MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Perícias de Agrimensura requeridas pelo TJ/SP

Perícias de Agrimensura requeridas pelo TJ/SP

São duas reintegrações de posse para cujo deslinde foi nomeado um engenheiro civil e um engenheiro mecânico, respectivamente.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Atualizado às 11:12

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em matéria de prova pericial é necessário que haja uma relação de adequação entre a formação do perito e o objeto da perícia sob pena de o laudo se transformar numa mera opinião particular, sem base científica alguma: ela deixa de ser prova técnica. Assim, quando o art. 156 do CPC/15 diz que "o juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico", deve-se entender que o perito deve ter conhecimento específico na questão de fundo, objeto da causa. É o que determina o art. 465 da lei processual: "O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia". No caso da Engenharia isto é particularmente importante porque, ao contrário do Direito ou da Medicina (profissões de formação generalista), a Engenharia é repartida em dezenas de modalidades profissionais (cerca de 50), com formação e atribuições próprias e diferenciadas.

Tal entendimento ficou claro em duas recentes decisões do TJ/SP, uma da 14ª Câmara de Direito Privado e outra da 3ª Câmara de Direito Público. São duas reintegrações de posse para cujo deslinde foi nomeado um engenheiro civil e um engenheiro mecânico, respectivamente.

1. A primeira decisão é datada de 7 de outubro de 2020 (feito 1008274-33.2017.8.26.0068). Apreciando recurso de apelação, em acórdão relatado pelo desembargador Régis Rodrigues Bonvicino o Tribunal anulou sentença da comarca de Santana do Parnaíba que julgara procedente ação possessória. Ocorreu o seguinte: numa ação de reintegração de posse, discute-se a correção ou incorreção de georreferenciamento de imóvel rural que teria avançado sobre a propriedade lindeira. O autor alega que o georreferenciamento feito pelo requerido, seu vizinho, invadiu a área correspondente a sua plantação de eucaliptos, pedindo a reintegração de posse já que está sendo impedido de ingressar nela. Já o requerido - uma empresa mineradora - diz que tal área faz parte de seu imóvel e, logo, a madeira lhe pertence. O objeto litigioso, portanto, é uma área rural de mais de 60 hectares, "em região precariamente demarcada pelas matrículas confrontantes", como ressalta o acórdão.

Para deslinde da questão fática, porém, foi nomeado perito com formação em Engenharia Civil e não em Engenharia Cartográfica e de Agrimensura, mesmo o feito envolvendo transcrições da década de 1930 e que se valem de "referências imprecisas". Editada com base na lei 5.194/66, a Resolução 1095/17 do CONFEA - Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, que discrimina as competências do engenheiro cartógrafo e de agrimensura, diz que elas envolvem: "levantamentos topográficos, batimétricos, geodésicos e aerofotogramétricos; sensoriamento remoto; loteamento, desmembramento e remembramento; agrimensura legal; elaboração de cartas geográficas e locações de obras de engenharia" (art. 2º). Já as atribuições do engenheiro civil são fixadas, em grandes linhas, pela Resolução CONFEA nº 1048/13 e mostram-se muito diversas e com enfoque bem distinto.

Portanto, pela simples comparação das atribuições, é evidente que um profissional com formação em Engenharia Civil não será aquele profissional com adequação específica para atuar em perícia que cuida de disputa sobre a propriedade de "trecho lindeiro entre os imóveis rurais confrontantes". Tal atribuição é própria de engenheiros agrimensores, como está claro no campo competencial acima indicado: a atuação deles se volta exatamente ao aperfeiçoamento do princípio registral da especialidade objetiva ou da individualização. E nem caberia alegar que a quantidade de engenheiros civis no mercado de trabalho seria muito maior que a de engenheiros cartógrafos e de agrimensura porque este fato - que é real - não altera em nada a questão posta. O cadastro eletrônico de auxiliares da Justiça, mantido pelo Tribunal por força do art. 156/§1º do CPC/15, resolve com facilidade eventual carência de profissionais na Comarca. Este cadastro foi, aliás, uma das grandes e positivas novidades do Código de 2015.

Também não a modifica o fato de ser a Engenharia Civil muito mais antiga que outras modalidades da Engenharia no Brasil (a Engenharia Ambiental, por exemplo, criada somente no ano 2000), tendo sido disciplinada, pela primeira vez, em 1933, por decreto de Getúlio Vargas (decreto 23.569, art. 28). Tal antiguidade faz com que, certas vezes, a Engenharia Civil seja tida como "mãe" de todas as Engenharias. Entretanto, pioneira mesmo foi a Agrimensura, a primeira modalidade da Engenharia não militar reconhecida no Brasil, ainda por ato de D. Pedro II: é o Decreto nº 3.198, de 16 de dezembro de 1863, que aprova as instruções para nomeação de Agrimensores. Na época, o território brasileiro começava a ser ocupado, tornando-se necessário que os limites fundiários fossem fixados com alguma segurança, o que está na origem da Agrimensura como profissão.

