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Autonomia da vontade como paradigma das novas relações de trabalho

A reforma trabalhista providencia a atualização da CLT mediante a criação de modelos de trabalho mais dinâmicos e novas formas de negociação direta entre empregado e empregador.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Atualizado em 15 de janeiro de 2021 14:37

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Com a entrada em vigor da lei 13.467/20171, ora conhecida como "reforma trabalhista", tem-se a mudança de paradigma do modelo estrutural trabalhista, que existia com base na aplicação quase absoluta do princípio da proteção do trabalhador, e a ampliação da autonomia da vontade, de modo que empregado e empregador passam a poder negociar individualmente sobre diversos temas.

Como expoente principal desse avanço da autonomia da vontade nos contratos de trabalho, tem-se a liberdade de contratação trazida pelo art. 444, parágrafo único da CLT, o qual criou um modelo de contrato de trabalho com livre estipulação de cláusulas entre empregado e empregador, com a mesma eficácia de lei e preponderância sobre acordos e convenções coletivas.

A partir do dispositivo mencionado, surgiu a figura do "empregado hiperssuficiente", o qual pode negociar diretamente com seu empregador sobre as hipóteses previstas no art. 611-A da CLT - jornada de trabalho, horas extras, banco de horas, troca do dia do feriado, etc. -, desde que tenha diploma de ensino superior e perceba salário mensal igual ou superior a 2 vezes o limite máximo do Regime Geral da Previdência Social, o que perfaz atualmente cerca de R$ 12.202,122.

Na prática, a legislação trabalhista passa a ter simultaneamente duas figuras de empregado: o empregado hipossuficiente, que depende da atuação sindical para negociar com o empregador sobre os temas elencados no art. 611-A da CLT; e o empregado hiperssuficiente, que pode negociar diretamente com o empregador as hipóteses trazidas pelo art. 611-A da CLT.

Certo é que, embora grande parte das relações de emprego sejam caracterizadas pelos requisitos da pessoalidade, subordinação jurídica, onerosidade e habitualidade, ao passar dos anos esses pilares vêm sendo mitigados pelos novos modelos de trabalho, nos quais o empregador não possui mais tanto controle para subordinar o empregado a um contrato de trabalho inflexível, razão pela qual se começa a repensar a posição de hipossuficiência e vulnerabilidade do empregado.

Um exemplo clássico disso são aqueles empregados que exercem cargo de gestão dentro de determinada empresa, uma vez que o empregador não controla sua jornada, bem como o empregado não está subordinado ao empregador, visto que as atribuições de fiscalização, mando, admissão e representação o colocam em posição de equilíbrio com o empregador, com condições de negociar.

Outro exemplo claro e amplamente aplicado durante a pandemia do covid-19 é o teletrabalho, no qual o empregado passa a exercer os serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, sem o controle de jornada.

A verdade é que o instituto do teletrabalho quebra as ideias tradicionais de habitualidade e subordinação, uma vez que o empregado não presta o serviço de forma contínua, bem como, muitas vezes, o empregador não tem condições de dirigir e fiscalizar a prestação do serviço pelo empregado, o qual passa apenas a receber as tarefas e entregar o resultado para o empregador.

A partir disso, a autonomia da vontade aparece naturalmente para reger esse novo modelo, que não se enquadra na relação comum empregado-empregador prevista nos artigos 2º e 3º da CLT , como pode se observar do art. 75-C, §1º da CLT, que prevê que "poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes, registrado em aditivo contratual".

Outrossim, o art. 75-D da CLT ratifica a possibilidade de negociação, haja vista que possibilita ao empregado e ao empregador disporem sobre a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como eventual reembolso de despesas arcadas pelo empregado.

Ato contínuo, cabe analisar o instituto do contrato de trabalho intermitente, modelo de trabalho no qual também se verifica a mitigação dos requisitos do vínculo de emprego atinente à habitualidade, na medida em que o empregado não presta serviço de forma contínua, mas varia entre períodos de atividade e inatividade, motivo pelo qual o empregado receberá apenas pelo período da prestação de serviços.

Certo é que no contrato intermitente também pode se visualizar a autonomia da vontade, posto que o empregado tem a opção de aceitar ou não a oferta de prestação de serviços, bem como poderá optar por prestar serviços a outros contratantes durante o período de inatividade, conforme se depreende do art. 452-A, §2º e §5º, da CLT.

Além disso, o art. 442-B veio formalizar a contratação de autônomos e afastar o risco de configuração de vínculo de emprego, na medida em que estabeleceu que as empresas podem celebrar contratos com autônomos, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, sem que o contratado possua a qualidade de empregado.

Outrossim, a reforma trabalhista trouxe a possibilidade de instauração de banco de horas por acordo individual entre empregado e empregador, o que antes dependia de negociação entre empresa e sindicato, criando-se um regime de compensação de horas extras sem acréscimo salarial, desde que eventuais horas extraordinárias realizadas pelo empregado sejam gozadas dentro de 6 (seis) meses, conforme art. 59, 5º, da CLT.

A verdade é que os novos modelos de trabalho têm cada vez mais se afastado do conceito de empregado previsto no art. 3º da CLT, oportunidade na qual a autonomia da vontade aparece como forma alternativa para apresentar respostas que a legislação trabalhista de 1943 não oferece, já que se encontra centrada na tradicional forma de relação empregatícia.

Revela-se pouco razoável considerar que profissões de natureza intelectual, literária, artística, técnico-artística, da tecnologia da informação (TI); das ocupações regulamentadas de nível superior; ou mesmo das funções gestoras que mobilizam diferentes linhas de especialidade ou formação universitária, possuem igual grau de subordinação e vulnerabilidade quando comparados aos empregados tradicionais, ora caracterizados no art. 3º da CLT.

Fato é que a sociedade caminha para a formação de um mercado de trabalho composto por trabalhadores "ultraqualificados" e com "superespecialidades", os quais não encontram garantias e regulamentação nas regras existentes na atual legislação trabalhista brasileira, não restando alternativa senão se socorrer dos modelos autônomos, os quais possibilitam a negociação de cláusulas e condições não abarcadas pela CLT.

Em busca da modernização e de soluções alternativas, a reforma trabalhista e as normas editadas durante a pandemia do covid-193 - acordo de redução proporcional de jornada e salário, e acordo de suspensão temporária do contrato de trabalho - quebraram paradigmas, no sentido de ampliar a negociação individual de cláusulas entre empregado e empregador, enquanto anteriormente esse recurso era majoritariamente destinado às entidades sindicais por meio da negociação coletiva.

Portanto, a autonomia da vontade vem crescendo como meio para regular modelos de trabalho que a legislação trabalhista emoldurada em 1943 não é capaz de atender completamente, sendo certo que essa autonomia não se encontra presente apenas para o empregado hiperssuficiente, mas também pode englobar outros empregados, a depender das nuances do modelo de trabalho pactuado entre empregado e empregador.

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Lorena Leal Dina

Lorena Leal Dina

Advogada trabalhista empresarial no escritório Luzone Legal, bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Novo Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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