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Qual o valor jurídico das assinaturas digitalizadas?

A utilização de assinaturas digitalizadas, por si só, não implica inexistência nem invalidade do contrato.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Atualizado às 10:35

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Digitalização da vida e das relações sociais

É visível o fenômeno da digitalização da vida e das relações sociais. A pandemia da covid-19 intensificou e acelerou esse processo: diante da impossibilidade de sair de casa, avolumam-se os negócios realizados por meio da internet. Compras de supermercado, contratação de serviços de aplicativos (como filmes por streaming), e até mesmo consultas médicas e psicológicas são realizadas em meio eletrônico. Para se ter uma dimensão desse fenômeno, que parece irrefreável, na Black Friday do ano de 2020, verificou-se aumento de 25% nas vendas realizadas por meio eletrônico em relação ao ano de 2019, movimentando cerca de 4 bilhões de reais.1

Tendo em vista a intensificação cada vez maior das relações entabuladas eletronicamente, e da prática bastante difundida de formalização do instrumento particular eletrônico por meio da aposição de assinatura digitalizada (ou seja, escaneada), mostra-se oportuno examinar qual o valor jurídico dessa particular espécie de assinatura.

2. Negócios celebrados no meio digital e consensualismo

No direito brasileiro, vigora o princípio do consensualismo, por meio do qual o contrato se reputa existente com a confluência de vontades, sem que seja necessária qualquer formalidade ulterior, salvo quando a lei assim determinar.2 O contrato pode ser verbal ou escrito, e, neste caso, pode ser instrumentalizado à mão em um pedaço qualquer de papel. O que importa perquirir é se houve consenso, pois, uma vez verificado este, o contrato é plenamente vinculante e deve ser observado pelas partes.

Desde logo, portanto, deve ser estabelecida uma premissa fundamental: há de se apartar a existência do contrato de sua prova. Os contratos podem ser verbais sem que a celebração oral interfira com sua força ou lhe reserve posição de inferioridade. Não quer isso dizer que sua prova seja fácil, pois se trata de vínculo informalmente estabelecido. A eventual dificuldade probatória, contudo, não se confunde com o aspecto material referente à existência, validade ou eficácia do contrato.

3. Assinatura digitalizada

A assinatura consubstancia formalidade por meio da qual se atesta a convergência de vontades apta a formar o vínculo contratual. Não significa, entretanto, que a assinatura seja elemento de existência ou validade do contrato. Mesmo sem a formalização escrita, se houver consenso, o contrato já existe e produz efeitos. Importante não confundir o momento de formação do contrato com o de sua formalização para fins probatórios e para a formação de título executivo.3 A assinatura é elemento fundamental no instrumento particular, o qual não é sinônimo de contrato.4

A contratação eletrônica pode prescindir da elaboração de um instrumento particular assinado. Pode ser feita por mensagens de WhatsApp, e-mail, via aplicativos (como são exemplos eloquentes o Uber e o iFood) ou através de sites de fornecedores. Em muitos destes casos, não há contrato formalmente registrado em documento assinado.

Por outro lado, em operações mais complexas, é usual a confecção de instrumento particular com espaço para assinaturas. Aqui importa saber, para fins probatórios, quais as diferenças entre as diversas espécies de assinatura apostas no documento eletrônico. Adotando-se como paradigma a classificação recente da lei 14.063/2020, que dispõe sobre o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, em atos de pessoas jurídicas e em questões de saúde e sobre as licenças de softwares desenvolvidos por entes públicos, tem-se: (i) assinatura eletrônica simples, em que se enquadraria a assinatura digitalizada, (ii) assinatura eletrônica avançada, a exemplo das entidades que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, e (iii) assinatura eletrônica qualificada, que seria a certificação digital via ICP-Brasil.5

A assinatura digitalizada, que nos termos dessa legislação deve ser enquadrada na categoria de assinatura eletrônica simples,6 consubstancia imagem escaneada da assinatura física.7 Como se nota de pronto, cuida-se de expediente menos seguro e, por isso, com valor probante relativo. Isso porque a assinatura digitalizada consiste em simples escaneamento de imagem, suscetível de manipulação por terceiros. Por isso, especialmente nos casos em que há dúvidas sobre sua autenticidade, deve vir acompanhada de outros elementos probatórios, como o e-mail de encaminhamento do contrato com a assinatura digitalizada, a denotar que de fato foi o remetente do e-mail que inseriu a própria assinatura.

4. A força probatória das assinaturas digitalizadas

A circunstância de a assinatura digitalizada ser mais suscetível de impugnação não infirma o valor jurídico da vontade manifestada. Consoante se ressaltou, troca de e-mails que denote convergência de vontades, independentemente de sua formalização em instrumento assinado, já é suficiente para a formação válida do contrato.

