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A comunicação de venda do CRV pelos cartórios: uma prática antijurídica que deve ser abolida

Este artigo analisa as condições jurídicas desse negócio jurídico e seus efeitos nocivos aos usuários.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Atualizado às 14:34

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Este artigo visa a trazer um relato sobre os perigos concretos de uma transmissão de comunicação apenas com a assinatura do vendedor e sua absoluta nulidade enquanto negócio jurídico. Como é conhecido de todos, a transferência veicular é feita através do preenchimento do CRV - Certificado do Registro do Veículo, com os dados do novo comprador e a assinatura com firma reconhecida por autenticidade de ambos.

O órgão de trânsito é muito exigente quanto à lisura do documento CRV, tanto que, se apresentar qualquer rasura ou inconsistência no preenchimento, fica o proprietário obrigado a solicitar a emissão de novo CRV. Além da rigorosa lisura no preenchimento das informações, há a necessidade de se reconhecer a firma por autenticidade de ambos, vendedor e comprador.1

Além dessas exigências, o signatário deve assinar também um Livro de Firma que contém todos os dados referentes àquela assinatura, como a natureza do documento, dados específicos e numeração do selo utilizado. Este Livro pertence ao acervo permanente do cartório e por meio dele podem-se localizar todas as firmas por autenticidade feitas em determinada serventia pelo signatário. Neste Livro de Firmas, além da assinatura do comparecente, há referências aos dados do negócio jurídico e à indicação do selo utilizado. Em São Paulo, por exemplo, há dispositivo expresso nas Normas Extrajudiciais2 sobre essas exigências:

185.1. No reconhecimento da firma como autêntica, o Tabelião de Notas deve exigir que o signatário assine o livro a que se refere o item 184, com indicação do local, data, natureza do documento exibido, do número do selo utilizado e, ainda, se apresentado Certificado de Registro de Veículo - CRV visando à transferência de veículo automotor, do número do Registro Nacional de Veículos Automotores - RENAVAM, do nome do comprador, do seu número de inscrição no CPF e da data da transferência.3

Com efeito, todas essas exigências feitas às firmas por autenticidade se prestam a atribuir maior segurança jurídica ao negócio jurídico realizado entre as partes, e, de fato, lhe conferem.

Pois bem, toda essa exigência se justifica para prover o ato de máxima licitude e revesti-lo de segurança jurídica. Porém, toda essa segurança pode ser rechaçada pela exigência de comunicação de venda feita pelos cartórios de notas, vou explicar.

No que tange à transferência veicular, há regulação específica pela Coordenadoria da Administração Tributária do Estado de SP. A transferência veicular é regulada pela Portaria CAT 90, de 2014, com diversas alterações posteriores, que regula o Art. 1º do Decreto Estadual de SP 60.489, de 23 de maio de 2014. Segundo a Portaria:

Art. 1º O notário localizado no Estado de São Paulo, relativamente aos atos que realizar de reconhecimento de firma em transações que envolvam a transferência de propriedade de veículos, deverá enviar, à Secretaria da Fazenda, por meio do endereço eletrônico http://www.fazenda.sp.gov.br/cartorios/:
(...)
II - cópia autenticada e digitalizada, frente e verso, do Certificado de Registro de Veículos preenchido e com a firma reconhecida por autenticidade do transmitente/vendedor ou, se for o caso, do transmitente/vendedor e do adquirente, observado o disposto no § 2º.4

Nessa Portaria reside todo o problema. A Portaria exige que os cartórios de notas de SP realizem a transmissão da comunicação de venda em até 72 horas do reconhecimento de firma. Esta comunicação é transmitida por meio do site da SEFAZ/SP. Inclusive é muito elucidativo mencionar isso, pois a crença geral é de que os cartórios comunicam a venda ao DETRAN, o que não é verdade.

Mas, qual seria o problema da transmissão de comunicação de venda pelos cartórios? O problema é que a Portaria exige que os cartórios comuniquem a venda de um negócio jurídico imperfeito. Exige-se do cartório a comunicação da venda mesmo que o recibo não esteja assinado pelo comprador, bastando apenas estar preenchido com seus dados e assinado apenas pelo vendedor. No site do DETRAN SP há a seguinte informação:

Aviso importante!

Você não precisa mais ir ao Detran.SP para fazer a comunicação de venda.
Desde 2014, após reconhecer a firma do vendedor no documento de compra e venda, o cartório envia as informações relativas à venda do veículo à Secretaria da Fazenda e ao Detran.SP.
Verifique a inclusão da comunicação de venda no cadastro do veículo na área de Acompanhamento de serviços (clique aqui). A informação constará no portal do Detran.SP em até 72 horas.
Se você não conseguiu fazer a comunicação de venda pelo cartório5

A informação acima está ostensivamente publicada no site do DETRAN/SP e é bastante clara ao afirmar que a partir da comunicação de venda, com apenas a assinatura do vendedor, a responsabilidade será do comprador, que sequer assinou o CRV. Outro aspecto interessante sobre essa nota é que os tabeliães não fazem nenhuma comunicação ao DETRAN, apenas à Secretaria de Fazenda.