Não se trata, porém, de revolver questões históricas mas de se analisar a formação adequada ou inadequada de determinado profissional para atuação em certo processo. No processo em tela, de Santana do Parnaíba, o Tribunal verificou que o laudo pericial "foi realizado por perito engenheiro civil e técnico em elétrica, sem especialidade na área de agrimensura". Assim, entendeu que "somente um engenheiro agrimensor poderá esclarecer com precisão e segurança as questões técnicas para a solução da demanda". Aduziu ainda que "a questão técnica impõe especialização, tendo em vista a imprecisão das matrículas e a possível sobreposição de áreas decorrentes do procedimento de georreferenciamento promovido pelo requerido. Além disso, a simples análise dos croquis dos imóveis não é suficiente para desvendar a questão quanto à sobreposição de áreas. Recomenda-se a elaboração de mapeamento detalhado dos limites dos imóveis do autor e do réu". Quem tem competência técnica para fazer mapeamento será, evidentemente, o engenheiro cartógrafo e de agrimensura.

Mas não foi este o único ponto apreciado pelo Tribunal para decretar a anulação da sentença. Há dois outros. Em primeiro lugar, o perito nomeado sequer compareceu na área litigiosa na data marcada para a vistoria, "delegando a função a um assistente", havendo no processo o reconhecimento de que "os dados de campo foram levantados por uma equipe de topografia". Ora, esta falta macula a perícia por completo, invalida-a. Como alega o requerido-apelante em expressão curiosa, houve "perícia sem perito", o que é ilegal. Nesse sentido, diz o acórdão, "a perícia consiste em múnus público personalíssimo e a vistoria de campo não pode ser delegada a outro profissional. As circunstâncias do caso concreto ainda reforçam a necessidade de comparecimento do perito para o exame da área, já que o litígio decorre de demarcação alegadamente incorreta; é, em decorrência, indispensável que o expert tenha contato direto com a demarcação advinda do georreferenciamento".

Além disso, do ponto de vista processual e constitucional, o Tribunal entendeu que o juízo de primeiro grau não apreciou a prova, meramente acatou o laudo pericial de modo integral ao julgar procedente a causa, violando o art. 93/IX da CF, que exige fundamentação de todas as decisões judiciais sob pena de nulidade. Registra que "a magistrada de Primeiro Grau limitou-se a transcrever ipsis litteris a conclusão do laudo pericial. Não houve o enfrentamento das questões jurídicas da presente demanda, sobretudo quanto à existência de direito de posse do autor. O perito não é Juiz, mas sim auxiliar do Juízo e, por isso, a sentença não pode se reduzir a remeter às razões técnicas elencadas pelo expert, sem qualquer fundamentação jurídica". De fato, das 11 laudas da sentença, 8 são ocupadas com a transcrição do laudo pericial e resposta de quesitos.

Portanto, em razão desses três argumentos, o Tribunal de Justiça, muito corretamente, anulou a sentença e determinou a realização de nova perícia, desta vez feita por engenheiro agrimensor, como expressamente determinado no dispositivo do acórdão. Não houve trânsito em julgado porque em novembro passado foi interposto recurso especial pelo autor da demanda.

2. Já em 24 de novembro de 2020, outra Câmara do TJ/SP apreciou agravo de instrumento referente à nomeação de engenheiro mecânico e de segurança para atuar num processo também de reintegração de posse (AI 221888-12.2020.8.26.0000, relator Des. José Luiz Gavião de Almeida). Tratava-se de saber se houve ou não invasão de área pública do Município de Cotia por parte de um particular. O ponto controvertido era exatamente este: se houve ou não ocupação indevida de certa via pública.

Depois de analisar e reduzir o valor dos honorários fixados em R$ 36 mil (sendo que 12 mil destinados para um levantamento planimétrico feito por outrem, que não o perito), o tribunal rejeitou a própria nomeação nos seguintes termos: "esse valor fica sem relevância, por ora, em razão de ter sido nomeado como perito quem não tem a expertise para tanto. O perito nomeado é engenheiro mecânico e de segurança, e sua especialização em área diversa da construção e da agrimensura não o habilitam à tarefa que lhe foi confiada. Por isso não poderia ter sido nomeado para a função de auxiliar do juízo".

A ementa desse acórdão conclui pelo provimento do recurso "para que novo perito, com capacidade para função seja nomeado", aduzindo de que a questão fática parece simples "e tem seu ponto nevrálgico no levantamento planialtimétrico do local, em geral feito por agrimensor".

Embora não tenha sido feita determinação explícita de nomeação de agrimensor na nova perícia (como ocorreu no acórdão anterior), extrai-se também do julgado que é evidente, nos termos da fundamentação, que, em se tratando de lide referente a conflito territorial ou espacial, o engenheiro cartógrafo e de agrimensura será o profissional competente para, à luz das delimitações existentes, produzir prova técnica e formular laudo pericial que permita decisão consistente do Poder Judiciário. Também não há trânsito em julgado.

 

José Roberto Fernandes Castilho

VIP José Roberto Fernandes Castilho

Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca