência em abstrato de um princípio em detrimento do outro10.

Indagações sobre quando a intervenção estatal se justifica, portanto, devem ser verificadas em concreto11, entretanto, forte no magistério doutrinário de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto12, alguns critérios objetivos prévios podem ser elencados, pois a depender da desigualdade fática entre os contratantes, da natureza do contrato ( se existencial ou não), bem como da essencialidade dos bens em jogo, a intervenção poderá ser maior ou menor.

Ademais, o princípio da intervenção mínima não pode funcionar com um coringa pseudo argumentativo para se negar intervenções contratuais legítimas à luz das demais normas do direito contratual, pois referido princípio, em que pese possa parecer, não se presta a propiciar uma negativa de jurisdição.

No mais, a intervenção mínima não incide em casos de proteção externa do crédito, pleiteáveis, inclusive com base na função social ( Enunciado nº 21 do CJF/STJ), bem como nos casos de inadimplência, haja vista a vedação à autotutela em nosso ordenamento jurídico.

A título de arremate, é preciso considerar igualmente que em concreto, os princípios podem até ser harmoniosos, conforme igualmente defende o professor Schreiber, no supracitado artigo, o que à luz do princípio da harmonização ou da concordância prática, deve ser considerado. Ex. mera redução de disposição testamentária, ao invés de sua nulidade.

Referida conclusão igualmente encontra guarida no fato de que a locução "mínima" pode ser interpretada tanto quanto um mandamento de não-intervenção, como uma interferência estatal limitada.

__________

1 OLIVEIRA. Carlos Eduardo Elias de. Constitucionalização e Recivilização Constitucional do Direito Civil: um mapeamento atual. 2020. Disponivel aqui. Acesso em 21/12/2020.

2 Referido princípio possivelmente se tornará expresso, se aprovada a proposta de "Reforma Administrativa".

3 Nesse sentido: BERCOVICI, Gilberto. O princípio da subsidiariedade e o autoritarismo. Disponível aqui. Acesso em 22/12/2020.

4 RAMOS, RENATA. O princípio da intervenção mínima contra a retórica da "função social do contrato".  p. 442 - 445. in: CRUZ, André Santa Cruz. DOMINGUES, Juliana Oliveira. GABAN, Eduardo Molan. Declaração de Direitos de Liberdade Económica: Comentários à Lei nº 13.8774/2019. JUSPODIVM. 2020. p. 417-425.

5 TARTUCE, Flávio. Direito Civil . Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie - Vol. 3. Grupo GEN, 2020. p. 77.

6 SCHREIBER, Anderson. Princípios constitucionais vs liberdade econômica: a falsa encruzilhada do direito contratual brasileiro.MIGALHAS. 2020.  Disponível aqui. Acesso em 22/12/2020.

7 STRECK, Lênio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Casa do Direito. 2020;  441-442.

8 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. MALHEIROS. 2ª Ed. 2015. p. 95.

9 Em sentido semelhante : ROSENVALD, Nelson. A lei da liberdade econômica e a necessária (re)conciliação entre a autonomia privada e a função social do contrato. MEU SITE JURÍDICO. 2020. Disponível aqui. Acesso em 1/9/2020.

10 Em sentido semelhante : FRADERA, Véra Maria Jacob de. LEONARDO, Rodrigo Xavier et al. Comentários a Lei de Liberdade Econômica: Lei 13.874/2019. RT. 2019. p. 227.

11 Op. cit: p. 36.

12 Op. cit. p. 555.

Edmar Cézar Franco Ferreira

Edmar Cézar Franco Ferreira

Advogado no escritório Silveira e Boaventura Advogados Associados. Especialista em Direito Público. Membro das Comissões Jurídicas das Jornadas do CJF/STJ.

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