Sem embargo, dada a sua possível insegurança, a jurisprudência pátria por vezes considera inviável a utilização apenas da assinatura digitalizada como prova da autenticidade. Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, a assinatura digitalizada "não garante a autoria e integridade do documento eletrônico, porquanto não existe uma associação inequívoca entre o subscritor e o texto digitalizado, uma vez que ela pode ser facilmente copiada e inserida em outro documento".8

Ainda que se possa invocar a fragilidade probatória das assinaturas digitalizadas, sua utilização em juízo não pode ser tida por irrelevante. Por certo, ainda que não possuam a mesma força probante, são válidos os documentos que contenham assinaturas digitalizadas, ressalvada a possibilidade de ser questionada a sua autenticidade em juízo.9 Além disso, a utilização de assinatura digitalizada não afasta, por si só, a força executiva do instrumento particular, visto que o art. 784, III, do CPC exige simplesmente que o documento esteja assinado pelo devedor e por duas testemunhas, independentemente da modalidade utilizada.

O que não se deve é impor às partes a obrigação de contratar mecanismos de certificação digital, suprimindo qualquer possibilidade de se reconhecer valor probatório à assinatura digitalizada, que, se falseada for, sujeita os autores da falsificação às penas da lei civil e criminal.

5. Conclusão: quanto valem as assinaturas digitalizadas?

Como se demonstrou, a utilização de assinaturas digitalizadas, por si só, não implica inexistência nem invalidade do contrato. Sua eventual fragilidade probatória, que decorre da possibilidade de sua manipulação, pode ser superada pela ausência de impugnação de sua autenticidade ou, ainda, por qualquer outro meio de prova.

Em síntese, o scanner não faz contratos deixarem de existir, nem invalida qualquer manifestação de vontade.

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1 SERRANO, Filipe. Vendas na Black Friday batem recorde e movimentam R$ 4 bi na internet. In: Exame, 28 nov. 2020. Acesso em 20 jan. 2021.
2 "O solus consensus obligat constitui o coroamento, na modernidade, de que a palavra empenhada é suficiente para criar vínculo jurídico, prescindindo, em regra, de qualquer formalidade na expressão do consentimento ou mesmo da chancela estatal" (Gustavo Tepedino, Carlos Nelson Konder e Paula Greco Bandeira, Fundamentos do Direito Civil, vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 41).
3 Por vezes, a lei exige a assinatura como elemento fundamental para a formação do título executivo, como se vê no art. 784, II e III do CPC: "São títulos executivos extrajudiciais: (...) II - a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas". Ainda assim, a assinatura não é essencial para a formação do contrato (que pode, mesmo sem a assinatura, ter o seu cumprimento exigido por meio de processo de conhecimento), mas apenas para que o instrumento que o formaliza tenha força de título executivo extrajudicial.
4 "Os documentos, também denominados instrumentos, podem ser compreendidos como o suporte material, físico ou eletrônico, de registro de um fato ou de manifestação de vontade" (Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, Fundamentos do Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 259).
5 Cf. art. 4º da lei 14.063/2020.
6 "Exemplificando, quando se utiliza uma mera mensagem de correio eletrônico, a digitação do nome do remetente no final da mensagem é considerada uma assinatura eletrônica, assim como a imagem da assinatura de próprio punho inserida no documento eletrônico" (Fabiano Menke, A MP 983 e a classificação das assinaturas eletrônicas: comparação com a MP 2.200-2 de 2001. In: Cryptoid, 29 jun. 2020. Acesso em 15 jan. 2021).
7 Rodrigo Fernandes Rebouças, Contratos eletrônicos: formação e validade. São Paulo: Almedina, 2018, p. 131.
8
STJ, RMS 59.651/SP, 5ª T., Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julg. 23.4.2019.
9 "Alegação de invalidade do documento aditivo ao contrato por conter assinatura digitalizada da ré - Não acolhimento - Recorrente que não demonstrou existência de qualquer vício no acordo extrajudicial firmado entre as partes - Sentença mantida. Recurso desprovido" (TJSP, Ap. Cív. 1011951-61.2015.8.26.0482, Rel. Des. Maria Cristina de Almeida Bacarim, 29ª Câmara de Direito Privado, julg. 27.11.2019). No mesmo sentido: "Contratação provada por documentos juntados aos autos pela ré. Impugnação da autora pelo fato de constar assinatura digitalizada. Validade. Autenticidade do documento não questionada" (TJSP, Ap. Cív. 0006416-79.2013.8.26.0114, Rel. Des. Viviani Nicolau, 3ª Câmara de Direito Privado, julg. 24.2.2015).

 

Andre Vasconcelos Roque

Andre Vasconcelos Roque

Doutor e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ. Sócio do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

Milena Donato Oliva

Milena Donato Oliva

Professora da Faculdade de Direito da UERJ. Sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

Filipe Medon

Filipe Medon

Doutorando e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Substituto de Direito Civil na UFRJ e de cursos de Pós-Graduação e Extensão do Instituto New Law, CEPED-UERJ, EMERJ e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ e do IBERC. Coordenador Executivo e membro fundador do Laboratório de Direito e Inteligência Artificial da UERJ. Advogado e pesquisador.

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