Do ponto de vista jurídico, à luz do que estabelece a Teoria dos Negócios Jurídicos, simplesmente não há nenhum negócio jurídico estabelecido em uma situação dessas, pois falta um requisito fundamental que é a assinatura do comprador.

Segundo a Escada Ponteana o negócio jurídico apresenta 3 níveis: a existência, a validade e a eficácia. No caso, pode-se afirmar que sequer há EXISTÊNCIA, pois não há agente, seja capaz ou incapaz:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz;6

Além da ausência do agente, manifesta pela ausência da assinatura, há o requisito legal da forma dessa assinatura, por autenticidade.

Incrivelmente, estamos diante de um negócio jurídico sem validade e existência que gera eficácia! É de fazer Pontes de Miranda rolar no caixão, já que, segundo a Teoria dos Negócios Jurídicos, esse ato é NULO. Malgrado seja NULO, gera eficácia!

Reparem que a nulidade não admite convalidação. Então, pode-se questionar o seguinte: se o comprador, a posteriori assinar e reconhecer firma no CRV estaria ratificando o ato de transmissão anterior? A resposta requer um pouco de atenção.

Considerando-se o exemplo no qual o vendedor assinou primeiro e o comprador a posteriori, haverá 2 comunicações de venda pelo cartório que fez a firma: a comunicação de venda feita pelo cartório de um CRV sem a assinatura do comprador; e a comunicação de venda feita com ambas as assinaturas. No primeiro caso, o negócio jurídico é inexistente por ausência do agente e, como ato nulo, não se convalida com a transmissão posterior. No segundo caso, o negócio jurídico é válido e deve gerar efeitos ex nunc, ou seja, a partir da comunicação, não atingindo o ato anterior. Isto significa na prática que a responsabilidade do novo comprador se inicia a partir da sua assinatura com firma reconhecida e adquire efeitos erga omnes a partir da comunicação do cartório em prazo de até 72 horas.

Todavia, isso não é o que ocorre. Pela Portaria, o ato anterior, feito sem a assinatura do comprador já gera efeitos, sendo ratificado pela posterior comunicação com efeitos ex tunc à data da primeira comunicação.

Sendo assim, de acordo com a Portaria, a eficácia jurídica é alcançada pela transferência da comunicação mesmo sem assinatura do comprador, a partir da qual se geram alguns efeitos. Há de se ressaltar que a comunicação da transmissão de venda não gera os efeitos da transmissão da propriedade, mas gera outros efeitos colaterais na medida em que o responsável pelo veículo será, a partir de então, o novo responsável pela informação do vendedor.

Então, se por exemplo, uma pessoa que trabalhe profissionalmente como motorista, como um caminhoneiro, que está sujeito a receber muitas multas com riscos concretos de suspensão do seu direito de dirigir, pode se aproveitar dessa brecha e preencher o CRV de seu caminhão com o nome de um comprador, sem que esse comprador sequer saiba e, a partir do reconhecimento de sua firma, aquele novo proprietário, que não tem conhecimento do uso de seu nome, será o responsável a partir de então.

Fora o dolo de fraudar tributos, há situações de absoluta boa-fé, nas quais simplesmente, o comprador desiste de fazer a compra e, portanto, não assina o recibo.

Seja como for, independentemente das implicações práticas que são nefastas, a comunicação de venda com a assinatura apenas do vendedor representa um negócio jurídico nulo além de trazer riscos concretos aos usuários.

Ao invés de o cartório promover a segurança jurídica, promove insegurança. Vale dizer nesse sentido que a atividade desempenhada pelos Titulares de cartório é vinculada, não deixando margem para decisionismo do notário. Não tem como se optar pela não transmissão de uma comunicação de venda sem assinatura do comprador simplesmente porque há norma administrativa determinando essa conduta aos notários. E assim tem sido feito no Estado de São Paulo.

Pode-se concluir que talvez, a Portaria tenha sido elaborada por gestores e não por juristas. Só tem essa explicação.

______ 

1- O reconhecimento de firma pode ser por semelhança, que não exige o comparecimento do signatário em cartório, e por autenticidade, que exige seu comparecimento pessoal munido de documentos originais de identificação.

2- "Normas Extrajudiciais" são a normativa que regula a atividade cartorária. Todos os Estados da Federação possuem suas Normas reguladoras da atividade cartorária. Essas Normas são produzidas pela Corregedoria Geral de Justiça dos Tribunais de Justiça dos Estados. Em SP, as Normas são o Provimento 58/89 CGJ.

3- Item 185.1., Cap. XVI, Provimento 58/89 CGJ.

4- Portaria CAT 90 de 22/07/14.

5- FONTE: DETRANSP. Disponível aqui.. Acessado em 22 de maio de 2020.

6- Código Civil. Lei 10.406/02.

Mariangela Ariosi

Mariangela Ariosi

Tabeliã e Registradora SP, Mestre em Direito UERJ e Doutorando em Direito PUC/SP.

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